Consea prepara mega conferência de combate à fome e convoca iniciativas regionais a se organizarem

Desafios estruturais, políticas públicas e participação social serão os eixos condutores do evento marcado para dezembro

Por Nara Lacerda, no Brasil de Fato

Marcada para acontecer entre os dias 11 e 14 de dezembro, a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) já está em preparação. Nas regiões, estados e municípios, movimentos populares e sociedade civil se reúnem para os eventos locais que precedem o encontro. Neste mês o Consea lançou o Documento Base da conferência, que gira em torno de três eixos. Eles abordam questões estruturais para a fome no Brasil, políticas para enfrentamento do problema e a participação social.

“O grande instrumento que temos para isso – entre outros, no sentido de instrumentos legais, de processos institucionais – certamente é a participação social. Como fortalecemos, expandimos e fazemos com que essa agenda, que é tão central para nossa realidade, o nosso presente e o nosso futuro, possa ir além da militância, além do ativismo e criar um compromisso da sociedade Brasileira”, afirma a presidenta do Consea, Elisabetta Recine.

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Em entrevista ao Brasil de Fato ela falou também sobre a organização das conferências regionais e livres e da importância desses processos para a construção do evento nacional, que vai ocorrer em Brasília. Segundo Recine, a ideia é ir além da erradicação da fome, “o que não é pouco”. Transformar realidades históricas também está entre as metas. um objetivo que nas palavras dela, já é grandioso por si só.

“(Queremos) Articular essa erradicação com medidas de transformação realmente estrutural do que chamamos de raízes da fome. Que essa erradicação da fome aconteça também por meio de um processo que gere a produção e a oferta de alimentos adequados, saudáveis e sustentáveis”, ressalta a presidenta do Consea.

Ainda de acordo com Recine, “o processo de garantir alimentação, não só gera ou deixa disponível o alimento, mas junto com ele vem também um processo de erradicação da pobreza, de diminuição da pobreza absoluta. Esse processo de criar comida de verdade distribui, não só o alimento, mas também os benefícios da produção, a riqueza. É uma economia compartilhada.”

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O lema da 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional é Erradicar a fome e garantir direitos com Comida de Verdade, Democracia e Equidade. Para entender como se organizar ou participar das conferências livres e regionais, clique aqui.

Leia a íntegra da entrevista com Elisabetta Recine a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.

Brasil de Fato: Quais são os principais pontos do documento base?

Elisabetta Recine:O grande objetivo do documento base é poder dar um cenário das principais questões que nós precisamos elaborar e refletir. Mais do que isso, ele é também um instrumento para que todas e todos os participantes desse processo conferencial possam refletir tanto as questões que rebatem no âmbito nacional, como as que se traduzem no seu cotidiano de vida, de militância e de trabalho local.

Ele foi organizado em três grandes eixos. Um eixo trata das questões mais estruturais, que certamente rebatem na capacidade de sobrevivência, na qualidade de vida e certamente, nas condições ou não condições de alimentação e nutrição.

Então, vai tratar da questão econômica, do cenário político mais amplo de determinantes globais, porque não estamos isolados do mundo – o que podemos ou não podemos fazer e as consequências do que vivemos também estão determinadas por esse cenário. De alguma maneira, esse eixo é transversal a todas as discussões. Ele está presente em todas as reflexões.

Um segundo eixo é onde olhamos para dentro. O que é esse olhar para dentro? São as condições de vida, de alimentação e nutrição da nossa população, os programas públicos que existiam e estão voltando a existir e qual é a situação que precisamos enfrentar, não só retomando políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, mas também olhando tudo o que aconteceu nesses seis anos. Tudo que havíamos construído e perdemos.

Que questões nos levaram a retroceder de maneira tão rápida, mas também as inúmeros experiências que a sociedade civil fortaleceu ou criou nesses períodos em que a situação – econômica em geral e da fome em particular – foi ficando cada vez mais grave.

A sociedade civil gerou inúmeras possibilidades que precisam ser olhadas de uma maneira muito particular para que possamos aprender o que disso pode virar política pública que tenha uma abrangência maior.

O terceiro eixo também é um eixo transversal, que trata de democracia e participação social. Não há como pensar em qualquer processo de transformação real e sustentável, em que não olhamos as ameaças, mas também como construir, recuperar, para não nos sintamos ameaçados o tempo todo de que a nossa democracia está em risco.

O grande instrumento que temos para isso – entre outros, no sentido da de instrumentos legais, de processos institucionais – certamente é a participação social. Como fortalecemos, expandimos e fazemos com que essa agenda, que é tão central para nossa realidade, o nosso presente e o nosso futuro, possa ir além da militância, além do ativismo, criar um compromisso da sociedade Brasileira em relação.

Até dezembro, quando ocorrerá a conferência nacional, estados e municípios estão realizando as conferências regionais. Como a sociedade pode se informar a participar desses espaços?

Isso é bem importante, porque quando nós assumimos o compromisso de realizar a conferência este ano, nossa análise foi de que, do jeito que estamos, precisamos realmente criar um grande espaço de articulação e diálogo ampliado, para que possamos, de fato, pensar no médio e no longo prazo. Não só erradicar a fome, o que não é pouco, mas articular essa erradicação com medidas de transformação realmente estrutural do que chamamos de raízes da fome.

Que essa erradicação da fome aconteça também por meio de um processo que gere a produção e a oferta de alimentos adequados, saudáveis e sustentáveis. Esse processo de garantir alimentação, não só gera ou deixa disponível o alimento, mas junto com ele vem também um processo de erradicação da pobreza, de diminuição da pobreza absoluta. Esse processo de criar comida de verdade é um processo que distribui, não só o alimento, mas também os benefícios da produção, a riqueza. É uma economia compartilhada.

Temos o processo formal da organização da conferência, que parte de conferências municipais, regionais, territoriais e chega nas conferências estaduais, onde essa discussão é articulada no nível dessa unidade que é o estado e geram delegados que vão para o nacional com suas propostas.

Além disso, considerando a diversidade de organizações da sociedade civil hoje – que não necessariamente estão só organizadas da maneira que conhecíamos, temos muitos coletivos que têm uma certa informalidade do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista da organização e do trabalho local, são extremamente valiosos e muito importantes – então, criamos uma outra categoria de processo de discussão, que são as conferências livres.

Elas aprovam propostas, elegem delegados e são organizadas de maneira autogestionada. Um exemplo, a população LGBTQIA+, que muitas vezes no processo dos conselhos locais tem uma participação muito aquém da sua importância e do seu nível vulnerabilidade diante da questão da segurança alimentar e nutricional.

Então, a conferência livre serve para grupos sociais ou temas que estão nessa mesma situação. Então eles se organizam, fazem a conferência – há todo um regramento para isso é só entrar na página da conferência – e, dependendo do número de participantes, eles têm a uma proporcionalidade de eleição de delegados. Eles mandam essas propostas e isso vai entrar no documento nacional. Eles vão estar lá presentes para defender a sua agenda.

Podemos pensar em diversos temas, como mudanças climáticas e alimentação, cultura alimentar, ciência. Há uma diversidade. Nesse processo das conferências livres, se as pessoas conseguirem se organizar em torno da agenda, elas fazem a proposta. As inscrições vão até final deste mês de agosto.

Do ponto de vista das conferências municipais regionais, o vínculo se dá pelos conselhos que estão institucionalizados. Se na sua cidade tem um conselho municipal, é nele que você tem que chegar junto. A ideia não um pressuposto da organização das conferências, mas que elas sejam largamente divulgadas para que as pessoas possam chegar e participarem do processo de se candidatarem a delegados e delegadas.

Assim vamos caminhando. Todas as informações das conferências e todos os documentos que lançamos, regras de participação, estão disponíveis no site da Secretaria Geral da Presidência da República. Neste site, você vai encontrar o ícone do Consea e, a partir daí, você chega em todos os documentos da conferência.

Como tem sido o processo de reorganização das políticas de combate à fome nesse momento de retomada e reconstrução, após o desmonte e a desorganização dos últimos anos?

O volume de trabalho é realmente imenso, não importa muito qual é a posição em que você está, se dentro do governo ou no controle social – que é uma atividade voluntária, importante lembrar, de pessoas, de organizações que veem nesse espaço institucionalizado de participação um papel de democratização e de qualificação da política pública. São pessoas que continuam a sua vida, estão trabalhando para comprar o arroz e feijão e dedicam parte do seu tempo, muitas vezes uma boa parte do seu tempo, também para contribuir com esse processo.

Tanto integrantes do controle social quanto pessoas que estão atuando dentro do governo, é algo unânime, há um grau de compromisso muito animados, mas ter um nível de desafio enorme. Tudo o que analisamos sobre desmonte de políticas públicas e falta de orçamento não chegou aos pés da realidade.

Pessoas chegaram e simplesmente não havia memória alguma do que aconteceu nesse período de seis anos e, coisas que aconteceram anteriormente foram destruídas e perdidas. Bancos de dados, processos de trabalho e, uma coisa importante que também se enfraqueceu enormemente na nossa área, foi o diálogo. Não só o diálogo com a sociedade civil foi interrompido, mas mesmo com os governos. Essa relação, que é fundamental para implementar políticas com governos estaduais e municipais também estava extremamente fragilizada.

Se formos lembrar do período da pandemia, não só estava fragilizada, mas havia um processo de disputa e confronto. Isso dá uma desestruturada geral na política pública. Ela depende dos processos. É lógico que ela depende de orçamento, mas ela depende de um processo que vai o tempo todo realimentando compromissos, pactuações, definição de metas de prioridades comuns.

Isso tudo não existia mais. Então, há todo um processo de recuperar informação, recuperar o orçamento. Hoje se trabalha basicamente com o orçamento que foi aprovado no ano passado. Há uma margem de reorganização, mas ela tem limites. Há uma clara evidência e uma demanda, tanto do ponto de vista do governo, mas também de quem demanda a política pública, de que os orçamentos são insuficientes.

Espera-se que, a partir do ano que vem, isso tenha uma recuperação mais adequada. Já houve um conjunto de anúncios e implementações importantes na nossa área. A questão do per capita da alimentação escolar, o próprio Bolsa família, o Plano Safra, a questão da Reforma Agrária, os Quintais Produtivos, a proteção da mulher rural.

Tem muita coisa começando a acontecer. Ainda não sabemos quanto, mas projeta-se que já há uma melhoria. Do ponto de vista do Consea e da participação social, se esse diálogo entre os entes federativos estava completamente esfacelado, todo o processo de recuperação, recomposição de espaços legítimos, de diálogo com a sociedade é um processo que está em construção.

Há setores que são mais sensíveis a isso e têm uma resposta mais imediata e há setores em que processo ainda precisa amadurecer, para que também se compreenda que, pode ser que dê um pouco mais de trabalho dialogar, mas você vai caminhando para processos mais consistentes e mais sustentáveis.

Do lado dessa relação entre governo e Consea, por exemplo, nós estamos em processo de reconstrução. Há sinais positivos. Há uma Câmara Interministerial de Segurança Alimentar Adicional que foi recomposta e que está se fortalecendo. Temos um diálogo muito saudável com essa Câmara.

Há também, do lado da sociedade civil, um processo de permeabilidade do que está dentro do Conselho em termos de participação social e do que está fora. Porque a sociedade civil é muito mais diversa, muito mais ampla. Precisamos o tempo todo fazer um processo de diálogo e permeabilidade da institucionalidade com a não institucionalidade, para que quem está no papel de um conselheiro e de uma conselheira tenha uma responsabilidade de representar, não só a sua organização ou a sua temática, mas um conjunto muito maior também do que está acontecendo fora do conselho.

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Representantes da sociedade civil comemoram o retorno do Consea. Foto: Antonio Cruz/ABR

 

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