Direitos, regulamentação e proteção aos trabalhadores, traços marcantes da legislação de 1943, têm sido colocados à prova com a Reforma Trabalhista de 2017 e com o aumento da precarização dos vínculos empregatícios. Um discurso condicionado à “modernidade” que coloca em xeque o caminho que se deseja seguir para a reconstrução do país
Erika Farias – EPSJV/Fiocruz
Em 1º de maio de 1943, um decreto-lei deu origem à Consolidação das Leis Trabalhistas, conhecida popularmente por CLT. Hoje, oitenta anos depois, a legislação, assinada pelo então presidente da República, Getúlio Vargas – que regulamentou relações individuais e coletivas de trabalho, e garantiu diversos direitos trabalhistas como descanso semanal, licença-maternidade, previdência social, férias, entre outros –, vai contra seus objetivos iniciais. Da contraditória Reforma Trabalhista de 2017 à mais recente “uberização” do trabalho, uma pseudomodernização das relações trabalhistas com condições precárias e vínculos quase sempre inexistentes, a CLT de 1943 não é mais a mesma: uma realidade que precisa ser encarada. Até mesmo para que se possa pensar nos próximos passos para o desenvolvimento do país.
“Como uma empresa faz para ganhar dinheiro vendendo o seu produto, se não houver um mercado interno forte?”, questiona Maurício Godinho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Essa é uma das considerações que o ministro faz sobre a importância dos direitos trabalhistas para a economia de um país, especialmente para uma nação nas proporções do Brasil, onde, primordialmente, sua população é quem irá garantir o dia a dia do funcionamento da economia, o que contraria toda uma lógica neoliberal. “Essa visão muito divulgada pela grande mídia e por todos os analistas que ouvimos na televisão não é coincidência, é propaganda mesmo: política, ideológica, cultural e econômica antissocial. Defendem que você tem que baratear a força de trabalho. O que significa primeiro aumentar o desemprego. O trabalhador fica derrotado. Fica apavorado. Imagina você ficar sem renda nenhuma. Não colocar comida em casa ou não ter a menor condição de gestão de uma família ou de si mesmo, da sua própria vida. Sua capacidade de reivindicação e até o seu apreço pelo sindicato diminuem porque você fica simplesmente atemorizado”, explica. E complementa: “O desemprego é uma característica dessa narrativa. Tanto que, em todos os governos liberais que tivemos no Brasil nos últimos 35 anos, a primeira coisa que eles fizeram foi isso: ao assumirem, a taxa de desemprego sobe percentuais elevadíssimos em um ano. Isso não é nenhum efeito externo vindo do mercado americano, do mercado europeu, chinês, nem do planeta Terra. Isso vem de políticas públicas e políticas intencionais para aumentar o desemprego e desarmar a força da população para reivindicar”, afirma o ministro do TST.
O pesquisador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon/RJ), João Hallak Neto, relembra que, quando a renda cresce, mais produtos são consumidos e eles precisam ser cada vez mais produzidos. “A gente também percebe políticas de investimento público. Tem ‘Minha Casa, Minha Vida’ retornando ao cenário e tendo mudanças que o deixem mais robusto, com mais potencial. Isso também vai estimular não só a construção civil diretamente, mas outros empregos indiretos”, afirma o pesquisador. Ele também explica que, quando se aquece um setor da economia, há outros que indiretamente são também beneficiados. “Seja o de serviços, nos locais onde as obras acontecem, sejam os fornecedores, a indústria que fornece os equipamentos e a matéria prima para as construções. Mas a gente poderia citar também o fortalecimento do ‘Bolsa Família’ como uma política de dinamização da economia e, consequentemente, do trabalho. Então, a lógica no Brasil atual, me parece, pelas medidas anunciadas, está sendo diferente dos dois governos anteriores”, diz.
O cenário, 80 anos depois
Em abril de 2023, o Brasil chegou à marca de 43 milhões de empregos formais, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Programa de Disseminação das Estatísticas do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego (PDET/MTE), que iniciou os registros em 2002. Nos quatro primeiros meses de 2023, foram 705 mil empregos criados com carteira assinada. E se o número se destaca por ser a maior soma já registrada pelo Caged, outro número também atingiu altos indicadores: o de trabalhadores sem carteira assinada. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad Contínua/IBGE), esta média anual chegou a 12,9 milhões em 2022 – número 14,9% maior do que em 2021, e um recorde para a Pesquisa, que teve início em 2012. Outro índice alarmante foi o de trabalhadores informais, que somaram no último ano 38,8 milhões.
Atrelado a esses dados, há o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 1,9% no primeiro trimestre de 2023. João Hallak comenta o crescimento deste, que é um dos principais indicadores da atividade econômica do país, divulgado em junho pelo IBGE. O pesquisador conta ainda que o atual “aquecimento da economia” se dá pelos baixos níveis no período anterior à pandemia de Covid-19, quando ela desacelerou, impactando fortemente o mercado de trabalho, o que se resumiria em uma comparação baixa. “Agora começa a haver uma recuperação pronunciada, sobretudo em 2022. Entretanto, infelizmente essa recuperação está se dando em trabalhos de baixa qualidade. Mesmo os trabalhos com carteira assinada são para indivíduos que recebem de um a dois salários mínimos no máximo, ou seja, são trabalhos muito concentrados na base dos empregos em termos de remuneração, também relacionados à subocupação e muito relacionados à informalidade”, diz. Ele explica ainda que boa parte dos trabalhos gerados têm baixos salários, mesmo que com carteira assinada, e outra parte é formada por empregos informais que, como característica, têm os baixos salários e essa ausência de proteção social. “Então o país ainda precisa se desenvolver mais. Precisa haver investimentos públicos para que também possam liderar os investimentos privados, para que se aumente a qualidade do emprego. Investimento em ciência e tecnologia e investimentos industriais: tudo isso é necessário para que haja, sim, uma plena recuperação do trabalho no Brasil”, ressalta.
Os reflexos da reforma de 2017
Cerca de 10% do documento original da CLT de 1943, que continha 922 artigos, foi suprimido ou alterado com a Lei 13.467, de 2017, a Reforma Trabalhista. Novas regras que, em teoria, flexibilizaram o mercado de trabalho e tornaram a negociação entre empregadores e empregados mais “livres”, em suma, uma prevalência do “negociado sobre o legislado”. O Projeto de Lei, que foi aprovado às pressas pelo governo de Michel Temer por 50 votos a 26, sem o apoio popular – em consulta pública, 172.163 pessoas se mostraram contra a reforma, enquanto apenas 16.789 estavam a favor –, foi “vendido” com o discurso de diminuição das taxas de desemprego e “atualização” de leis trabalhistas antigas, mas, na prática, ampliou a precarização das relações de trabalho, expondo empregados a uma extrema vulnerabilidade em negociações.
Nesse aspecto, dois pontos são destacados pelo pesquisador João Hallak. O primeiro é a terceirização irrestrita das atividades produtivas – ruim porque permite uma busca pelo trabalho mais precarizado e ocasiona uma redução de salário e um descompromisso de determinadas atividades produtivas com determinadas unidades. O segundo é a adoção do trabalho intermitente, um contrato com carteira assinada, em que o trabalhador fica disponível, mas para trabalhar para determinado empregador somente quando chamado, sem ter o mínimo de horas exigido. Segundo o pesquisador, esse cenário cria e possibilita a figura do “desempregado com carteira”. “Ele tem um vínculo com carteira assinada em determinada empresa, mas se ele não foi chamado naquela semana, ele não obteve trabalho nenhum e nenhuma renda. Isso faz com que, na prática, ele possa receber menos do que o salário-mínimo, apesar de ter a carteira. E é bastante negativo para a economia por uma série de motivos. É negativo para o trabalhador e para a sociedade como um todo”, argumenta.
A professora da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence), vinculada ao IBGE, Barbara Cobo, traz a importância de se pensar sobre como as regulamentações de terceirização estão se dando, já que, o que se tem visto recentemente em alguns setores é a perda do controle sobre as formas de contratação do trabalhador e suas remunerações. “Você contrata a empresa, e aí a empresa que está contratando o trabalhador se omite. A gente vê muito isso no setor têxtil, em que você tem grandes empresas que se eximem da responsabilidade das formas de contratação. A gente tem visto que, hoje em dia, há um nicho de trabalhos, inclusive análogo à escravidão, nessas indústrias. Mulheres que moram em ambientes mais precários ficam, por exemplo, com uma máquina de costura dentro de casa, no meio da família, trabalhando dia e noite por um valor micro. Mas a empresa que está contratando a empresa [terceirizada] se exime dessa responsabilidade sobre as formas de contratação do trabalhador”, conta.
Se aliarmos a questão da Reforma Trabalhista aos reflexos da pandemia de Covid-19, os resultados são ainda mais devastadores. João Hallak fala em “uma avalanche no mercado de trabalho”. Segundo ele, a economia foi fortemente afetada negativamente, além do mercado de trabalho ter sentido os efeitos drásticos. O aumento do desemprego foi muito pronunciado, houve queda de renda e de salários. “É até difícil avaliar o impacto da reforma trabalhista, considerando que foram pelo menos dois anos de pandemia. O que se estava presenciando, até 2019, foi que ela não gerou empregos, muito menos empregos de qualidade. A modalidade de trabalho intermitente cresceu razoavelmente e a subocupação cresceu no país. Então, ela não dinamizou a economia. Pode-se afirmar que ela foi inócua em relação à geração de empregos. E também é importante salientar, por exemplo, que em 2014, quando o país atingiu o pleno emprego, com o nível mais baixo de desemprego na série histórica das pesquisas de trabalho no Brasil, não havia reforma trabalhista. A CLT não foi empecilho para se alcançar o pleno emprego. Então, a Reforma Trabalhista, certamente, não traz vantagens. Muito pelo contrário, ela precariza o trabalho”, ressalta ele.
Barbara Cobo questiona a lógica da exploração capitalista neoliberal. Ela argumenta que, no Brasil, ainda que se avance em termos e legislação, metade da população vive de trabalhos informais, mostrando que a legislação não está alcançando todo o contingente necessário e que alguns grupos são mais afetados que outros. Sobre a reforma, a professora concorda que houve um diagnóstico errado da situação do mercado de trabalho, no qual a oferta de empregos não aumentava devido aos custos de se empregar com carteira assinada. “Por outro lado, a gente viu diversas flexibilizações e implementação do trabalho intermitente, aquele que você tem o vínculo, mas fica à disposição do empregador ou é chamado para trabalhar quando dá, o que não aumentou substancialmente a quantidade de trabalho. E o que a gente teve? Um período de pandemia, em que observamos indicadores completamente bagunçados quanto ao mercado de trabalho, já que muitos indicadores melhoraram nesse período de 2020/21. Isso aconteceu porque quando você tira da força de trabalho os mais vulneráveis, aqueles que trabalhavam nos serviços, nas atividades que mais sofreram com as medidas de isolamento social, você acaba melhorando os indicadores de formalização de rendimento médio, justamente porque os mais vulneráveis saíram do mercado de trabalho. Eles não estavam nem procurando trabalho, porque não tinha”, reforça.
A professora relembra o diagnóstico feito na época da reforma, de que os empregos não aumentavam por custarem “caro”. A “solução” foi então mexer nos direitos, na forma de contratação em relação à flexibilização, tirar o poder da negociação dos sindicatos e Ministério do Trabalho, entre outros. “E ainda assim, a gente não teve uma melhora substantiva, pelo contrário, os estudos apontaram uma maior precarização do trabalho, menores remunerações médias, contratos mais flexíveis que não garantem nenhum direito trabalhista, nenhuma segurança ao trabalhador. Porque a precarização vem muito dessa discussão, da insegurança do trabalho, de você não contar com uma renda habitual, de você não poder ter algum imprevisto, alguma doença, algum acidente de trabalho, porque não vai estar coberto pela seguridade social”. A professora também argumenta que a reforma trabalhista foi bastante equivocada em um “mau uso” do Microempreendedor Individual (MEI), que foi utilizado para funções em que a pessoa continua no serviço assalariado, trabalhando muitas vezes da mesma forma que trabalhava antes, mas agora como um pequeno empresário.
Para o ministro do TST, a reforma trabalhista é uma legislação “draconiana”. “Ela invejaria o legislador Drácon, lá de Atenas (VII a.C.), que deu origem a essa palavra. É uma lei perversa. Se pegarmos os mais de cem dispositivos da reforma, temos em torno de 85 ou 90% de dispositivos supressores, atenuadores de direitos, contra os direitos sociais e também contra o movimento sindical. Porque o sindicalismo tem vários defeitos. Eu não canso de apontá-los, mas o papel histórico dele é lutar pela melhoria das condições de vida, de trabalho e lutar pela democracia. Esses papéis são muito importantes e alguém tem que cumpri-los”, destaca Maurício. Ainda segundo ele, a atribuição histórica e fundamental do sindicalismo é defender trabalhadores e seus direitos. “Se não houver esse papel, quem vai exercer? Ninguém. Não vai ser a grande mídia ou um indivíduo isoladamente. Alguém precisa negociar por essas pessoas para, inclusive, protegê-las”, complementa. Maurício Godinho explica também que o segundo papel fundamental do sindicato é produzir um ambiente contínuo de defesa das instituições democráticas, visto que elas são as maiores vítimas das ditaduras, entendidas como instrumentos fundamentais para se ter, conquistar ou manter a democracia. O que, para ele, são papéis tão relevantes, que compensam os defeitos dos sindicatos.
Gig Economy: a uberização das relações de trabalho
Em maio de 2023, por meio do Decreto nº 11.513, foi instituído um Grupo de Trabalho para tratar da questão da regulamentação das atividades de prestação de serviços, transporte de bens e pessoas, além de outras atividades realizadas por meio de plataformas digitais. Em entrevista ao Portal do Ministério do Trabalho e Emprego, do Governo Federal, em 5 de junho de 2023, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, afirmou que a intenção do GT é garantir os direitos dos trabalhadores sem uma jornada de trabalho extenuante, com trabalho valorizado e transparente. Uma audiência pública também foi realizada no dia 22 de junho, quando grupos mais envolvidos no tema debateram a necessidade de elaboração de uma legislação específica para o segmento. Maurício Godinho reforça a importância de o novo GT garantir direitos trabalhistas e previdenciários ao grupo.
“É preciso conferir um tratamento específico e distintivo a esse enorme contingente de trabalhadoras e trabalhadores, respeitando as especificidades de sua estrutura e dinâmica de prestação de serviços. Não é razoável e nem justo, relativamente a esse importante segmento, que essas pessoas não alcancem uma proteção jurídica adequada, ainda que específica”, diz. Segundo estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em fevereiro de 2023, o número de trabalhadores de transportes que fazem parte da modalidade Gig Economy chegou, no terceiro trimestre de 2022, a 1,7 milhão. O termo estrangeiro se refere a relações sem vínculo formal, nas quais as empresas contratam a mão de obra de funcionários para realizar trabalhos temporários ou sem vínculos empregatícios, como no caso dos motoristas de aplicativos, entregadores de moto, bicicleta e mototaxistas.
A pesquisa do Ipea também destacou que apenas 23% desses trabalhadores contribuem para a Previdência, sistema oficial previdenciário do Brasil, administrado pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Por regiões do Brasil, o Sul concentra a maior taxa de contribuições (37%), seguido pelo Sudeste (27%) e Centro-Oeste (22,9%). Já o Nordeste e o Norte representam as menores taxas, com 16,5% e 9,6%, respectivamente. Na prática, a falta de contribuição é sentida nas questões de aposentadoria, auxílio-acidente, auxílio-doença, pensão por morte, entre outros. Enquanto o trabalhador CLT já contribui “automaticamente” com a Previdência Social por meio de descontos mensais no salário, com percentuais pré-definidos por faixa de renda, os trabalhadores informais ou sem carteira assinada, ou mesmo as pessoas fora do mercado de trabalho, podem contribuir com o INSS – embora o desafio, em muitos casos, torne-se ainda maior.
“Entregadores delivery e motoristas por aplicativo são um tipo de ocupação que cresceu muito no país, a partir de 2016. Os números indicavam cerca de 500 mil trabalhadores nessa situação em 2016/17 e alguns anos depois, em 2022, alcançamos esse número bastante significativo de 1,7 milhão. É um crescimento bastante forte”, reforça o pesquisador do IBGE. João comenta a importância da modalidade de emprego via plataforma, destacando os trabalhadores de transporte, especialmente durante a pandemia, quando seus serviços foram bastante utilizados, causando uma possível redução de danos – no que se refere à disseminação do vírus – devido às entregas por delivery, que mesmo com o fim da pandemia, se consolidaram no cotidiano das pessoas. “Deve-se pensar numa forma de garantir direitos a esses trabalhadores. É um equilíbrio bastante difícil porque envolve, obviamente, não só a plataforma, mas o ente estatal para regular, e também a organização dos trabalhadores, que é muito difusa, mas precisa ter seus direitos representados e suas propostas consideradas. E é um desafio colher qual a proposta de trabalhadores que são tão independentes entre si.
Mas é um caminho a ser buscado e procurado”, afirma. O pesquisador cita que essa exclusão de direitos é nociva, primeiramente, para o trabalhador, porque, no caso deste sofrer um acidente, por exemplo, não contará com uma licença para tratamento de saúde, vai ter dificuldades para obter a Previdência Social se ele não contribuir, então não terá seguro-desemprego. “Tudo isso é ruim do ponto de vista individual, mas também do ponto de vista coletivo. Uma vez que todas essas medidas, a aposentadoria, o seguro-desemprego ou a licença saúde, são formas de manter renda para o trabalhador, ainda que ele não esteja trabalhando, para que outros setores da economia continuem a ser estimulados. O cidadão não precisa parar de consumir porque parou de trabalhar. O aquecimento da economia vem daí: das pessoas tendo renda garantida para continuar a consumir e para que outros continuem a produzir, evitando aí uma espiral, um ciclo vicioso de queda de emprego e renda”, reforça João.
Para Maurício Godinho, a novidade nessa situação está no fato de que a empresa que organiza esse sistema de trabalho é uma empresa altamente tecnológica. Uma empresa computadorizada que se utiliza de dados de aplicativos e inclusive aplicativos no uso de aparelhos celulares, que hoje, todos têm, inclusive o trabalhador, que pode vir a ser o motorista ou transportador. “Essa é a novidade. Mas esse sistema de transporte, de pessoas, de coisas, ele existe na humanidade há muito tempo”, diz.
Para reforçar seu ponto, o ministro relembra a história da “Greve dos ganhadores”, descrita pelo historiador João José Reis em seu livro “Ganhadores – A greve negra de 1857 na Bahia”, publicado pela Editora Companhia das Letras (2019) . No período imperial, pessoas e coisas eram transportadas por trabalhadores, negros, escravizados, libertos ou livres. Devido à cansativa jornada de trabalho e às condições precárias a que eram submetidos, somados a uma cobrança de impostos e a medidas de controle policial, esses trabalhadores entraram em greve. Não foi uma vitória completa, mas conseguiram melhorias. “E essa é a mudança. Há uns anos, os transportes eram feitos por motoqueiros, mas o cliente ligava para o restaurante, por exemplo. Já havia esse debate sobre o vínculo, várias empresas assinavam a carteira desse trabalhador. E agora? O que mudou é que uma mesma empresa tem vários entregadores e não tem vínculo empregatício com nenhum deles”, diz.
Ainda segundo o ministro, as empresas digitais dizem que não são do setor de transportes, por esta ser uma narrativa mais favorável aos seus interesses, mas para ele, não procede. Inclusive, cita que vários tribunais europeus e a própria Comunidade Europeia têm favorecido essa visão, já que ela organiza o transporte. “A escolha central é a seguinte: o país fará o caminho da exclusão ou da inclusão? Se fossem robôs, nós não estaríamos discutindo esse assunto, mas são seres humanos que têm saúde, possibilidade de perda da saúde, tempo útil de vida, tempo necessário para outras funções e têm, evidentemente, uma cidadania econômica, social e institucional e, portanto, trabalhista. Mas eu pergunto a você: o que tem de tão peculiar que esse indivíduo não tem direito ao salário mínimo ou não possa ter direito à inscrição na Previdência Social pela empresa? Absolutamente nada”, frisa.
Quais os caminhos?
Todo esse discurso ultraliberalista, segundo o ministro Maurício Godinho, não é novidade. Pelo contrário, é ouvido por aqui desde os anos 1970. “A cada época esse discurso usa um mote novo e precisa se atualizar, ‘se repaginar’, como dizem os jovens. Mas, no fundo, tudo se insere no contexto da escolha que a sociedade e o Direito fazem. E a escolha da Constituição da República Federativa do Brasil é muito clara, ela escolheu o caminho da construção de um Estado de bem-estar social, um verdadeiro Estado democrático de direito, que seja inclusivo com as pessoas, inclusive as pessoas simples e pobres. É claro que vai sempre existir a pessoa rica, o sistema capitalista e aquelas pessoas que têm a genialidade de organizar o empreendimento. Os outros nascem ricos por herança. Enfim, no sistema capitalista sempre vai ter. Como nos outros sistemas anteriores, sempre tinha uma classe social que compunha o topo da pirâmide social. Mas essa pirâmide não precisa ser tão desigual. Esse é o ponto”, afirma.
O pesquisador do IBGE, João Hallak Neto, também aponta que a lógica neoliberal, corrente dominante do pensamento econômico no Brasil, sobretudo nos últimos anos, no governo Temer e durante todo o período do governo Bolsonaro, está sendo questionada no mundo. “Internacionalmente, isso está sendo questionado. No Brasil, certamente, está havendo novos ares também e a lógica do novo governo é ir contra essa adoção de medidas. A influência do pensamento internacional, que começa a contestar esse tipo de política neoliberal, de flexibilização do trabalho, tem repercutido e vai continuar, já que é uma bandeira do governo que venceu a eleição. No Brasil, já percebemos políticas como a volta da valorização real do salário mínimo, que é uma forma de aumentar a renda do trabalhador, e, com isso, dinamizar a economia, porque o trabalhador consome quase que 100% de sua renda”, explica.
Já Barbara Cobo fala sobre a demanda de informações e a necessidade de organização para que se possa avançar na discussão com dados que incluam os temas debatidos, como a uberização, terceirização e a desregulação do mercado de trabalho. “Temos que avançar e entender um pouco melhor essa economia informal, esses dados que fazem parte da PNAD Contínua. Já tivemos, por exemplo, pesquisa específica para estudar economia informal, que é uma característica muito forte do mercado de trabalho brasileiro. E aí, por mais que você faça e aconteça, na legislação, acaba não alcançando boa parte dessas pessoas. Ou seja, há casos e casos. Eu acho que temos que investir em dados, fiscalização etc. É fundamental pensar também na informação enquanto insumo estratégico, porque precisamos pensar um sistema estatístico nacional que, de fato, funcione de forma integrada para que tenhamos como atender essas demandas que são emergentes, urgentes, e sem informação não é possível fazer política pública, sem informação não conseguimos entender o que está acontecendo na sociedade”, conclui.
História da CLT
A CLT representou o clímax de uma política social, de inclusão profissional, econômica e institucional, conta o ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godinho. Enquanto algumas leis trabalhistas já existiam, outras foram sendo criadas, ampliando os direitos para diversas categorias existentes nas cidades à época. O Ministério do Trabalho, por exemplo, foi criado em 1930. Dois anos antes da CLT, em 1941, foi constituída a Justiça do Trabalho no Brasil. E se a onda de direitos trabalhistas aumentava nas cidades, os trabalhadores rurais não vivenciavam o processo da mesma forma. Na Constituição Federal de 1934, falava-se da regulamentação de leis que amparassem as condições do trabalho na cidade e no campo, mas a própria CLT de 1943 praticamente não citou a população do campo em seus dispositivos. Apenas na Constituição de 1946 as questões iniciadas em 1934 voltam a ser debatidas, priorizando a indústria rural e o homem do campo. Ainda assim, não há como diminuir a conquista da legislação de 1943. “Ela trouxe grandes avanços na época e organizou o mercado de trabalho urbano, trouxe vários direitos, então, trouxe uma cidadania social, econômica, profissional, institucional.
Quem era trabalhador passava a ser reconhecido pela ordem jurídica do país. Antes, não havia esse reconhecimento. Ela trouxe grandes avanços, entretanto, tinha grandes limitantes”, diz, Maurício Godinho. O ministro explica ainda que ao mesmo tempo em que se criavam os direitos individuais do trabalho, também eram estruturados os direitos coletivos, com a criação de um sistema sindical. “Houve uma forma de controle do Estado sobre o movimento sindical. Mas essas coisas no Brasil nunca são tão simples. O Estado controlou o sindicato? Sim, mas ao mesmo tempo, reconheceu e deu muitos poderes aos sindicatos. Então, nós não podemos ter uma análise simplista, parcial dessas questões. Houve, sim, um autoritarismo neste período. Ninguém vai negar isso. Mas houve também inclusão, porque antes os trabalhadores praticamente não tinham nada”, afirma.
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Imagem: Lincon Zarbietti