A Medicina de Família dá seu recado ao Brasil

Em congresso realizado em Fortaleza na semana passada, médicos e sanitaristas debateram a necessidade de fortalecer essa especialidade. Um alerta: a saúde privada busca apropriar-se dela, sem oferecer vínculo e cuidado reais

por Gabriel Brito, em Outra Saúde

Terminou neste sábado, 23/9, o 17º Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC) e Comunidade. Realizado em Fortaleza, no Centro de Convenções da cidade, o evento reuniu milhares de inscritos e recebeu mais de mil trabalhos de pesquisa. Iniciado no dia 20/9, também realizou diversas atividades com temáticas como racismo no SUS, aborto, saúde digital e determinantes sociais do acesso à saúde.

Categoria em ascensão na medicina, a Medicina de Família e Comunidade é chave na promoção da atenção primária em saúde e foco do Mais Médicos, que oferece oportunidades de titulação na área – como explicou a presidente da SBMFC, Zeliete Zambon, em entrevista ao Outra Saúde no início do ano. Em Fortaleza, ela voltou a defender o peso desta especialidade ainda pouco assimilada pelo público como linha de frente do SUS e da política pública do setor.

“Nossa especialidade deve coordenar o sistema. Temos de formar mais e melhores médicas e médicos de família e comunidade. Precisamos de uma saúde forte. Só seremos um país forte economicamente se tivermos uma saúde forte. Uma saúde forte tem de estar onde o povo está. Essa é a meta de nossa especialidade.”

O Congresso contou com a presença de nomes importantes da área da saúde, a exemplo de Nésio Fernandes, secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde. Em sua palestra, ele não apenas detalhou a complexidade da Atenção Básica (como já havia feito nesta entrevista ao Outra Saúde) como antecipou mais investimentos do governo federal.

“O primeiro ano é fundamental para organizar políticas que podem ser mais difíceis de fazer nos anos seguintes. Por isso, prefeitos e governadores têm que pedir expansão das equipes, pois poderemos fazer juntos a maior expansão de equipes de saúde da família. O mesmo vale para saúde bucal. Para 2024 conquistamos mais R$ 10,5 bilhões para a atenção primária, suficiente para garantir aquela que possivelmente será sua maior expansão já vista.”

Nesse sentido, Fernandes fez referência a outras políticas recém-lançadas, no caso, o programa Brasil Sorridente, que visa expandir a odontologia no SUS, e as chamadas equipes multiprofissionais, nova versão dos Núcleos de Atenção à Saúde da Família, que ampliam para até 22 especialidades as Equipes de Atenção à Saúde da Família.

O secretário também reconheceu pontos críticos, a exemplo do número ainda baixo de médicos de família no país. São cerca de 7 mil profissionais em atividade e, de acordo com a SBMFC, são necessários ao menos dez vezes mais para dar conta das exigências de um sistema de saúde do tamanho do brasileiro.

“Nos acostumamos a padronizar as equipes com grupos de 4 mil pessoas e a Política Nacional de Atenção Básica determina que o certo seriam grupos 2 mil pessoas para cada equipe de saúde.”

Suas falas foram endossadas por pesos-pesados da área, como Inez Padula, ex-presidente da SBMFC, e Luiz Facchini, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e coordenador da Rede APS, a Rede de pesquisa de atenção primária em saúde, entidade associada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva, ao Conselho Nacional de Saúde e à Organização Pan-Americana da Saúde. Ambos foram taxativos em afirmar o avanço da atenção primária como eixo central da promoção da saúde no país. Mais que isso, eixo da própria organização do SUS.

Já a argentina Viviana Martinez, diretora Equidade em Saúde do Deparamento de Medicina Familiar e Saúde Comunitária da Universidade de Duke, elucidou o caráter global do debate. Como destacado em fóruns internacionais, a pandemia atualizou a discussão da saúde e mostrou como praticamente todos os países falharam na garantia deste direito. “Temos realmente a vontade política? Haverá apoio para a formação de mais médicas e médicos de família? Os países de fato consideram a saúde como direito do ser humano?”, indagou.

Num momento em que a privatização dos sistemas de saúde é questionada, e de certa forma o próprio setor privado passou a reconhecer a importância de bons sistemas públicos, Nésio Fernandes atacou o que chama de “pirataria sanitária”. Isso porque a absorção de conhecimentos de integralidade e longitudinalidade, essenciais à promoção da atenção básica, podem ser absorvidos por profissionais que em seguida aplicam tais conceitos na saúde privada. Esta, por sua vez, se vê em dilemas econômicos e passou a entender a Medicina de Família e Comunidade e seu caráter preventivo como meios de viabilização de seu negócio.

“O sanitarismo não pode cair em pirataria intelectual. Não pode virar um serviço sem vínculo. É o vínculo que qualifica e interfere na vida das pessoas. Não é uma consulta avulsa que muda a saúde das pessoas. Precisamos absorver as revoluções tecnológicas, mas isso não quer dizer abdicar do cuidado real, presencial”, explicou o secretário.

Como não poderia deixar de ser, os chamados determinantes sociais de saúde foram ponto central do evento e diversas mesas. Palestrantes como Denize Ornelas, médica de Família e Comunidade e especialista em Medicina Preventiva e Social, destacaram os gargalos em assistência à saúde das populações negras e indígenas.

“O diagnóstico demora muito mais para as populações negras. Nas escolas de medicina houve aulas sobre saúde dos negros? Não há dados sobre o perfil racial dos médicos negros brasileiros nos conselhos regionais e federal de medicina”, afirmou Ornellas. Em sua palestra, fez uma longa análise da construção do racismo no Brasil e como isso afeta inclusive o tratamento à população negra no SUS. “Precisamos assumir que o sistema olha de forma diferente para seus usuários e ignora as condições cotidianas que afetam a saúde negra.”

No entanto, momentos como este também representam congraçamento e união de forças. No caso, o 17º Congresso da SBMFC, foi um momento de convergência na direção do fortalecimento do SUS e dos investimentos públicos em saúde.

“Enfrentamos tempos turbulentos e estivemos o tempo todo presentes na construção de uma linha para a saúde e de boas políticas para a área. Em quatro anos, queremos chegar a R$ 20 bilhões de investimentos na medicina de família e comunidade. Nós vamos transformar essa especialidade, será uma revolução. Aposto na juventude, nos novos médicos e médicas. Uma saúde forte tem de estar onde o povo está. Essa é a meta de nossa especialidade”, resumiu Zeliete Zambon.

Foto: Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade – SBMFC

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