Com doença degenerativa causada por agrotóxicos, ex-agricultora pode vencer processo contra multinacional

Ação judicial é exemplo para outros agricultores familiares da fumicultura que adoeceram no trabalho

Raquel Torres, Brasil de Fato

Lídia Maria Bandacheski do Prado tinha apenas 40 anos quando recebeu um laudo médico atestando que ela nunca mais poderia voltar ao trabalho. Na prática, a agricultora já sabia disso: fazia quase uma década que ela estava afastada das lavouras, incapacitada pelos efeitos de uma intoxicação crônica causada por exposição a agrotóxicos.

Além de dores insuportáveis no corpo, Lídia tem formigamentos, fraqueza e espasmos, perdeu o movimento das pernas e tem depressão. Ela sofre de polineuropatia tardia induzida por organofosforados, uma doença neurológica degenerativa, que não tem cura. “Acabei de sair de umas cinco ou seis semanas de episódios de espasmos. A dor neuropática, de tempos em tempos, dá uma trégua e depois volta a acontecer novamente. Não é fácil conviver com isso”, ela relata.

A saúde de Lídia não vai voltar ao que era antes, mas seu caso pode ser o primeiro a resultar na responsabilização judicial da empresa fumageira que a colocou nessa situação – a Alliance One.

Em 2015, assim que Lídia recebeu um laudo médico indicando que estava permanentemente incapacitada para trabalhar, ela entrou na Justiça do Trabalho com uma ação contra a empresa. O processo é longo, e a Alliance One tem feito de tudo para barrá-lo, recorrendo de cada decisão. Mas, até agora, não conseguiu.

A ação já passou pela primeira instância, onde o juiz responsável deu razão a Lídia, reconhecendo o diagnóstico da polineuropatia, o nexo causal entre a doença e suas atividades na fumicultura e a relação de trabalho entre a agricultora e a Alliance One. Também foi determinado que a Alliance One é obrigada a Lídia pagar um valor mensal – atualmente, cerca de R$ 6 mil – que cobre o tratamento mínimo necessário para aliviar os sintomas de Lídia. Os custos são altos e envolvem desde os medicamentos até fisioterapia e acompanhamento com especialistas.

A empresa entrou com recursos que foram julgados na segunda instância, ou seja, o Tribunal Regional do Trabalho (no caso de Lídia, o TRT-9). Lá, em agosto, os desembargadores mantiveram o entendimento.

Agora, a empresa provavelmente vai entrar com seu último recurso. Ele vai ser julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, onde os ministros terão a palavra final sobre o caso. “Se o recurso for negado, será aberta uma discussão mais profunda sobre a relação entre os agricultores e as empresas fumageiras” afirma Vânia Moreira dos Santos, advogada de Lídia.

Nesse caso, haverá precedente para que outros agricultores em situação semelhante também possam obter justiça: “É fundamental que os ministros estejam sensibilizados para essa questão, que conheçam o caso, porque esse não é um problema só da Lídia”, aponta Vânia.

Para Alliance One, a culpa é da vítima

A relação entre Lídia e a Alliance One começou quando ela tinha apenas 13 anos e ainda morava com a mãe. Na época, a família começou a trabalhar com a Vera Fumos, que ao longo dos anos se fundiu com outras empresas, formando o que hoje é a Alliance One. Depois que Lídia se casou, continuou trabalhando com o marido para a mesma companhia.

Praticamente toda a produção de fumo no Brasil é feita por agricultores familiares em um modelo chamado Sistema Integrado de Produção. As empresas fumageiras firmam contratos de compra e venda com os agricultores, que têm pouca ou nenhuma autonomia em relação à cadeia produtiva.

São as empresas que determinam os insumos que serão utilizados (os adubos químicos e agrotóxicos); vendem esses insumos aos agricultores; dão assistência técnica por meio de orientadores que visitam a produção de tempos em tempos; controlam o preço que pagarão pelas folhas de tabaco produzidas; e compram a produção no fim da safra. Aos agricultores, cabe apenas cumprir as exigências. “A gente não podia usar nada de fora, só o que a empresa orientava, se não, eles não compravam a produção. Eles [orientadores] vinham sem hora marcada, levavam uma amostra, e se tivesse qualquer coisa diferente, eles não compravam”, recorda Lídia.

Segundo Vânia, a Alliance One questionou sua responsabilidade no adoecimento de Lídia, alegando que não havia vínculo empregatício. No entanto, os contratos reunidos no processo comprovam que, mesmo sem vínculo, havia clara relação de trabalho – e as decisões da Justiça, até agora, estão de acordo com isso.

Além disso, empresa chegou a argumentar que Lídia é a única culpada por sua doença: “Se a autora de fato desenvolveu moléstia em razão do manuseio de defensivos agrícolas, foi por culpa exclusiva sua, pois isso somente teria acontecido porque ela não adotou as práticas recomendadas”, escreveram os advogados da empresa, em contestação à primeira instância, ainda em 2016.

“Mas um dos pontos mais importantes da decisão é o entendimento de que, uma vez que a empresa assume o contrato e fornece os insumos, ela tem a obrigação de cumprir a norma técnica de proteção e cuidado ao ambiente de trabalho”, explica Vânia. Afinal, como ressalta Lídia, ela apenas seguia as orientações da empresa: “A gente fazia tudo corretamente, usava tudo como eles falavam. E o chato mesmo era que eles não falavam dos riscos à saúde. Eles só passavam uma receita: ‘Passa tanto disso, passa tanto daquilo’. Em todo o tempo que trabalhei, nunca participei de nada em que eles dissessem que os agrotóxicos iam fazer mal.”

A Alliance One ainda tentou refutar todos os laudos médicos apresentados por Lídia, contratando um perito que afirmou ser “improvável que este quadro [a doença] tenha sido determinado por intoxicação crônica por agrotóxicos”.

Outra alegação da empresa foi a de que o processo já estaria prescrito no momento em que se entrou com a ação. “Eles diziam que Lídia já sabia da doença há muitos anos antes de entrar com a ação”, diz Vânia.

Nesse sentido, a decisão da Justiça foi muito importante: o entendimento foi o de que o caso não estava prescrito, uma vez que a ação foi movida logo que se obteve um laudo constatando que a agricultora estava permanentemente inapta para o trabalho. Isso abre caminho para outros ex-fumicultores que estejam incapacitados para o trabalho: assim que conseguirem um laudo médico indicando que a condição é permanente, eles podem procurar a Justiça do Trabalho para abrir um processo como o de Lídia.

Luta por diagnóstico

Lídia começou sua história na fumicultura do mesmo jeito que muitos dos seus familiares e vizinhos contemporâneos – ainda na infância, ajudando os pais na lavoura. Ela nasceu em Rio Azul, o município que mais produz fumo no Paraná. “Eu sempre digo que era do berço pra roça, né? A gente vivia com os pais nos galpões de fumo, as crianças já eram levadas para as roças ainda recém-nascidas. Então, muito menina, já comecei a trabalhar, fazendo as tarefas que conseguia fazer”.

Depois que seu pai morreu, o trabalho ficou ainda mais pesado para ela, que, então com nove anos, precisou abandonar a escola para “trabalhar feito um adulto”, em suas palavras. “Na minha adolescência, eu assumia muito o trabalho. Quando chegava o tempo de pulverização (de agrotóxicos), era comigo mesma. Eu tinha muita pena de minha mãe botar uma máquina pesada nas costas. [Pensava]: Minha mãe já sofreu tanto, eu sou mais nova, tenho um corpo que vai aguentar. Então eu passava com a máquina nas costas pulverizando a área. Quando eu casei, não mudou muito, porque tínhamos muitos pés de fumo e eu ficava com pena de o meu marido ficar sozinho. Então a gente dividia o trabalho.”

Desde criança, Lídia já tinha sintomas de intoxicação, como enjoos, dores de cabeça, diarreia e vômitos, mas nem imaginava que poderiam ser causados pela exposição a agrotóxicos. No começo dos anos 2.000, eles se tornaram mais fortes e frequentes, e ela começou a ter também alucinações, fraqueza, formigamento no corpo e ínguas no pescoço e na barriga.

“Eu sentia uma fraqueza muito grande e paralisias – eu paralisava, mesmo, na lavoura. Estava colhendo fumo, colocando debaixo do braço, e de repente gritava pelo meu esposo: ‘Corre a me acudir aqui porque eu não consigo me mover’. As paralisias foram ficando cada vez mais fortes, mais fortes, mais fortes, foi acontecendo quase diariamente”, lembra a agricultora, que procurou atendimento médico várias vezes, sem obter uma resposta para o seu problema.

Mas um dia, após décadas de exposição, o problema se mostrou insustentável: Lídia estava quase terminando de aplicar venenos em sua plantação de fumo quando passou mal, chegou a desmaiar e precisou de atendimento em hospital. O ano era 2007, e essa foi a última vez em que ela trabalhou numa lavoura.

Lídia precisou passar por uma verdadeira peregrinação por serviços de saúde, públicos e particulares, até conseguir um diagnóstico. Em 2010, um laudo médico atestou que ela sofria por intoxicação crônica decorrente da exposição ambiental e ocupacional aos agrotóxicos. Dois anos mais tarde, outro laudo deu o nome exato de sua doença – a polineuropatia.

Ponta do iceberg

As dificuldades que Lídia enfrentou para conseguir um diagnóstico evidencia que, apesar de as intoxicações por agrotóxicos serem eventos de notificação compulsória, elas muitas vezes não são sequer identificadas nos serviços de saúde.

“O caso da dona Lídia é emblemático porque ela teve vários episódios de intoxicação aguda por agrotóxicos, e os serviços de saúde nunca fizeram uma relação entre os sintomas e os agrotóxicos. Existe, sim, uma dificuldade porque sintomas são muito inespecíficos, como dores de cabeça, náuseas e vômitos. Mas se os profissionais de saúde tivessem perguntado com que ela trabalhava, ou a que produtos tinha estado exposta no tempo recente, poderiam fazer a associação com o uso de agrotóxicos e com o seu trabalho. E, evidentemente, o serviço de saúde poderia ter oferecido orientações à agricultora nesse sentido”, observa Marcelo Moreno, coordenador do Centro de Conhecimento para os Artigos 17 e 18 da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT/OMS) e pesquisador do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde (CETAB/ENSP/Fiocruz).

Identificar intoxicações crônicas é ainda mais complicado, uma vez que são fruto de exposição de longo prazo, e não pontuais. “Mais uma vez, o caso da dona Lídia é simbólico porque, apesar dessa dificuldade, ela conseguiu um diagnóstico e conseguiu provar o nexo com o trabalho”, diz Moreno. Nesse sentido, ele ressalta que a ação judicial serve de exemplo para outros agricultores familiares da fumicultura que adoeceram em função de suas atividades laborais.

Com as decisões da Justiça até agora, dona Lídia conseguiu garantir recursos para um tratamento adequado. Ela toma medicamentos que a ajudam com as dores, faz exercícios, tem acompanhamento permanente com vários especialistas. Mas a medicina diz que ela nunca vai recuperar sua saúde. Mesmo com o melhor tratamento disponível, Lídia ainda tem vários episódios de dor intensa e espasmos, além de crises de ansiedade e depressão.

Uma decisão dos ministros da última instância mantendo a condenação da Alliance One é o mínimo que ela diz esperar, em termos de justiça.

“Eu fiz corretamente tudo o que a empresa e estou pagando com minha própria vida. Perdi inclusive a possibilidade de trabalhar, o que até hoje dói muito. Então chega uma hora que alguém tem que ser responsabilizado por isso”, conclui.

Procurada pela reportagem, a Alliance One afirmou que “não se manifesta em relação a processos judiciais em andamento”.

*Texto publicado originalmente em inglês

Edição: Rodrigo Durão Coelho

Imagem: A empresa argumentou que Lídia é a única responsável por sua doença – Reprodução

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