Chile aos 17: o Casaco do Thiago e a Caixinha. Por José Ribamar Bessa Freire

Volver a los diecisiete, después de vivir un siglo (…)
Y mis años en diecisiete los convirtió el querubín. 

(Violeta Parra.1962)

No TaquiPraTi

Olho a meu redor. Vejo cabeças brancas ou calvas, peles enrugadas, mãos trêmulas, passos trôpegos. Vou conferir, então, minha própria imagem de velhinho no espelho do restaurante Las Vacas Gordas em Santiago, no jantar de confraternização de ex-exilados brasileiros no sábado (9). Mas – oh milagre! – minha barriga de bispo pós-conciliar virou tanquinho. Graças a um querubim alado, voltamos todos a ter 17 anos, com o viço e o frescor dessa idade, conservando, porém, a fiel memória de meio século vivido.

Essa memória será reativada pela comitiva do Grupo Viva Chile no domingo (10) em visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos e na inauguração da Exposição de fotos de Evandro Teixeira, assim como na deposição de flores no Mausoléu dos Desaparecidos e nos túmulos de brasileiros. O Velatón madrugada adentro no Estádio Nacional homenageará os mortos. São muitos os que já nos deram adeus em circunstâncias dramáticas.

– Não vai chorar, Zé Bigodinho. Comuna não chora. Pra controlar o choro, lembra da história do casaco do Thiago de Mello.

Somente em ocasiões solenes como essa o meu amigo titiriteiro Euclides Souza, 88 anos, ora residindo em Curitiba, usa o meu “nome artístico” com o qual atuei no Teatro de Bonecos Dadá no exílio. Deu-me este conselho por telefone ao saber da programação para rememorar os 50 anos do golpe que matou Allende, Victor Jara, milhares de chilenos e até brasileiros. Sigo sua recomendação. Mas afinal que casaco é esse? Nem sei se era mesmo um casaco.

O casaco de Marx

Chamar de casaco, depende do usuário. O fato é que Thiago e eu cruzamos a pé a fronteira do Uruguai, em outubro de 1969, com a roupa do corpo. Viajei de Montevidéu ao Chile um mês antes dele, que me emprestou seu casaco recém comprado em uma loja de Pocitos. Para o poeta, era um casaco, um overcoat, que ia até pouco abaixo do joelho. Para mim, de estatura imensuravelmente menor, virou um sobretudo que descia até o tornozelo e cujas mangas tinha de dobrar.

Era preciso me abaixar para mexer no bolso que, em mim, ficava na altura da canela. Foi com essa túnica comprida que cheguei à pensão dos exilados na rua Michimalongo, já em Santiago, acolhido com risadas cordiais. Parecia um soldado na trincheira lamacenta da Segunda Guerra. Ou um padre de batina pré-conciliar. O cineasta Silvio Tendler, presente na comitiva, propõe tirarmos fotos em frente à pensão, onde ele também morou. Vestirei um sobretudo para dar mais realismo à cena.

A história do casaco do poeta lembra o famoso casaco do autor de Das Kapital tantas vezes penhorado em Londres no séc. XIX e que foi por ele usado como exemplo para desnudar o capitalismo. O que têm em comum é apenas que ambos constituem uma peça de roupa transformada em objeto de memória repleto de significados, como relata Peter Stallybrass no capítulo “A vida social das coisas: roupas, memória, dor” no livro “O Casaco de Marx”.

A vestimenta que aflora numa narrativa simples pode ser um ponto de partida para dar conta da vida dos exilados no Chile. Ela nos remete à “Caixinha”, que me deu uma jaqueta usada para substituir o casaco e garantiu para muitos de nós casa e comida, o que, por sua vez, nos leva ao Centro de Informações do Exterior (CIEX) vinculado ao SNI e ao Itamaraty, que espionava a “Caixinha”.  E por aí vai…

Caixinha, obrigado!

Muitos exilados ingressavam no Chile sem um puto no bolso, disfarçados de turistas ou então clandestinamente. Até arrumarmos trabalho ou bolsa de estudo éramos mantidos pela “Caixinha”, uma instituição sustentada por asilados da primeira leva com cargos em organismos internacionais sediados em Santiago, como a CEPAL, OIT, OEA, que os remunerava em dólares.

Já no primeiro semestre de 1970, o CIEX, que monitorava os dissidentes chegados ao Chile e seus respectivos contatos e ações, informava o SNI sobre o número de brasileiros e dava conta de suas atividades e da ajuda que recebiam da Caixinha. O CIEX, como Temer, adorava mesóclises:

“O afluxo de asilados e refugiados brasileiros no Chile ter-se-ia incrementado nos últimos meses, estimando-se que, em abril de 1970, se encontram naquele país cerca de 300 elementos”.

Um desses “elementos” era este locutor que vos fala. Bendita “Caixinha” solidária, sem ela alguns de nós não estaríamos relembrando essas histórias de banidos tratados como bandidos no país de origem e considerados involuntários da Pátria. Por isso, a “Caixinha” é mencionada em algumas teses de doutorado. Cantemos, pois, com Juca Chaves: Caixinha, obrigado!

Se é para cantar, os chilenos também nos ajudaram a encontrar a alegria. Logo que chegamos, Thiago me levou à Peña de los Parra. O último encontro do poeta amazonense com Isabel e Angel havia sido anterior ao suicídio de Violeta, a mãe deles. Precisavam acertar os ponteiros da memória. No camarim, antes do show, o poeta apontou pra mim e disse aos seus amigos:

– Esse caboco gosta muito da música de vocês.

Isabel então autorizou minha entrada sem pagar em todas as apresentações. Não preciso dizer que usei e abusei do passe livre, o que me abriu outros horizontes identitários.

Soy latinoamericano

Darcy Ribeiro dizia que o Brasil sempre viveu de costas para os seus vizinhos, mas o golpe de 1964 – quanta ironia! – permitiu que milhares de brasileiros descobrissem os países hermanos. O Chile escancarou para nós, brasileiros, as janelas da música, da literatura, do teatro, da culinária, da língua e das culturas latino-americanas. Três cantores já falecidos registraram essa expansão da nossa identidade além fronteira: dois brasileiros e um chileno.

Eu sou apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes – cantava Belchior. Soy latino-americano e nunca me engano – completava Zé Rodrix. – Anda, preparándote a vivir en América, tu América – recomenda a canção de Payo Grondona, que nos hospedou um fim de semana na sua casa em Valparaíso com Thiago e Lurdinha grávida de Isabella.

Nuestra América! Nós, moças e rapazes latino-americanos, aprendemos a amá-la. Suspeito que o querubim vai pedir de volta os 17 anos que nos deu para revisitar o Chile e que no retorno ao Brasil entardeceremos outra vez como no poema de Benedetti para quem “aqui não tem velhos, acontece apenas que a tarde chegou para nós”.

Comuna não chora? A dramaturga chilena Isidora Aguirre nos fez chorar com a peça em cartaz na época do exílio, creio que no Teatro Caupolicán, na rua San Diego. Ela retomou no título a frase do Che Guevara Los que van quedando en el camino para relatar o massacre de mais de cem camponeses em Ránquil, região da Araucania.

Comuna enxuga as lágrimas com Pablo Milanés:

Yo pisaré las calles nuevamente
De lo que fue Santiago ensangrentada
Y en una hermosa plaza liberada
Me detendré a llorar por los ausentes

P.S. 1 – Na segunda-feira (11) quando estivermos realizando a visita ao Estádio Nacional, em várias capitais brasileiras ocorrerão atos pelos 50 anos de morte de Allende. No Rio, será na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) às 16h00. O Manifesto do Viva Chile será lido por Flávia Cavalcanti e Jean-Marc. Javiera Parra, neta de Violeta, cantará canções como “Gracias a la Vida”. A atriz Bete Mendes estará lá, com a roteirista Isabella nascida no Chile, que lerá poesias de seu pai Thiago de Mello. Allende não se rende. O evento terá transmissão direta pelo canal da ABI no youtube.

Link da transmissão: https://www.youtube.com/watch?v=xu4VGYx

Referências:

  1. Mário Benedetti: Aquí no hay viejos, simplemente nos llegó la tarde. https://www.taquiprati.com.br/cronica/17-donde-estes-benedetti–version-en-espa
  2. Marcial Humberto Saavedra Castro. Pela razão ou a força: trajetórias dos exilados brasileiros no Chile (1964-1973). Tese de doutorado em História. Universidade Federal da Bahia. Salvador. 2019
  3. Pio Penha Filho. O Itamaraty nos anos de chumbo: O Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a repressão no Cone Sul (1966-1979). Revista Brasileira de Política Internacional (RBPI). Ano 52, n. 02, 2009
  4. Peter Stallybrass. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Belo Horizonte. Autêntica. 2008 (3ª edição)

P.S. 2 – Alguns meses antes do IV Encontro Nacional de Geógrafos na PUC Rio, em julho de 1980, Carlos Walter Porto Gonçalves passou por Manaus a convite da Universidade Federal do Amazonas, através do professor Falcão Vasconcelos, para proferir conferência sobre a interpretação não-ecologista da problemática ecológica. Nós nos reunimos em minha casa no Kyssia. Carlos Walter doou o seu pró-labore para o encontro de fundação do PT no Amazonas, o que ocorreu em maio de 1980. Foi uma das primeiras contribuições financeiras ao Partido. Em julho deste ano, participamos da banca de Marcos Catelli Rocha sobre as estratégias de resistência dos povos da floresta, orientada por Marcos Montysuma e co-orientada por Carlos Walter, que agora nos diz adeus e vai fazer uma falta danada.

Do filme SALVADOR ALLENDE, de Patrício Guzmán.  + Thiago com a filha Isabella

 

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