Por que um pai ameaçou professoras com uma arma no interior de SP

Perfil de Vitor Tadeu Ferreira, autor das ameaças em Ribeirão Preto, revela impacto de discursos de extrema-direita que atacam professores e estão espalhando pânico no ambiente escolar; após ataque, ele postou: ‘sou semente, glória a Deus!”

Daniela Penha, especial para a Ponte

Ameaçadas por uma arma de fogo, professoras de uma escola municipal de Ribeirão Preto, interior de São Paulo, tiveram que explicar suas práticas em sala de aula para a família de uma aluna. Irritado, o pai da criança queria justificativas por não ter recebido uma lembrança de Dia dos Pais. Questionou também exercícios pautados pela apostila didática, que abordavam o papel da mulher na sociedade, dizendo que o conteúdo era doutrinador e ideológico.

“Se não estão ensinando nada de errado, não é para ter medo”, ele afirmava com a arma exposta, de acordo com o boletim de ocorrência aberto pela direção da escola.

O caso teve repercussão nacional e chocou a comunidade escolar e a população da cidade. É, entretanto, a mais recente parada de um ciclo de ódio e violência iniciado muito antes e com vestígios escancarados.

Em 2021, Vitor Tadeu Ferreira já criticava o que chama de “ideologia de gênero” em suas redes sociais. Em maio de 2022, compartilhou um post classificando o movimento feminista como doença. Em março deste ano, compartilhou outro: “feminismo tá pior que o crack”.

Em seu perfil no Facebook, há dezenas de publicações apoiando o porte de arma, criticando governos de esquerda, enfatizando discursos da extrema direita como “bandido bom é bandido morto”, além de posts com teor homofóbico, transfóbico e misógino. Manifestações de apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que incentivou em seus discursos a violência e o preconceito, também são frequentes em sua página.

Vitor é conhecido por seu perfil agressivo não só nas redes sociais. Dono de uma sorveteria na zona leste de Ribeirão Preto, é classificado no bairro como uma pessoa briguenta, de “pavio curto”. Discussões são frequentes por ali, conforme relatos colhidos pela Ponte com três moradores. “Ele é muito revoltado. Qualquer coisa quer brigar”, contou um deles. “Tem briga sempre. Com a sorveteria fechada ou aberta. A gente escuta ele gritar com funcionários, com a esposa”, relatou outro.

No dia 16 de agosto de 2023, o alvo foi a instituição escolar. Acompanhado pela esposa, entrou na Escola Municipal Profa. Maria Inês Vieira Machado exigindo explicações. Levou consigo a arma e, no decorrer da conversa, apontou para as professoras e colocou-a sobre a mesa.

Para especialistas ouvidos pela Ponte, o caso reflete os ataques recorrentes contra as instituições escolares praticados por movimentos políticos da direita e da extrema-direita. E não é um ato isolado.

Uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz analisou 24 ataques a escolas ocorridos entre 2022 e abril de 2023, que deixaram ao todo 137 vítimas fatais e não fatais. O estudo alerta para o aumento representativo dessas ações. Até 2019, havia o registro de um ou dois ataques por ano. A partir de então, a violência passa a crescer, conforme o gráfico abaixo. Somente nos primeiros quatro meses de 2023 os casos de ataques já haviam superado o número total registrado em todo ano de 2022, que havia sido o período com mais ataques da década.

“A partir do momento em que não se valoriza o ambiente escolar e se coloca a escola como inimiga, eu fico pensando: que tipo de sociedade estamos construindo?”, questiona Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das instituições a frente do relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”.

Porte ilegal de arma e ameaça

Vitor está respondendo a um inquérito policial por ameaça e porte ilegal de arma de fogo. O delegado responsável informou que está colhendo depoimentos para dar andamento ao caso.

À Ponte, Vitor afirmou que anda armado porque já sofreu assaltos. Em alegações após o ocorrido, disse que é CAC (caçador, atirador ou colecionador de armas). O Exército Brasileiro confirmou que ele tem certificado de registro de CAC, mas informou que não tem armas registradas na modalidade.

Questionado pela Ponte sobre o ocorrido, Vitor disse que irá se pronunciar no “momento certo” e que irá “pôr a verdade na mesa”. “Inventaram um absurdo. Não é verdade”, alegou. Sobre a arma, nega que tenha feito ameaças. “Elas já sabiam que eu ando armado. Não foi ameaça”.

Após a ocorrência, ele tirou a filha da escola e a matriculou em outra instituição. “As ideologias que são pregadas na escola eu tenho direito de não gostar.” E tentou se justificar: “O que eu faço de bom ninguém fala! Eu arranquei pessoas da favela, ajudo todo mundo que passa aqui, os casqueiros, dou picolé nas favelas”.

No dia 19 de agosto, três dias após entrar armado na escola, ele publicou em sua página no Facebook: “Tentaram me enterrar. Só não sabiam que eu era uma semente. Glória a Deus!”. No bairro onde ele mantém a sorveteria já há alguns anos, o clima é de insegurança e desaprovação. “É um absurdo, né? Se não concorda com a escola, tem outras formas de resolver”, nas palavras de um morador. “O pessoal está com medo”, disse outro.

Professores silenciados e desmotivados

Na escola Maria Inês Vieira Machado, professores e funcionários tentam retomar a rotina de aulas. A tranquilidade, entretanto, já não era cenário antes mesmo da ocorrência que fez a instituição ganhar os holofotes nacionais.

“Estamos tentando voltar de forma a entender que o medo não pode nos paralisar”, afirma João Bosco Cervi Mussolin Lagoeiro, diretor da instituição.

Dois dias após o ocorrido, a escola compartilhou uma carta à comunidade na qual o corpo discente cita que, antes da ameaçada armada do pai, já haviam sido “desrespeitados e agredidos verbalmente em um evento aberto à comunidade” e diz que esses episódios “comprometem a estabilidade emocional de toda a equipe e a segurança de todos”.

Em outras escolas, o cenário não é diferente. Professores se sentem amedrontados e coagidos em suas práticas escolares rotineiramente. “Nos últimos anos, por iniciativa financiada por movimentos de direita e extrema direita, a escola tem sido colocada como um espaço de corrupção moral, que seria capaz de destruir o núcleo familiar idealizado pelos grupos conservadores”, ressalta Leonardo Sacramento, presidente da Aproferp (Associação dos Profissionais de Educação de Ribeirão Preto), pedagogo do IFSP (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo), professor da rede municipal e pesquisador de desigualdade racial e social.

Uma professora de outra escola municipal relatou à Ponte que também teve problemas com a festividade do Dia dos Pais. No caso dela, uma família se incomodou com a orientação da professora para que uma aluna, que tem como núcleo familiar duas mulheres, entregasse a lembrança para uma delas.

“Tanto na sociedade quanto no Direito nós vivemos uma diversidade do que é família. Esses setores têm dificuldade de compreender que essas novas configurações não são ataques à família heteronormativa”, analisa Luka Franca, jornalista, integrante do Núcleo de Pesquisa Direito, Desenvolvimento e Descolonização USJT/CNPQ, da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU-SP), que participou do relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”.

A professora conta também que semanas atrás teve que conter um pai que entrou na escola para agredir o próprio filho e acabou por quebrar o pé da criança.

“O professor tem que tomar muito cuidado com o que fala. Você precisa ficar atento porque eles podem pegar o celular e gravar o que você diz. Cortam, fica fora do contexto. No em tempo que você está na escola, você precisa prestar a atenção em tudo: o que fala, como fala”, desabafa outra professora, de uma escola estadual.

As festas religiosas também têm levado famílias a questionar a escola, de acordo com relatos de outra profissional. As famílias, de acordo com suas religiões, questionam a prática ou não de festividades como Páscoa ou festa junina. Se a escola faz a festa, há reclamações, mas se não faz, também é alvo de queixas.

“Eu me sinto desanimada, desvalorizada, desprotegida. Não temos apoio das famílias, não podemos falar nada, pedir apoio na questão da disciplina. Só dá medo…”, desabafa uma professora que escolheu a profissão por afeto, desejava a docência desde a infância e soma uma década em sala de aula.

Tânia Dornellas classifica o contexto como uma “lei da mordaça”: “os professores estão sendo vigiados pelos pais, pelos próprios alunos. No legislativo, diariamente temos propostas que buscam reforçar esse ultraconservadorismo, debates que promovem essa perseguição aos professores”.

Professores seguros?

A postura da Secretaria de Educação de Ribeirão Preto tem sido criticada pelos professores e instituições da cidade. Além do medo que se intensificou na rede escolar, docentes também questionam a falta de apoio da gestão municipal, que só se manifestou sobre o caso após a imprensa noticiar o ataque.

“Apesar de toda violência que a gente acabou enfrentando, não tivemos apoio de quem a gente mais gostaria e precisaria. Enquanto escola, nós estamos muito desgastados com toda essa situação”, desabafou uma das professoras da escola Maria Inês Vieira Machado, que preferiu não se manifestar.

Para Leonardo Sacramento ,a postura é mais uma ação entre outras que fragilizam a educação. “Se a secretaria não consegue estabelecer uma postura de defesa à vida daqueles que trabalham na escola e exige silêncio, como os professores podem se sentir seguros e confortáveis?”

Em nota, a Secretaria de Educação informou que “repudia qualquer ato de violência e a ameaça de um pai aos nossos professores, dentro de uma escola, é inaceitável”. Leia abaixo o texto na íntegra:

“A Secretaria da Educação repudia qualquer ato de violência e a ameaça de um pai aos nossos professores, dentro de uma escola, é inaceitável.

A Pasta tomou as medidas cabíveis no mesmo dia da ocorrência, dia 16 de agosto, onde um Boletim de Ocorrência foi lavrado, e o caso está sendo investigado pela Polícia Civil. A Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana foram até a escola, onde permaneceram durante a tarde e acompanharam a entrada e saída dos estudantes nos dias subsequentes, junto com uma equipe técnica da Pasta. A GCM continua apoiando a unidade escolar com rondas diárias.

A escola também tomou medidas relacionadas à rotina administrativa, como exemplo, agendamento antecipado para atendimento aos pais e na companhia de um gestor da unidade.”

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