Especial da série #ElasQueLutam apresenta a força e resistência de três lideranças em nível local, regional e nacional
por Mariana Soares, Tainá Aragão, Victória Martins, no ISA
“Ouçam a minha fala. Agora já nos resta pouca terra [….] As florestas, os rios, os povos indígenas: é a sobrevivência deles que eu defendo até hoje”.
Aos 53 anos, Tuíre Kayapó ainda se desloca regularmente pelos mais de 1.100 quilômetros que unem a Terra Indígena Las Casas (PA) e Brasília (DF), para garantir que a floresta permaneça de pé e seus filhos e netos possam seguir existindo. É uma vida inteira de luta, que nem mesmo a passagem do tempo se tornou uma fronteira. “Se eu me calar e meus parentes morrerem, onde estarão os indígenas? Apenas os brancos vão existir”, assinala.
Em fevereiro, ela realizou mais uma vez esse percurso, para se unir à Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, uma convocação da Articulação das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) para debater coletivamente as possibilidades de incidência política em espaços como o Ministério dos Povos Indígenas, o Congresso Nacional, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) e começarem a preparar a III Marcha das Mulheres Indígenas, que neste ano acontece entre os dias 11 e 13 setembro.
Foi nesse espaço, também, que Célia Xakriabá, Sonia Guajajara e Joenia Wapichana receberam a força e poder de representatividade dado pelas mulheres-biomas em cerimônia de posse ancestral.
Liderança histórica do povo Kayapó, Tuíre é reverenciada pelo icônico registro onde brada um facão contra a bochecha do então presidente da Eletronorte, o engenheiro José Antônio Muniz Lopes. Feita em 1989, no I Encontro dos Povos Indígenas do Xingu, a fotografia marcou para sempre a história de resistência dos povos indígenas contra projetos predatórios a suas vidas e territórios, como era o caso da Usina Hidrelétrica Kararaô, então em discussão. O projeto, mais tarde, se tornou Belo Monte, que ignorou as vozes ancestrais que já anunciavam sua ruína. Porém, essas vozes não cessam em ousar salvar o pulsar do rio Xingu.
“Eu disse para ele: ‘branco, você não tem floresta. Essa terra não é sua. Você nasceu na cidade e então veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso”, lembra. “E então os brancos não fizeram mesmo”. Sua imagem correu o mundo e ajudou a adiar a construção da hidrelétrica por mais de 20 anos – a inauguração veio em 2015, agora com o nome de UHE Belo Monte.
Em um momento onde os homens eram os principais – e frequentemente únicos – líderes do movimento indígena, onde as mulheres pouco tinham espaço para participar na política externa das aldeias, Tuíre já se mostrava uma protagonista na defesa do seu território e da cultura do seu povo.
“Antigamente eu era a única mulher que ia para Brasília com os homens, e eu atuava bem”, Tuíre recorda. “Na minha luta, eu defendo meu povo, falo com os brancos; envelheci fazendo isso. Minhas parentas veem minhas fotos, vão aprendendo as coisas e agora somos muitas”.
De fato, onde antes Tuíre era uma exceção entre seus pares, hoje as mulheres indígenas representam de maneira inequívoca o rosto da luta pelos direitos indígenas e socioambientais.
Todos os anos, elas colorem Brasília com seus maracás e corpos pintados de jenipapo e urucum. Nos últimos tempos, essas mesmas mulheres passaram a ocupar lugares estratégicos da política indígena, fruto de uma longa construção para fortalecer e empoderar a assumirem a frente tanto dentro de seus territórios e associações como em espaços de diálogo com os não indígenas.
Inspiradas por Tuíre e por tantas outras, as mulheres Kayapó começam agora a assumir cacicados, liderar associações representativas do povo e até mesmo se candidatar a cargos públicos – caso de Maial Kaiapó, primeira do povo a concorrer a deputada federal.
No entanto, muito além das reuniões, marchas e encontros, Tuíre nunca deixou de lado a política cotidiana dos Kayapó, aquela que acontece essencialmente no território, no dia a dia da aldeia, e na qual as mulheres sempre exerceram influência indireta, desde seus núcleos familiares.
“Nós procuramos lenha, vamos para as roças, trazemos mandioca e ralamos. Preparamos o forno de pedra para alimentar nossos filhos e neles assamos batatas. Quando nossos maridos trazem peixe, nós limpamos e cozemos ou assamos. Se quisermos castanhas, temos que ir colhê-las e trazer para casa”, conta, sobre o dia-a-dia das mulheres Mebêngokrê. “Temos muito trabalho, é difícil. Vocês não dariam conta”.
A atuação feminina local é ponto de partida essencial para qualquer tipo de enfrentamento político, revela Tuíre, que também é cacica da aldeia Irã-Amraire, na Terra Indígena Las Casas. É por causa de suas mães e avós, que permaneceram no território prezando pela coletividade e cuidado com todos da aldeia, que, hoje, mais indígenas podem frequentar universidades, se formar e chegar a lugares que, até pouco tempo atrás, lhes eram negados.
“Agora nossos netos estudam, aprendem o português, aprendem a escrever e assim nossos parentes começam a ocupar esses espaços. E eu fico muito feliz e fortalecida”, diz. “Eles vão ter presença na política e vamos ajudá-los. Votaremos neles e não vamos mais ficar procurando os brancos. Eles vão trabalhar para nós e nos ajudar”.
Do território à academia, da academia para a política
Foi graças aos caminhos abertos por mulheres como Tuíre, que Jozileia Kaingang pôde realizar seu percurso acadêmico e, agora, político.
Doutoranda e mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Jozileia veio ao mundo pelas mãos de uma parteira de seu povo Kaingang, no Rio Grande do Sul, para hoje ocupar a chefia de gabinete da ministra Sonia Guajajara.
A sua história, no entanto, não começa na universidade e tampouco se limita ao cargo que possui atualmente. Jozileia traz consigo a ancestralidade Kaingang e remonta a resistência do seu povo que seguiu em retomada por seus territórios tradicionais, como a Reserva Indígena Serrinha, de onde vem boa parte de sua família e cujo processo foi capitaneado por mulheres indígenas, incluindo sua mãe.
Neta do cacique da Terra Indígena Carreteiro, Jozileia chegou à universidade em uma época em que o direito à educação superior não alcançava os indígenas. Seus pares só vieram a ser contemplados seis anos depois do seu ingresso, por meio da lei 12.711 de 2012, que estabeleceu a reserva de vagas no Ensino Superior para estudantes pretos, pardos e indígenas e para pessoas com deficiência.
“Eu fui para a universidade em um momento em que a gente ainda não tinha cotas, mas nós tivemos a luta das lideranças indígenas, dos nossos caciques, para que a Funai tivesse universidades com quem ela dialogasse e pudesse ter o ingresso com bolsa para os estudantes indígenas naquela época”, relembra.
“E eu acho que isso é importante dizer, a gente nunca fez parte desse lugar”, pontua. Tanto na política, como nas universidades, a presença indígena faz parte de um processo recente de retomada histórica. Cada vez mais indígenas, principalmente mulheres, vêm ocupando esses espaços, que despontam uma nova forma de resistência.
“A abertura das portas da universidade faz com que nós, mulheres indígenas, tenhamos uma outra possibilidade de construir vias que a gente possa trabalhar com os nossos povos, que a gente possa ser, mais uma vez, ferramenta de luta.”
Uma das fundadoras da ANMIGA, Jozileia traz a sua vivência como mulher indígena para a sua atuação acadêmica e para a sua forma de se organizar em uma rede nacional como a que ajudou a construir. “E eu acho que viver o que a gente acredita é isso, é você se doar para o movimento, é construir o movimento. O movimento não está dado, ele é uma construção conjunta coletiva e diária, cotidiana.”.
Nesse movimento, Jozileia vê as mulheres indígenas se organizando em uma importante característica: o recorte de gênero. “As mulheres são as que mais estão no território, estão cuidando dos seus territórios, cuidando das suas famílias, lutando para poder permanecer nas suas terras, fazendo as retomadas”, afirma. “São as mulheres que cuidam, são as mulheres que protegem”, conclui.
E foi como resultado de sua construção tanto pela via da pesquisa quanto pela da atuação direta dentro do movimento que surgiu o convite para comandar o gabinete do Ministério dos Povos Indígenas.
Apesar de receber a proposta com surpresa, Jozileia assumiu prontamente a função em janeiro de 2023. Agora, ela quer mais e mais espaços preenchidos por mulheres indígenas, dentro de cada competência. “Porque se a gente se soma é porque a gente tem cada uma um jeito de fazer, um modo de ser, uma especificidade dentro do nosso trabalho que a gente está mais dedicada, então isso faz com que a gente também ocupe os lugares dentro desse universo”, explica.
A primeira mulher indígena a assumir a Funai no Rio Negro
Somando à luta irrompida por Tuíre, Dadá Baniwa, de 42 anos, se une a Jozileia Kaingang no processo de abertura do que se chama aldeamento da política institucional. A primeira mulher indígena a assumir a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) do Rio Negro, em maio deste ano, nasceu na aldeia Assunção do Içana, em São Gabriel da Cachoeira (AM), a segunda cidade com o maior número de pessoas indígenas no país, segundo o Censo 2022 do IBGE.
Dadá foi nomeada pela presidente da Funai, Joenia Wapichana, em uma cerimônia foi realizada na Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), organização onde atuou anteriormente como coordenadora do departamento de mulheres.
Sua chegada se deu por meio de uma indicação do movimento indígena local, que desempenhou um importante papel nas conquistas atuais. Dadá é parte disso, é uma das forças de uma luta coletiva. “É com bastante orgulho e profundo sentimento de responsabilidade que assumo hoje a Coordenação Regional da Funai do Rio Negro. Desafio esse que só aceitei por ter a plena convicção de que não estarei sozinha”, afirmou, durante a posse.
Estudante e mãe de quatro filhos, Dadá partilha sua vida entre a família, sua liderança, a articulação com outras mulheres indígenas, seu cargo e, principalmente, a construção de um futuro possível para os povos indígenas, que só se fará presente com as florestas em pé. “A gente precisa cuidar da nossa floresta, porque elas são muito importantes para a gente, do jeito que elas nos sustentam, dando a caça, dando o peixe, as nossas roças. Então a gente também precisa retribuir esse cuidado para a nossa mãe terra, então isso é muito importante, e isso a gente está fazendo através do trabalho das mulheres.”
Dadá destaca que o esforço desempenhado pelas mulheres indígenas vem aos poucos sendo reconhecido. “A gente está tendo oportunidade de ocupar mais esses espaços e mostrar que as mulheres podem, que as mulheres sabem, que as mulheres conseguem”, ressalta. “A gente só consegue realizar, concretizar o que a gente sonha através da nossa união e do nosso fortalecimento”.
Para ela, o futuro de seus filhos e netos ainda não está garantido. Por essa razão, junto ao movimento indígena, ela se articula pelo sonho de que um dia a política local também seja aldeada, com prefeitas e vereadoras indígenas.
“Eu acho que esse trabalho nosso agora é empoderar outras mulheres, chamar essas mulheres pra junto da gente e dizer ‘olha, a gente precisa de vocês, vocês têm que estar junto com a gente, porque só assim vamos conseguir avançar cada vez mais”, explica.
Apesar dos avanços, ela conclui: “Ainda há desafios, ainda há muitas conquistas daqui pra frente”.
Assim como Dadá, Tuíre e Jozileia deram seus depoimentos à equipe do ISA durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro de 2023. As três mulheres, representando cada um de seus biomas, se uniram para o fortalecimento da luta e o protagonismo das mulheres indígenas na defesa dos seus direitos.
Mulheres-bioma, guerreiras ancestrais
No XV Acampamento Terra Livre, realizado em abril de 2019, foi um ambiente dinâmico e envolvente para as ações das mulheres indígenas. Lá, elas trouxeram à tona questões cruciais que culminaram na histórica Marcha das Mulheres Indígenas. Neste evento, ocorrido em Brasília, no Dia Internacional dos Povos Indígenas, em 9 de agosto daquele mesmo ano, 2.500 mulheres, representando 130 diferentes povos indígenas, se juntaram em uma poderosa união.
Essas mulheres se definem como mulheres biomas, onde cada qual – a depender do grupo que pertence – tem uma função importante para a organização e fortalecimento da mulher indígena no Brasil, do chão território ao chão do congresso, elas mostram que são mulheres árvores, raízes sementes e não somente mulheres, guerreiras da ancestralidade.
Confira alguns depoimentos:
Shirley Krenak
Co-fundadora Anmiga (MG)
“Estamos mais do que felizes, estamos empoderadas porque nós estamos ocupando esses espaços que realmente são nossos. Isso já deveria ter acontecido há muito tempo”
Gloria Potyguara
Presidente da associação de mulheres da aldeia Jucás- Monsenhor Tabosa (CE)
“Nós, como “mulher-semente” queremos ver crescer onde a gente for plantado. A gente quer articular outras mulheres a empoderar, a encorajar para estar na luta e estar na resistência”
Auricélia Arapiun
Coordenadora do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (PA)
“Nós passamos esses quatro anos só fazendo resistência, fazendo estratégia de resistir e proteger os nossos territórios. Nós acreditamos que só nós ocupando os espaços podemos fazer outra política”
Alana Wapichana
Vice-coordenadora das Mulheres da Região Murupu (RR)
“É muito bom estar presente e levar essa força dessas mulheres para o meu Estado”.
Assista:
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Tuíre Kayapó durante a Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, em fevereiro 📷 Benjamin Mast/La Mochila Migrante/ISA