Reparação: por que indenizar não basta

Caso de Mariana é exemplar: pagar indenização não pode desresponsabilizar criminosos. Quando há violação de direitos, é preciso cessar os danos, saná-los e garantir que não haverá repetição. E a tempo de que as vítimas fruam da justiça

por Alice Lopes Fabris, em Outras Palavras

Justitia longa, vita brevis;
the time of human justice is not the time of human beings1

Introdução

Um dos princípios centrais do Direito Internacional é a obrigação dos Estados de reparar os danos gerados por atos ilícitos cometidos por eles. No julgamento do caso Chorzów, em 1928, a Corte Permanente de Justiça Internacional (CPIJ) declarou que “é um princípio do direito internacional, e mesmo uma concepção geral de direito, que qualquer violação de um direito envolve uma obrigação de reparar”2. Neste sentido, a reparação tem como objetivo “eliminar todas as consequências do ato ilegal e restabelecer a situação que, com toda a probabilidade, teria existido se esse ato não tivesse sido cometido”3. O enunciado da CPIJ é vago e estabelece diretrizes para o estabelecimento da reparação, permitindo interpretações múltiplas da obrigação de reparar.

Em Direito Internacional Público, a reparação é frequentemente definida em relação ao seu objetivo. Por isso, os diversos manuais e tratados internacionalistas, estudam a reparação a partir dos modos que ela pode ter: a restituição, a compensação e a satisfação4. Apesar dessa abordagem parecer mais fácil para o operador de direito, desconsiderar outros aspectos da reparação, pode nos levar a determinar uma reparação inadequada. Ao partir do paradigma defendido pelo professor Antônio Augusto Cançado Trindade, de humanização do direito internacional, temos uma outra reparação centrada na vítima e no dano que esta sofreu:

Dentro desta perspectiva humanizada, a reparatio (do latim reparare, “para dispor novamente”) cessa todos os efeitos das violações do direito internacional (as violações dos direitos humanos) em questão, e proporciona satisfação (como forma de reparação) às vítimas; por meio das reparações, o direito restabelece a ordem jurídica quebrada por essas violações – uma ordem jurídica erigida com base no pleno respeito aos direitos inerentes à pessoa humana. A reparação integral não “apaga” as violações de direitos humanos perpetradas, mas cessa todos os seus efeitos, evitando ao menos o agravamento dos danos já causados, além de restaurar a integridade da ordem jurídica, bem como a das vítimas5.

Na minha visão, um dos aspectos fundamentais para se determinar uma reparação justa é a inclusão da noção de tempo, muitas das vezes negligenciada pelas jurisdições internacionais. A noção de tempo é analisada por diversas disciplinas como história, geografia e filosofia. Neste artigo, não será exposta ou analisada a noção de tempo, mas tão somente analisaremos a influência que o tempo pode ter na reparação. Como salienta Cançado Trindade, “o tempo da vida de um ser humano não coincide necessariamente com o tempo da vigência das normas jurídicas”6, neste sentido, priorizar o tempo jurídico em detrimento do tempo da vítima pode impactar seriamente na determinação de uma reparação adequada. Ao colocar a vítima no centro da reparação, a influência desta noção de tempo torna-se ainda mais significante.

Nesse sentido, a determinação de uma reparação adequada está intrinsecamente ligada à noção de tempo. Em sua opinião no caso Certain Activities Carried Out by Nicaragua in the Border Area, Compensation Owed by the Republic of Nicaragua to the Republic of Costa Rica (Costa Rica c. Nicarágua) de 2018, como juiz da Corte Internacional de Justiça (CIJ), Cançado Trindade desenvolve a interconexão que as noções possuem:

Como mostram os casos relativos aos danos ambientais, o todo indissolúvel formado pela violação e reparação tem uma dimensão temporal, que não pode ser negligenciada. Em minha percepção, ela exige olhar compreensivo para o passado, o presente e o futuro. A busca de restitutio in integrum exige olhar para o presente e o passado, assim como para o presente e o futuro. Quanto ao passado e ao presente, se a violação não foi complementada pela reparação correspondente, há então uma situação contínua de violação do direito internacional7.

Neste artigo, analisaremos como o tempo é fundamental para a determinação de uma reparação justa. Seguindo a metodologia dos principais manuais de direito internacional público8, analisaremos como a noção de tempo pode influenciar cada modo de reparação reconhecido pelos documentos internacionais. Atualmente, o direito internacional prescreve três modos de reparação das consequências dos atos ilícitos dos Estados a nível internacional: a restituição, a indenização e a satisfação9. A reabilitação e as garantias de não repetição complementam estes modos clássicos pelos Princípios e diretrizes básicas sobre o direito a recurso e reparação para vítimas de violações e flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário, adotados e proclamados pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 60/147, de 16 de dezembro de 2005 (Princípios de 2005). Assim, serão expostas as definições de três modos de reparação, quais sejam, a restituição, a indenização (ou compensação) e a satisfação, incluindo a noção de reabilitação e garantias de não repetição, e como elas são influenciadas pelo conceito de temporalidade.

1. A restituição

De acordo com a jurisprudência e a doutrina internacional, a restituição é a forma ideal de reparação10. De acordo com o Projeto da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas sobre Responsabilidade Internacional dos Estados (Projeto da CDI), um Estado que tenha violado uma regra internacional “tem a obrigação de fazer a restituição restabelecendo a situação que existia antes de o ato ilícito ter sido cometido”11. Os comentários do CDI a este documento acrescentam que “a restituição é a primeira forma de reparação a que um Estado lesado por um ato ilícito internacional tem direito”12. A definição de restituição pode, no entanto, variar de acordo com a doutrina e a jurisprudência.

De acordo com a Enciclopédia de Direito Internacional do Instituto Max Planck, o termo restitutio in integrum pode, em sentido lato, referir-se a “todas as medidas que um Estado lesado pode esperar do Estado responsável por um ato ilícito internacional” e, em sentido mais restrito, referir-se à “realização do status quo ante13. Nesse sentido, de acordo com Pierre d’Argent:

A restituição em espécie, no sentido estrito, consiste […] na entrega do próprio objeto cuja privação de gozo constituiu o dano, e que o autor do ato ilícito internacional deve reparar. A restituição em espécie, no sentido lato, não consiste, por outro lado, na entrega da coisa cuja privação cria o dano, mas na prestação, pelo devedor da responsabilidade, do autor do ato ilícito que causou o dano, de uma coisa semelhante do mesmo tipo e de valor comparável14.

Assim, restituição é antes de tudo, “a devolução de objetos, incluindo território, apreendidos ilegalmente”15. No que tange ao Direito Internacional Penal, o Tribunal Penal Internacional (TPI) fornece novas definições para os meios de reparação. Deve-se ressaltar que as definições dos modos de reparação pelo Tribunal, colocam o indivíduo no centro, tendo em vista que, ao contrário do direito internacional clássico, as principais vítimas nesse tribunal são indivíduos16. Nesse sentido, para a TPI, o objetivo da restituição é “permitir a uma pessoa regressar ao curso normal da sua vida”17, e “assegurar a devolução de bens perdidos ou roubados”18. Note-se que o Tribunal permite que a restituição seja paga a outros beneficiários que não a vítima ou a sua família, tais como escolas e outras instituições19.

A restituição do bem ao seu proprietário continua a ser a reparação ideal. Contudo, a demora em fornecer esta reparação pode causar danos ainda mais graves. Podemos tomar como exemplo a demora na restituição das casas destruídas pelo desastre de Bento Rodrigues em 2015. Devido ao rompimento da barragem do Fundão, três distritos de Mariana (Minas Gerais, Brasil) foram completamente destruídos: Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira20. Uma das reparações acordadas foi a reconstrução dessas localidades21. Contudo, sete anos depois, os antigos moradores não podem retornar ao local22.

O impacto na vida dessa comunidade é bem retratado no documentário Lavra, de Lucas Bambozzi (2021)23. Neste, é narrada a história de Zezinho, antigo morador de Paracatu de Baixo. Ele não só perdeu sua casa, mas também sua vida em comunidade, sua vida cultural foi seriamente afetada e quanto mais tempo se passa, as chances aumentam de perda total das tradições que ali eram praticadas. Moradores faleceram24, outros podem decidir em reconstruir sua vida em outro local, todos esses acontecimentos impactam na vida que existia ali e que não poderá ser restituída. Neste contexto, importantes manifestações culturais se perdem, por exemplo a Folia de Reis25. A demora, o tempo, agrava ainda mais as consequências do ato ilícito. Outro relato muito interessante é feito por Wagner, atingido por um segundo desastre: o rompimento da barragem de Brumadinho em 2019. Ao ser indagado sobre seu futuro pós-desastre, Wagner responde: “Que futuro? Não tem futuro, vamos viver um dia após o outro”26.

Esses relatos reforçam os ensinamentos Cançado Trindade: devemos colocar o indivíduo, neste caso a vítima, no centro da relação. O Direito Internacional foi construído entorno das relações interestatais, contudo as violações desse direito afetam diretamente os indivíduos. E deixar que a reparação seja feita no tempo do Estado, agrava os danos sofridos pelos indivíduos. Neste sentido, o professor argumenta que a reparação não é uma obrigação secundária, mas uma obrigação fundamental que deve ser cumprida prontamente:

A violação e a reparação, no meu entender, não podem ser separadas a tempo, uma vez que a última deve cessar prontamente todos os efeitos da primeira. Não se pode permitir que os efeitos nocivos da infracção se prolonguem indefinidamente no tempo, sem reparações às vítimas. O dever de reparação não vem, como “obrigação secundária”, após a infração, a ser cumprida quando os Estados em causa considerarem viável. O dever de reparação, uma obrigação fundamental, surge imediatamente com a violação, a ser rapidamente cumprida, de modo a evitar o agravamento dos danos já causados, e a restaurar a integridade da ordem jurídica27.

Assim, não podemos prolongar o tempo de cumprimento da reparação. Caso a restituição demore, outros modos de reparação devem ser aplicados para que novos danos não apareçam ou que os danos existentes se agravem. Contudo, a indenização, como reparação imediata, não nos parece o modo mais adequado para toda e qualquer violação.

2. A indenização

O termo indenização, ou compensação28, como a restituição, possui várias definições. Para Carlos Calvo (1886), a compensação poderia ser pecuniária ou de outra natureza29. De acordo com a Enciclopédia de Direito Internacional do Instituto Max Planck, a compensação é qualquer meio de “fazer um pagamento apropriado e compensatório a alguém por algum tipo de perda ou dano”30, o que inclui a reparação por equivalente – a entrega de bem similar ao perdido ou danificado – e o pagamento de uma soma31. Dada a proximidade da restituição à reparação por equivalente, apenas a compensação monetária será discutida aqui.

De acordo com o Projeto da CDI, a compensação é subsidiária à restituição e cobre “qualquer dano susceptível de mensuração financeira, incluindo lucros cessantes, na medida de sua comprovação”32. Um dos casos famosos sobre indenizações é o caso Lusitânia de 1923. A decisão do tribunal arbitral observa que

em geral, esta reparação [o pedido de indenização] deve ser proporcional ao prejuízo sofrido. É expressa de várias formas: ‘compensação’, ‘reparação’, ‘indenização’, ‘recompensa’ e é medida em termos de padrões pecuniários, pois, como ressalta Grotius, ‘o dinheiro é a medida comum das coisas de valor’33.

Nesse sentido, cabe salientar a decisão do tribunal arbitral no caso Rainbow Warrior, no qual reconheceu que pode ser concedida uma indenização por danos morais34. No que respeita ao regime de reparação às vítimas de violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional, “a indenização deve ser garantida, de forma apropriada e proporcional à gravidade da violação e às circunstâncias de cada caso, para qualquer dano economicamente avaliável resultante de violações flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário”35. É neste aspecto da indenização que reside a maior dificuldade para a indenização: precificar algo que não pode ser expressado em valores monetários.

É perante tais dificuldades que a jurisprudência do TPI reconhece limites à indenização: só pode ser aplicada se “(i) o dano econômico sofrido for suficientemente quantificável; (ii) tal reparação for adequada e proporcional (tendo em conta a gravidade do crime e as circunstâncias do caso); e (iii) os fundos disponíveis o permitirem”36. Nas decisões de reparação emitidas pelo Tribunal, foi destacado como a indenização pode reforçar as desigualdades estruturais e de perpetuar práticas discriminatórias e assim sua aplicação deve ser realizada com atenção a esses aspectos37.

A indenização é o modo de reparação mais ordenado pelos tribunais internacionais. Isto se deve talvez pela facilidade em cumprir-se. Paga-se e a culpa/responsabilização pelo ato ilícito correspondentes desaparecem. Em teoria, ela é o método mais rápido de conceder reparação. Contudo, este meio parece mais fácil somente para aquele que violou a regra. Nesse sentido, gostaria de salientar uma fala do filósofo Ailton Krenak, pertencente ao povo Krenak, povo gravemente afetado pelo desastre de Bento Rodrigues. O rompimento da barragem Fundão (2015) contaminou o Rio Doce, o Watu, entidade importante para a cultura Krenak. Para ele, o simples pagamento apagaria a culpa das empresas, enquanto a contaminação do rio duraria dezenas, talvez até centenas, de anos38. A partir dessa frutífera conversa, uma máxima me pareceu incontornável: o tempo da reparação tem que ser o tempo do dano. Como pode aquele que gera o dano não ser mais responsabilizado se suas consequências ainda são sentidas? Por isso, acredito que a solução tão defendida por Cançado Trindade deve ser amplamente aplicada pelos tribunais internacionais: deve-se priorizar a satisfação/reabilitação à indenização39, pois essas podem perdurar no tempo.

3A satisfação

A medida de reparação é o dano – ela deve apagar as consequências do ato ilícito, isto é apagar os danos causados pela ação ilícita. Contudo, os modos de reparação analisados até agora são estáticos: a restituição é o retorno puro e simples do que foi danificado e a indenização a prestação monetária do equivalente ao dano. Podem esses dois modos reparar todos os tipos de dano? A adaptação desses dois métodos não consegue reparar satisfatoriamente todo e qualquer dano. Outros modos de reparação, como a satisfação, complementada por reabilitação e garantias de não repetição, oferecem medidas muito mais flexíveis que podem ser adaptadas a diferentes danos.

A satisfação pode ser ordenada por meio de diversas medidas, sendo essa sua principal característica, que aliás está presente desde que as primeiras definições. Por exemplo, em 1885, Carlos Calvo escreveu que “a natureza e extensão da satisfação ou punição são reguladas de acordo com a natureza e gravidade da violação dos direitos desse Estado”40. Ainda hoje, não existe uma definição clara de satisfação. De acordo com a CDI, “a satisfação pode consistir em um reconhecimento da violação, uma expressão de arrependimento, uma desculpa formal ou outra modalidade apropriada”41. Do mesmo modo, os Princípios de 2005 enumeram várias medidas que podem ser adotadas como satisfação42. As suas formas mais comuns incluem o pagamento de uma soma simbólica43 ou o reconhecimento pelo próprio acusado do caráter internacionalmente ilícito dos seus atos ou mesmo a própria sentença44.

Enquanto as jurisdições internacionais permanecem conservadoras na utilização da satisfação, a Corte Interamericana de Direitos do Humanos (CIDH) desenvolveu uma vasta jurisprudência inovadora sobre o assunto45. Ordenar aos Estados que honrem as pessoas executadas arbitrariamente46; prestar apoio psicológico às vítimas47; e assegurar a responsabilização dos funcionários públicos48 são alguns exemplos de reparações concedidas pela Corte como satisfação pelos danos sofridos pelas vítimas. Vale salientar que a CIDH ordena a reparação em favor de indivíduos e comunidades que são vítimas de violações de direitos humanos. Assim, é o indivíduo e não o Estado que recebe a reparação. Ao se colocar o indivíduo no centro das relações, novas soluções aparecem – soluções que nos parecem mais adequadas.

Os Princípios de 2005 acrescentam duas novas modalidades de reparação: a reabilitação e as garantias de não repetição. Segundo os Princípios, a reabilitação “deve incluir cuidados médicos e psicológicos, bem como o acesso a serviços jurídicos e sociais”49. Para Pierre d’Argent, esta modalidade “parece constituir uma forma particular de restituição”50, uma vez que esta forma “deve apagar tanto quanto possível as sequelas psicológicas e médicas sofridas pelas vítimas”51.

Ao analisar esta modalidade, o Tribunal Penal Internacional reconhece o direito das vítimas a serem reintegradas na sociedade e o seu dever de assegurar a implementação deste direito52. Novamente, é o indivíduo que é a vítima central para este Tribunal. Neste sentido, a Câmara de Primeira Instância do TPI, no caso Thomas Lubanga Dyilo, declarou que “as medidas de reabilitação devem incluir serviços e cuidados médicos, assistência psicológica, psiquiátrica e social para aqueles que sofreram luto e trauma; e todos os serviços jurídicos e sociais relevantes”53. As medidas mencionadas pelo TPI para ilustrar esta modalidade incluem ações de reintegração das vítimas na sua vida social e profissional54, bem como a abordagem dos sentimentos de vergonha que elas possam ter55. Programas de reparação para a comunidade local são também encorajados a fim de apagar as consequências dos crimes sofridos pelas vítimas. Por exemplo, no processo Al-Mahdi, o Tribunal ordenou “medidas coletivas de reabilitação para enfrentar o sofrimento emocional resultante do ataque aos edifícios protegidos”56. Por esta razão, a Fundo para as Vítimas propôs a terapia coletiva através de sermões de rádio, bem como o apoio psicológico a algumas vítimas57, uma vez que o ataque ao patrimônio cultural tem também um impacto psicológico.

As garantias de não repetição, por outro lado, são definidas como medidas que contribuem para a prevenção de novos danos. Embora estas medidas não estejam presentes no Estatuto de Roma, estão presentes no Projeto da CDI como outra consequência do ato ilícito: elas, contudo, não são um modo de reparação. De acordo com os comentários ao Projeto da CDI, as garantias de não repetição também possuem uma ligação interessante com a noção de tempo:

a cessação é, de certa forma, o aspecto negativo da futura aplicação da lei, ou seja, pôr fim a uma conduta ilegal contínua, enquanto as garantias e garantias têm uma função preventiva e podem ser vistas como um reforço positivo da aplicação da lei no futuro58.

Por este motivo, as medidas de cessação podem por vezes ser confundidas com a restituição. Por exemplo, a devolução de um objeto cultural retirado do seu local de origem é tanto uma forma de restituição como uma cessação do ato ilícito. No entanto, de acordo com os comentários, quando a cessação resulta no regresso ao status quo, a reparação não tem sentido59. As garantias de não repetição “destinam-se a restaurar a confiança numa relação contínua”60. Mas, como a satisfação é uma modalidade que pode ter várias formas, a mesma medida pode ser qualificada como satisfação, reabilitação, ou uma garantia de não repetição. Segundo Jo-Anne Wemmers, embora a satisfação “inclua uma variedade de medidas que reconhecem a vítima, promovem a verdade e denunciam o crime”61, as garantias de não repetição são medidas “que se referem à prevenção e dissuasão do crime”62. No entanto, para Pierre D’Argent, “é claro que se pode hesitar sobre um ou outro ponto: já dissemos o que é a cessação; ainda se pode ficar surpreendido ao ver tal medida considerada do ponto de vista da satisfação quando poderia muito bem ter constituído uma garantia de não repetição”63.

De acordo com o comentário da CDI, “um Estado pode procurar garantias ou garantias de não repetição através de satisfação (por exemplo, revogação de uma lei que permitiu a ocorrência da violação) e as duas formas de reparação sobrepõem-se assim na prática”, mas, de um ponto de vista teórico, “as garantias ou garantias de não repetição são melhor vistas […] como um aspecto da manutenção e restabelecimento da relação jurídica que foi prejudicada pela violação”. Ao contrário da reparação, que olha para o passado (regresso ao status quo), as garantias de não repetição olham para o futuro (não repetição da violação).

Por conseguinte, estes modos de reparação – satisfação, reabilitação e garantias de não repetição – não podem ser considerados idênticos. O objetivo de cada modalidade é diferente: reparação através do reconhecimento do ato ilícito internacional para satisfação, reparação de danos psicológicos para reabilitação e não repetição de danos semelhantes para garantias de não repetição. A satisfação assim deve ser o modo prioritário de reparação quando a restituição não pode ser feita de imediato. Ela pode ser tão duradoura quanto os danos causados pelo ato ilícito.

Conclusão

O professor e juiz Antônio Augusto Cançado Trindade foi árduo defensor da humanização do Direito Internacional. Pensar e interpretar o Direito Internacional a partir de sua humanização gera várias consequências e uma delas consiste em colocar o indivíduo, vítima de uma violação internacional, no centro da reparação. Esta centralidade da vítima nos traz diversos desdobramentos, um dentre eles o reconhecimento que o tempo do Estado é diferente do tempo da vítima e que, nesse sentido, o tempo da reparação deve ser o tempo da vítima.

A partir deste novo paradigma, na reparação temos a centralidade da vítima-indivíduo e da introdução da noção do tempo. Por isso, devemos reanalisar os modos tradicionais de reparação no direito internacional. Ao escutar as vítimas, percebe-se que devemos modificar como vemos a reparação. Primeiramente, a reparação deve iniciar-se assim que possível. A restituição, modo ideal da reparação, deve assim ser imediata. Se não for possível, outros modos de reparação devem ser aplicados à espera desta restituição. Isto porque a demora na prestação da reparação agrava o sofrimento e os danos sofridos pela vítima. A indenização, como modo único de reparação, parece também inadequada quando o dano não é monetário. Mesmo se essa é imediata, ela não consegue suprimir os danos sofridos a longo prazo. Nesse sentido, a satisfação nos parece o modo mais adequado para suprir as dificuldades que observamos ao introduzir a noção do tempo na reparação. Como nos ensina Antônio Augusto Cançado Trindade:

é no pensamento jusnaturalista – a partir do século XVI – que o objetivo de reparação imediata foi devidamente perseguido. O pensamento legal positivista – a partir do final do século XIX – colocou indevidamente a “vontade” dos Estados acima da recta ratio. É no pensamento jusnaturalista – recuperado como é hoje – que a noção de justiça sempre ocupou uma posição central, orientando a lei como um todo; a justiça, em suma, está no início de toda a lei, sendo, além disso, seu fim último64.

Assim, somente com uma leitura inclusiva da reparação, tendo como ponto de partida seu objetivo – a eliminação de todas as consequências do ato ilícito – e como paradigma a centralidade da vítima, que podemos alcançar uma reparação verdadeiramente adequada.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao professor Antônio Augusto Cançado Trindade (in memoriam) por toda a generosidade e frutíferas conversas que me ensinaram tanto. Sua visão inovadora sobre o direito internacional foi fundamental para seu desenvolvimento. Sua árdua luta por um direito mais humano e justo ascendeu diversos debates e contribuiu para seu avanço. Seus textos e ensinamentos serão inspiração para gerações de internacionalistas.

Notas

1 CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2020, parágrafo 26.

2 Tradução livre. CORTE PERMANENTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1928, p. 29.

3 Tradução livre. CORTE PERMANENTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1928, p. 47. Esse princípio foi reafirmado diversas vezes pela Corte internacional de justiça. Podemos citar por exemplo CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2004, parágrafo 119; CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1997, parágrafo 149.

4 No ramo de direitos humanos e direito humanitário adiciona-se a estes três modos de reparação a reabilitação e as medidas de não- repetição. Ver os Princípios e diretrizes básicas sobre o direito a recurso e reparação para vítimas de violações e flagrantes das normas internacionais de direitos humanos e de violações graves do direito internacional humanitário, adotados e proclamados pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 60/147, de 16 de dezembro de 2005 (ASSEMBLEIA GERAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. 2005).

5 Tradução livre. CANÇADO TRINDADE, 2017, p. 221.

6 Tradução livre. CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 365.

7 Tradução livre. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, parágrafo 14.

8 Podemos citar como exemplo: PELLET, 2009; SHAW, 2008; CRAWFORD, 2019; SHELTON, 2005.

9 Como estabelecido pela COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001a.

10 CORTE PERMANENTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1928, p. 47. Deve-se notar as

sentenças citadas nos comentários sobre o trabalho da CDI sobre a responsabilidade internacional dos Estados: TRIBUNAL ARBITRAL, 1920, p. 7; TRIBUNAL ARBITRAL, 1929, p. 918; TRIBUNAL ARIBTRAL, 1957, p. 764.

11 Artigo 35, COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001a.

12 Tradução livre. COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001b, p. 256.

13 Tradução livre. TANZI, 2021.

14 Tradução livre. D’ARGENT, 2002, p. 688.

15 Tradução livre. TANZI, 2021.

16 BRASIL, 2002, artigo 75.

17 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 36.

18 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 36.

19 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 36.

20 TRAGÉDIA em Mariana, 2022.

21 RENOVA, 2022.

22 PARREIRAS, 2022.

23 LAVRA, 2021.

24 COLETIVO NACIONAL DE COMUNICAÇÃO DO MAB, 2022.

25 IEPHA, 2022.

26 LAVRA, 2021.

27 Tradução livre. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2016, parágrafo 21.

28 No Projeto da CDI, são utilizados os termo compensação (versão em inglês) e indenização (versão em francês).

29 CALVO, 1885, p. 389.

30 Tradução livre. WITTICH, 2008.

31 D’ARGENT, 2002, p. 697-698.

32 Artigo 36, COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001a.

33 Tradução livre. TRIBUNAL ARBITRAL, 1923, p. 35. Um exemplo mais antigo de um caso que aplica uma indenização por danos não-pecuniários é o caso Carthage, em que a Itália foi condenada a pagar “a soma de cem mil francos como indemnização pelos danos morais e políticos resultantes do não cumprimento do direito internacional comum e das convenções que são mutuamente vinculativas para Itália e França”, TRIBUNAL ARBITRAL, 1913, p. 460.

34 TRIBUNAL ARBITRAL, 1990, parágrafo 118.

35 Parágrafo 20, ASSEMBLEIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 2005.

36 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 37. Além disso, o Tribunal enumera os danos que devem ser reparados com compensação: “a. danos físicos, incluindo a perda da capacidade de uma pessoa para ter filhos; b. danos não materiais e morais que causam sofrimento físico, mental e emocional; c. danos materiais, incluindo perda de rendimentos e de oportunidades de trabalho; perda ou danos materiais; não pagamento de salários; outras formas de interferência na capacidade de trabalho de um indivíduo; e perda de poupanças; d. perda de oportunidades, incluindo emprego, educação e benefícios sociais; perda de estatuto; e violação dos direitos humanos (embora o Tribunal deva ter o cuidado de não perpetuar práticas discriminatórias tradicionais ou existentes, por exemplo com base no género, ao tentar remediar estes problemas); e. custos incorridos com peritos jurídicos e outros, serviços médicos, apoio psicológico e social”. Tradução livre. Ibid., parágrafo 40.

37 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016.

38 Conversa com Ailton Krenak, fevereiro de 2022, arquivos pessoais.

39 Por exemplo, ver CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2016.

40 Tradução livre. CALVO, 1885, p. 198.

41 Artigo 37, parágrafo 2, COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001a.

42 A saber: “A satisfação deve compreender, sendo caso disso, todas ou algumas das seguintes medidas: a) Medidas eficazes com vista à cessação de violações contínuas; b) Verificação dos factos e revelação pública da verdade na medida em que tal revelação não cause danos adicionais nem ameace a segurança e os interesses da vítima, dos familiares da vítima, de testemunhas ou de pessoas que tenham tido alguma intervenção para auxiliar a vítima ou impedir a ocorrência de novas violações; c) Busca do paradeiro de pessoas desaparecidas, da identidade de crianças raptadas e do corpo de pessoas assassinadas, e assistência na recuperação, identificação e reinumação dos cadáveres em conformidade com os desejos expressos ou presumidos das vítimas, ou as práticas culturais das suas famílias e comunidades; d) Declaração oficial ou decisão judicial que restabeleça a dignidade, a reputação e os direitos da vítima e de pessoas estreitamente ligadas à vítima; e) Desculpa pública, incluindo o reconhecimento dos factos e a aceitação de responsabilidades; f) Sanções judiciais e administrativas contra as pessoas responsáveis pelas violações; g) Comemorações e homenagens às vítimas; h) Inclusão de informações exatas sobre as violações ocorridas na formação incidente sobre as normas internacionais de direitos humanos e direito internacional humanitário e nos materiais didáticos para todos os níveis de ensino.” ASSEMBLEIA GERAL DAS ORGANIZAÇÕES UNIDAS, 2005, parágrafo 22.

43 Por exemplo os casos Carthage (TRIBUNAL ARBITRAL, 1913a) e Manouba TRIBUNAL ARBITRAL, 1913b, p. 475).

44 Por exemplo, CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2007, parágrafos 462-463.

45 Ver MAYEUX B., MIRABAL J., 2009.

46 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2004.

47 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015.

48 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010.

49 ASSEMBLEIA GERAL DAS ORGANIZAÇÕES UNIDAS, 2005.

50 Tradução livre. D’ARGENT, 2005, p. 52.

51 Tradução livre. D’ARGENT, 2005, p. 52.

52 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 41.

53 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2016, parágrafo 42.

54 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2012, parágrafo 236.

55 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2012, parágrafo 235.

56 Tradução livre. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2017, parágrafo 104.

57 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL, 2018, parágrafo 138-155.

58 Tradução livre. COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001b, p. 233.

59 Tradução livre. COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001b, p. 235-236.

60 Tradução livre. COMISSÃO DE DIREITO INTERNACIONAL, 2001b, p. 236.

61 Tradução livre. WEMMERS, 2017.

62 Tradução livre. WEMMERS, 2017.

63 Tradução livre. D’ARGENT, 2005, p. 52.

64 Tradução livre. CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, parágrafo 29.

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Foto: Romerito Pontes/Wikimedia Commons

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