Saiba os bastidores da reportagem que levou à investigação da PF sobre o suposto desvio dos presentes para a Presidência
Por Texto: Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto | Mediador: Ana Alice de Lima, em Agência Pública
Deflagrada pela Polícia Federal em 11 de agosto, a “Operação Lucas 12:2” ganhou os holofotes da imprensa brasileira ao investigar um suposto esquema de venda ilegal de joias sob comando do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Obtidas por meio de delegações estrangeiras, as peças foram vendidas por auxiliares de Bolsonaro no exterior quando, por lei, deveriam ser incorporadas ao acervo da Presidência da República.
As descobertas do suposto esquema começaram a vir à tona ainda em março, com a publicação de uma série de reportagens investigativas feitas pelos jornalistas Adriana Fernandes e André Borges. A primeira reportagem, publicada no Estadão, relata como o governo Bolsonaro tentou trazer ilegalmente para o país um kit de joias presenteado pela Arábia Saudita.
O Pauta Pública convidou Fernandes e Borges para compartilhar os bastidores desta investigação que culminou na ação da PF no episódio 86, lançado na última sexta-feira (25).
Confira os principais pontos da entrevista e ouça o podcast na íntegra aqui.
[Clarissa Levy] Como surgiu a reportagem sobre as joias?
[Adriana Fernandes] Essa investigação das joias não foi algo que nos foi entregue, como frequentemente ocorre no jornalismo; foi um trabalho investigativo. Recebemos uma informação inicial do que teria acontecido, então sabíamos que havia uma história muito difícil de comprovar sobre joias da Arábia Saudita retidas no aeroporto de Guarulhos e de valores milionários, destinadas à então primeira-dama, Michelle Bolsonaro.
Nós tínhamos que provar o elo entre algumas joias que seriam leiloadas. Tínhamos pouco tempo, porque elas poderiam ir a leilão a qualquer momento, já que haviam sido apreendidas em 2021. E foi esse o nosso trabalho inicial, montar esse quebra-cabeça e fazer essas conexões. No primeiro momento foi difícil de acreditar, então tivemos que fazer uma aposta nessa ‘’história das Arábias’’, que se desenrolou quase como um roteiro de filme. Os eventos recentes provaram que estávamos no caminho certo, e as investigações que seguiram nossa reportagem comprovam o que aconteceu.
[André Borges] A Adriana toca num ponto que é muito importante desse bastidor jornalístico: essa história tinha algo de muito fantástico nela, a ponto de duvidarmos de algumas coisas no começo. Não a ponto de largar a apuração, mas falar “será que isso aconteceu mesmo? não é possível.” Conversamos com as pessoas e detalhamos isso, até que depois de cerca de dois meses e de tentativas por meio da Lei de Acesso, de obtenção de informações direta com fontes, a gente viu que as coisas se confirmaram. E para ser super honesto, elas eram até mais complexas.
[Adriana Fernandes] Complementando a fala do André, nós não conseguimos nenhuma informação com a Lei de Acesso à Informação. A LAI, que é tão falada sobre transparência, não nos garantiu, nem no governo Bolsonaro, nem no governo Lula, as informações que já estavam em andamento dentro do governo.
[André Borges] Foi um processo de persistência, de cuidado, inclusive, enquanto se apurava, para poder manter o controle da informação até onde fosse possível.
[Clarissa Levy] Neste momento em que vocês trabalhavam, como foi a ligação para o então Ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque? Porque vocês precisavam falar com ele. Poderiam contar um pouco sobre isso?
[Adriana Fernandes] Havia grande preocupação de que levássemos um “furo” da nossa própria matéria porque, devido às movimentações que fizemos para chegar lá, informações começaram a se espalhar, mesmo agindo de forma discreta. A matéria ainda estava em edição quando ligamos para o Ministro Bento. Ele ficou tão surpreso que confirmou, e nós estávamos gravando. Inclusive, ele confirmou que havia passado com o segundo kit de maneira ilegal. Ele não percebeu que havia confirmado e disse: “Eu passei com o outro, né? Não sabia o que tinha”. Poucos minutos depois (não me recordo do tempo exato), ele estava na televisão, negando o que tinha nos dito naquele dia, tentando se retratar. Mas nós havíamos gravado, então disponibilizamos o áudio no portal.
[André Borges] Nós queríamos que ele comentasse os fatos. Assim, ligamos, ele atendeu, e esse áudio é uma declaração de culpa do ex-ministro. Ele menciona que saiu, voltou para pegar o pacote e, naquele momento, só tratávamos do que estava apreendido: os diamantes. No entanto, ele revela, nessa ligação, no dia 3 de março, que havia saído com outro pacote, que mais tarde identificou-se como sendo um kit de relógios, canetas, abotoaduras, todos em ouro e incrustados com pedras de diamante.
Então, foi um desdobramento da investigação. A partir daí, ele tentou recuar, rever sua posição, falando com outros veículos de comunicação. Mas o áudio da entrevista já estava no ar, que também seria confirmado com a imagem do vídeo onde ele volta e fala que as joias eram pra Dona Michelle.
[Adriana Fernandes] Mas o vídeo surgiu algum tempo depois. Por isso, tivemos que sustentar essas informações com outras que conseguimos. Há uma reportagem, que considero muito relevante, publicada no portal no sábado e no impresso no domingo, em que detalhamos toda a situação.
[Clarissa Levy] Como vocês têm acompanhado esses desdobramentos? Vocês publicaram no início de março, e já ocorreu muito desde então. Como vocês veem essa situação e o que acreditam que ainda pode acontecer?
[Adriana Fernandes] Acredito que toda essa trama será esclarecida. Há personagens que permanecem em silêncio, como o próprio Bento Albuquerque, que é muito relevante na história. Em uma reportagem nossa de abril, já mencionávamos a importância de Mauro Cid esclarecer os acontecimentos, mas ele ainda se mantém em silêncio. Tem aquela máxima, tem que correr atrás do dinheiro, do caminho do dinheiro.
[André Borges] Ainda há muitos aspectos a serem esclarecidos e pessoas a serem ouvidas, além das que Adriana mencionou. Revelamos, por exemplo, que muitos itens estavam armazenados na propriedade do ex-piloto Nelson Piquet, em Brasília. Ele, que é próximo do Bolsonaro, ainda não foi chamado para prestar esclarecimentos. Além disso, há outros militares envolvidos; muito se fala sobre o tenente Mauro Cid, mas existem pelo menos outros sete militares diretamente ligados às transações das joias. Agora a gente vê o episódio que envolve os advogados do clã Bolsonaro, que estão sendo chamados também para prestar depoimento e falar sobre o plano de recompra dessas joias, sustentando que tudo era legal. Se eram legais, por que foram levadas escondidas para o exterior? Por que as autoridades brasileiras não foram informadas? Por que foram vendidas e por que tentaram recuperá-las sorrateiramente depois do escândalo todo vir à tona?
Então tem muita coisa para ser explicada, como entender de fato essa benevolência toda de joias do povo árabe com o governo brasileiro, com o governo Bolsonaro. Tem muita coisa por trás disso certamente. São linhas que a imprensa está buscando avançar, a Polícia Federal está trazendo muito desdobramento e, com essas quebras de sigilo, certamente não só no Brasil, como lá fora também, com a colaboração do FBI, vai trazer muita informação nova.
Particularmente, confesso que esse desdobramento me surpreendeu, imaginávamos que eram joias para enriquecimento próprio. Quando vimos isso tudo, a maneira como fizeram, como se articularam, a corrida que fizeram depois dos três pacotes para tentar recuperar… Tem uma coisa engraçada: naquela época a gente procurava o pessoal do governo Bolsonaro para se manifestar sobre o que estávamos divulgando. Enquanto isso, eles estavam correndo e se articulando para recuperar os kits, estavam preocupados de esses itens serem pedidos pela justiça ou pelo Tribunal de Contas da União, que foi o que aconteceu. A quebra de sigilo de Mauro Cid revelou, por meio de mensagens, uma grande operação envolvendo diversas pessoas para recuperar as joias.
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Tânia Rêgo/Agência Brasil