Relatos de dor e coragem marcam mobilização por Justiça no aniversário de três anos do Massacre do Abacaxis

Mesmo ameaçados, parentes de vítimas levantam a voz para compartilhar a dor e angústia predominante na região por falta de respostas

POR STEFFANIE SCHMIDT, COLABORADORA DA ASCOM – CIMI REGIONAL NORTE I

“O Governo do Amazonas autorizou esse massacre; o próprio governador, e hoje temos sofrido as consequências da irresponsabilidade dele. Quantas autoridades, juízes e delegados já passaram por esse caso? Quem teve a coragem e competência para dizer que o Governo é culpado? Nós sabemos que ele é culpado”. Um misto de dor, indignação e esperança marcou o segundo dia do ciclo de debates sobre Massacre do Rio Abacaxis, que trouxe representantes das comunidades ribeirinhas e indígenas dos rios Mari-Mari e Abacaxis, de Nova Olinda do Norte, para relatar as violações que vêm sofrendo desde a chacina ocorrida no dia 03 de agosto de 2020.

Mesmo sob ameaças e correndo risco de morte, as vítimas cobram justiça em relação aos envolvidos. No dia em que se completa três anos do massacre, tristeza, desabafo, choro e também coragem estiveram presentes nos relatos de quem vivencia as consequências de crimes como abuso de autoridade, coação, agressões verbais e física, tortura e descaso.

“O Governo do Amazonas autorizou esse massacre; o próprio governador, e hoje temos sofrido as consequências da irresponsabilidade dele”

A perda da liberdade de circulação na região, além da invasão maciça de todo o tipo de exploração ilegal como madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros de terras, que foi intensificada após o massacre, é unânime nas falas das sete pessoas que compuseram a mesa na manhã desta quinta-feira (3), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS), da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

As vítimas relataram assistirem, desde 2021, a crescente invasão do território com embarcações carregando todo o tipo de riqueza da floresta, incluindo caça e pesca. “O rio ficou pior do que já era, ficou sendo saqueado sem que ninguém pudesse falar nada”, explicou a liderança. Eles cobram a construção de uma base de segurança da Polícia Federal no local, que chegou a ser prometida à época.

“A perda da liberdade, além da invasão maciça de todo o tipo de exploração ilegal como madeireiros, garimpeiros, caçadores, pescadores e grileiros de terras”

Passados três anos, não há denunciados pelo Ministério Público Federal (MPF). A Polícia Federal indiciou, em maio, o ex-secretário de Segurança Pública, coronel Louismar Bonates, e o então comandante da Polícia Militar (PM), coronel Ayrton Norte, pelo envolvimento na chacina. Antes disso, seis delegados chegaram a passar pelo caso, sem um resultado concreto.

“Não estamos aqui para pedir indenização. Só queremos Justiça. Queremos que as pessoas que torturaram, que mataram, que estavam nesse movimento, sejam punidas. Perdemos nossas vidas, paz, liberdade e autonomia. Não matamos ninguém. Não roubamos ninguém. Não fizemos nada disso, mas estamos pagando”, afirmou uma liderança indígena do povo Maraguá.

“Não estamos aqui para pedir indenização. Só queremos Justiça”

“Nossos parentes pagaram por uma coisa que não tinham nada a ver. Foram mortos como se fossem um animal. Amanheceu o dia, e encontramos só o corpo, a cabeça estava toda estraçalhada. Na nossa área, do rio Mari-Mari tem uma placa, da demarcação, conseguimos com muita luta, há 20 anos. Agora estamos pedindo por socorro enquanto somos massacrados”, afirmou outra liderança indígena, do povo Munduruku.

“A lancha entrou no rio errado, eles alegam. Mas eles não estavam com um mapa ou um GPS? Do lado do governo parece que está tudo tranquilo. Às vezes dá vontade de desistir, mas peço ajuda de Deus e força pra lutar: se for para morrer, que eu morra vendo a justiça ser feita”, completou o indígena Munduruku.

“Nossos parentes pagaram por uma coisa que não tinham nada a ver, foram mortos como se fossem um animal”

Em meio a lágrimas e soluços, uma representante das vítimas silenciou o auditório, diante dos questionamentos: “Será que essas pessoas são dignas de usar essa farda? Será que elas têm esse direito? Esperávamos a chegada do nosso parente em casa e até hoje ele não apareceu. O que fizeram? Onde ele está? Também é um ser humano. Peço por Justiça, peço a Deus que me mostre onde ele está, o que aconteceu. Deus deu a vida e a liberdade a todos. Temos um advogado muito grande acima de nós, Deus. Uma hora vai sair a resposta”, relatou, emocionada. “Para nós, não é dinheiro não. Queria vê-lo de novo. É muito revoltante, triste o que aconteceu”, completou.

O evento organizado pelo laboratório Dabukuri – Planejamento e Gestão do Território na Amazônia – espaço vinculado ao Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), iniciou nesta quarta-feira (2), no auditório Rio Solimões, do Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais (IFCHS).

“Será que essas pessoas são dignas de usar essa farda? Será que elas têm esse direito? “

Ao final, um jovem Maraguá, filho de liderança, pediu por oportunidades para os jovens da região que acabam sendo aliciados pelo tráfico de drogas e demais atividades criminosas. “Agora que a região passou a ser uma ‘novidade’, que ‘descobriram’ que existem pessoas, indígenas, venho pedir como um jovem: a gente quer é oportunidade. Como morador de lá, já passei por perdas para traficantes. O que tiverem de encontros, de oportunidades de aprendizados, nós queremos. Sinto esse prazer de lutar pelo meu povo, quero aproveitar para ter mais conhecimento”, afirmou.

As vítimas denunciaram ainda o clima de tensão e preconceito vivenciado na cidade por parte do poder público municipal que acaba contaminando a população local. Em Nova Olinda do Norte foi retirada a disciplina de língua indígena nas escolas.

“As vítimas denunciaram ainda o clima de tensão e preconceito vivenciado na cidade por parte do poder público municipal que acaba contaminando a população local”

O procurador da República no Amazonas, Fernando Merloto, responsável pelo 5º ofício do MPF, relacionado a populações indígenas e comunidades tradicionais, afirmou que os conflitos na região acontecem já há alguns anos e houve uma tentativa de mediar um ordenamento fundiário e pesqueiro na região, pelo MPF. “Temos aqui um procurador responsável agora para apurar os reflexos civis do massacre, paralelo ao acompanhamento criminal”, explicou.

O evento contou ainda com a participação da perita do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) Ana Valeska Duarte.

Segundo dia do ciclo de debates sobre Massacre do Rio Abacaxis. Foto: Steffanie Schmidt, colaboradora da Ascom – Cimi Regional Norte I

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