Um caso singular pode ilustrar a ideia do filósofo que visita o Brasil: o Núcleo de Tecnologia dos sem-teto. Aposta na educação popular, geração de renda e em softwares livres. Está em construção e já mostra: há alternativas às Big Techs que nos alienam
por Rafael Grohmann, em Outras Palavras
O escritor Evgeny Morozov está em passagem pelo Brasil e tem dito em alto e bom som – com forte cobertura midiática – sobre a importância de pautar a soberania tecnológica para a construção de futuros digitais alternativos. Surpreendeu muita gente não só por falar em português, mas por citar a importância da teoria da dependência para o mundo contemporâneo, e de aprender com o passado na região, no caso do Cybersyn, apresentado por ele no podcast The Santiago Boys. Soberania tecnológica como caminho para superar dependência – inclusive de plataformas – e superexploração do trabalho.
Morozov não está sozinho. O Brasil tem há um tempo construído conhecimento e coalizões para pensar e propor agendas rumo a soberania tecnológica, como uma carta sobre o tema articulada por pesquisadores e movimentos sociais e publicada em 2022, e um plano de ação para políticas públicas sobre cooperativismo de plataforma no país. O tema também é foco de um novo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) do CNPq, intitulado Disputas e Soberanias Informacionais. Mas uma organização específica tem se destacado nas discussões e práticas sobre o tema, o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Tenho pesquisado trabalho por plataformas nos últimos anos, especialmente em busca de alternativas construídas pela classe trabalhadora. Isso tem sido nomeado principalmente sob a alcunha de cooperativismo de plataforma. Temos argumentado que a nomenclatura não é muito útil a realidade concreta latino-americana, pois as respostas baseadas em economia solidária e tecnologias sociais em contexto de plataformizacao tem ido além tanto do cooperativismo quanto da plataforma, configurando-se mais como tecnologias de propriedade de trabalhadores. São verdadeiros laboratórios, experimentos e protótipos – não finalizados – das pessoas trabalhadoras buscando sua autonomia a partir da autogestão.
Ao redor do mundo, centenas de experiências deste tipo estão sendo testadas nos mais diversos setores da economia, das entregas ao entretenimento. E é com esse contexto que o MTST tem, ao mesmo tempo, dialogado e inovado. Tenho conversado com iniciativas de mais de uma dezena de países, e não vi ainda uma organização que reúna tantas condições em relação a soberania que o MTST – sendo, de fato, um exemplo mundial para o tema. Não só pelo que já está fazendo – enquanto laboratório – mas pelo potencial, pelo que pode vir a ser. Um projeto prefigurativo – o que, como afirma a pesquisadora Marisol Sandoval, significa preencher um espaço entre a mudança imediata e a transformação social radical.
Sim, o MTST também ocupa tecnologias. Desde 2019, o movimento tem um Núcleo de Tecnologia. Um dos movimentos sociais urbanos mais fortes da América Latina compreende a tecnologia com um papel central na luta de classes. E tem um setor com militantes prontos para construir futuros digitais alternativos para facilitar a organização popular e com foco no trabalho digno. Segundo integrantes do próprio Núcleo de Tecnologia, em texto publicado na Jacobin Brasil, “o coletivo reúne trabalhadores como engenheiros de software, designers e analistas de sistemas para bater de frente com a hegemonia ideológica do Vale do Silício no mundo da Tecnologia da Informação”. Atualmente, apresenta três frentes: 1) desenvolvimento de softwares populares; 2) formação, especialmente a partir de cursos de programação a partir de métodos de educação popular com base em Paulo Freire; 3) discussões de políticas públicas em relação à tecnologia. Detalhes sobre o funcionamento do Núcleo de Tecnologia podem ser encontrados em uma cartilha sobre soberania digital produzida pelo movimento e no texto publicado pela Jacobin Brasil.
A partir dos diferentes eixos, o que o MTST tem feito é uma combinação de reapropriação de tecnologias em prol da classe trabalhadora, oportunidades de renda, organização de trabalhadores de diferentes setores e luta por soberania popular – tudo isso construído desde um forte movimento social. Um exemplo de como essas dimensões se encontram é o projeto Contrate Quem Luta. Um assistente virtual para WhatsApp que conecta trabalhadores sem-teto a pessoas que precisam de serviços de trabalhadoras domésticas, caminhoneiros, pedreiros, pintores, e outras atividades da construção civil.
Mais do que um GetNinjas do MTST, o Contrate Quem Luta é a concretização de uma tecnologia de propriedade de trabalhadores. Em vez de projetar tecnologias novas a qualquer custo (“qual app novo vou criar hoje?”), o Contrate Quem Luta foi desenhado para servir as comunidades. Não tem necessidade de sair criando aplicativos ou IAs por aí sem saber onde quer chegar. Os integrantes do Núcleo de Tecnologia perceberam que as pessoas teriam mais facilidade de conhecer o projeto se isso fosse aliado a um artefato cotidiano da maioria dos brasileiros – o WhatsApp. Olha aí, o MTST ocupando o WhatsApp! Além disso, os dados sobre uso de internet no Brasil apontam para persistentes desigualdades digitais. Muita gente no Brasil enxerga a internet apenas “pelos olhos” do WhatsApp. Na maioria das vezes, não há dados nem espaço disponível no celular para instalar um novo aplicativo.
Assim, o MTST parte de um pressuposto que não é tecnossolucionista, ou seja, a ideia de que as tecnologias, por si só, vão resolver problemas sociais. Essa questão também é nomeada pela professora Meredith Broussard como tecnochauvinismo. Ela afirma, em entrevista a Forbes, que “nós temos essa ideia de que, de alguma forma, as soluções tecnológicas serão superiores às outras. E isso é uma espécie de preconceito… às vezes, a ferramenta certa é algo simples”. Ou seja, nem sempre precisamos de plataformas, assim como nem sempre a resposta está em tecnologias digitais. Ao contrário, significa pensar a tecnologia a partir da classe trabalhadora e de suas realidades concretas – seguindo o filósofo Álvaro Vieira Pinto. O WhatsApp tem sido o primeiro passo tanto para comunicação quanto para organização de trabalhadores por plataformas Brasil afora – e em outros países também – como destaquei neste texto que escrevi com Jamie Woodcock e Mateus Mendonca. Claro, o fato de o WhatsApp ser o primeiro passo para a organização, não significa fechar tudo nele mesmo – inclusive para não intensificar dependências infraestruturais com as grandes empresas de tecnologia. E o MTST sabe disso muito bem. O foco – e a força – reside na organização.
O Contrate Quem Luta auxilia na organização de trabalhadores, especialmente dos setores de construção civil, e de trabalho doméstico e cuidados. Atualmente, há cerca de 200 trabalhadores na plataforma, que tem neste projeto uma oportunidade de renda e trabalho digno. Orgulham-se do trabalho bem feito e, mais ainda, das conexões realizadas com companheiras e companheiros de luta. Eles passam a conversar mais entre si – em reuniões periódicas – e debater juntos questões como parâmetros para remuneração digna e formas de governança interna. Isso significa, portanto, um processo de formação contínua e coletiva – tanto em relação ao trabalho quanto ao próprio Movimento. Há uma cultura do cuidado nas relações, entronizada no processo de trabalho, com ajuda mútua de trabalhadores, inclusive na relação com clientes. O cuidado como construção coletiva. Para citar uma frase do movimento cooperativista DiSCO, care before code – o cuidado vem antes da programação de tecnologias.
O fortalecimento dos laços entre trabalhadores sem-teto auxilia na circulação das lutas de trabalhadores. Isso também em articulação com trabalhadores de tecnologia. Ou seja, além de organizar trabalhadores de diversos setores por meio do Contrate Quem Luta, o próprio Núcleo de Tecnologia é uma oportunidade para organizar uma categoria que é muito vista como inorganizavel – o setor de tecnologia. Os membros do Núcleo passam progressiva e coletivamente a se reconhecer também como trabalhadores. Nos Estados Unidos, os primeiros sindicatos em empresas do Vale do Silício – como Google – nasceram a partir de uma coalizão entre desenvolvedores de software e trabalhadores terceirizados na área de serviços, como descreve o jornalista Ben Tarnoff. No Brasil, o MTST pode oferecer lições de uma emergente organização de trabalhadores de diferentes setores a partir de um movimento social.
Além do Contrate Quem Luta, como mencionei anteriormente, há uma série de outros projetos, desde os pedagógicos – oferecendo cursos de tecnologia nas periferias de São Paulo – até levar diversas tecnologias para as ocupações do MTST, como uma horta automatizada com internet das coisas. Há também projetos em andamento de intercooperacao – um principio central do cooperativismo – como a construção de uma plataforma com e para Senoritas Courier, um coletivo de mulheres cis e pessoas trans que realiza cicloentrega. Essas iniciativas também auxiliam na circulação das lutas de trabalhadores.
E onde fica a soberania? As sementes estão nesse combo todo, na articulação entre os diferentes elementos. Em maio de 2023, o Núcleo de Tecnologia do MTST lançou uma cartilha explicando sua visão sobre soberania tecnológica – a partir do poder popular, ancorado nos movimentos sociais e na classe trabalhadora. O poder popular construindo e reapropriando tecnologias, organizando e circulando lutas, e também pressionando o Estado em prol de políticas públicas que garantam direitos e dignidade. Isso significa também um processo de desmercantilização das tecnologias e uma crescente coletivização das relações, rumo a uma menor dependência de oligopólios e a uma maior autonomia da classe trabalhadora – inclusive com a redução das desigualdades digitais. Como lembra o antropólogo Rodrigo Ochigame, “algoritmos da opressão estão ao nosso redor há muito tempo, assim como projetos radicais para desmantelá-los e construir alternativas emancipatórias”.
O MTST também constrói, desde baixo, soberania epistêmica – ou seja, na produção e circulação do conhecimento, por meio de seus mais variados projetos. Isso envolve a valorização dos conhecimentos locais e situados, da multiplicidade das potências no interior no movimento, a desconstrução de mitos tecnológicos – a partir de miradas que articulem questões de raça, classe e gênero, combatendo a fabricalizacao das cidades e o colonialismo digital. Soberania epistêmica essa que desconstrói o tecnochauvinismo e propõe, projeta e fortalece as tecnologias que as pessoas trabalhadoras precisam – sejam digitais ou não.
Esse projeto de soberania tecnológica a partir do MTST está nascendo. Longe de estar pronto ou acabado. Este é só o início. Ocupar as tecnologias, lutar por soberania popular. O foco é esse, de maneira contínua, dia após dia. Assim como as Cozinhas Solidárias, as iniciativas lideradas pelo Núcleo de Tecnologia do MTST também podem ser protótipos para políticas públicas em relação à tecnologia, inovação e trabalho. Inclusive, dissemos isso em evento recente em Brasília com presença de nove ministérios e diversos membros da sociedade civil. As pautas de economia solidária e tecnologias nunca precisaram estar tão articuladas entre si. Se o Brasil já foi (e ainda é) referência mundial nessas áreas em separado, imagine juntas. Precisamos ocupar. Também constroem-se futuros tecnológicos alternativos abaixo da linha do Equador! Aliás, eu diria que de forma predominante: Cybersyn, Maria Tereza Freyre de Andrade…
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Foto: Pedro Biava/Jacobin