“A única forma de resolver o problema da fome no Brasil é fazer Reforma Agrária”

João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST, faz balanço sobre a reforma agrária no governo Lula e anuncia jornada de outubro

Por Lays Furtado, na Página do MST

A retomada das políticas de reforma agrária no Brasil, após anos de desmonte dessas mesmas políticas, traz uma expectativa muito grande para os movimentos de luta pela democratização da terra e pela garantia dos direitos fundamentais no país.

Devido a uma herança orçamentária determinada ainda no governo Bolsonaro, os recursos do Incra neste ano de 2023, equivalente a 250 milhões de reais, é o menor em 20 anos e corresponde a menos de 10% do orçamento da pasta de 2010. Além disso, o orçamento para obtenção de terras foi zerado desde 2019.

Após a gestão dos primeiros 9 meses de governo, João Paulo Rodrigues, da direção nacional do MST, faz um balanço sobre as percepções do movimento sobre as emergências da reforma agrária e comenta sobre as próximas jornadas deste mês de outubro.

Segundo balanço divulgado pelo Incra, 12 dos 20 Planos de Assentamentos (PAs) planejados para este ano foram feitos, beneficiando 548 famílias. A meta ainda este ano é de assentar um total de 5.711 famílias e chegar até março de 2024 ao marco de 7200.

Já a regularização das famílias assentadas em PAs foi de 3684 famílias, frente a meta de 40 mil estipulada para este ano. A emissão de títulos atingiu 35% do público previsto, chegando a 19809 famílias camponesas.

Com relação a concessão do crédito-instalação, a meta até o final do ano é de atender 62334 famílias, até o momento apenas 17,7% dos beneficiários foram atendidos, o que corresponde a 11049 famílias.

A expectativa da execução de tais políticas públicas estão diretamente voltadas para as  urgências que atingem a classe trabalhadora nas zonas rurais e que refletem também na população urbana. Neste sentido, João Paulo menciona as perspectivas atuais e futuras sobre a implementação de políticas voltadas para o desenvolvimento agrário.

Ele convoca o conjunto da militância para se somar nas jornadas de outubro, principalmente no engajamento do combate à fome, que inclusive é uma das matrizes prioritárias do atual governo.

Confira entrevista na íntegra:

Frente ao cenário de limitações para a implementação das políticas de reforma agrária, a expectativa do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) é que até março do pŕoximo ano serão assentadas 7200 famílias. Qual a previsão feita pelo movimento da execução dessa política até o final do atual mandato de Lula?

A nossa expectativa – e é por isso que nós elegemos o presidente Lula – foi para mudar a situação agrária no país, para que o Lula de imediato assentasse todas as famílias acampadas. Segundo o Incra, tem 57 mil famílias acampadas e nos números do MST, passa de 65 mil famílias acampadas. O orçamento previsto para esse ano é ridículo. Um orçamento herdado de Bolsonaro que dá para sentar menos de 7 mil famílias. Nós estamos pressionando tanto o MDA e o Incra para que execute o quanto antes esse dinheiro que já está disponível, que é aproximadamente 250 milhões. A informação que tivemos essa semana é que o Incra já executou ou empenhou mais de 80%, ou seja, está andando no ritmo até razoável. Agora é muito insignificante para o tamanho da demanda, que terá que assentar aproximadamente 67 mil famílias. Nós estamos também em reuniões e contato com o Ministério da Fazenda, na pessoa do ministro Fernando Haddad e com o ministro Rui Costa. E, claro, falamos para o próprio presidente Lula.

É importante que as pessoas da nossa base, da nossa militância, que acompanhe o tema da reforma agrária saberem que a conta é mais ou menos assim: para assentar 50 mil famílias por ano, o governo precisa de pelo menos 2 bilhões e 800 milhões reais para fazer o assentamento. Isso é para pagamento de desapropriação de terra ou compra de terra para fazer o assentamento das famílias. A nossa avaliação é que nós precisávamos, pelo menos nesse período, do governo Lula, assentar no mínimo 200 mil famílias. Significa que nós precisaríamos de um orçamento de 2,8 bilhões por ano para o assentamento de 50 mil  famílias por ano. Nós estamos pressionando, estamos brigando com o governo, com a área [do Ministério] da Fazenda, para que a gente possa avançar nessa direção. Nós temos uma quantidade de gente acampada há mais de seis anos. Então, é muito importante que nós tenhamos urgência no processo de obtenção de terra.

O Lula está tentando trabalhar com outras variáveis possíveis, que é justamente fazer acordo com os governos estaduais nas áreas públicas e devolutas. Só que no interior de São Paulo, Pontal do Paranapanema ou mesmo na Bahia, no Pará, nós temos quantidade imensa de terra que daria para sentar parte das famílias. Também estamos tentando fazer acordo com os devedores da União, para que o Estado pegue essas áreas dos devedores e as transforme também em assentamentos de reforma agrária. Então, também estamos fazendo esforço para que isso aconteça. De qualquer forma, o importante é que o governo federal sinalize para a sociedade, para os movimentos populares e para quem está acampado, que está fazendo o esforço de ajustar o orçamento e colocar a máquina do Incra para funcionar em defesa da reforma agrária.

Ainda estamos preocupados porque o orçamento previsto e enviado ao Congresso Nacional para o ano que vem é muito baixo. É um orçamento menor de 500 milhões [de reais] e isso nós achamos que não vai dar conta do próximo período. Uma coisa é ter um orçamento baixo no governo Lula, que o orçamento veio do Bolsonaro. Outra coisa é o próprio Lula mandar um orçamento muito baixo. Mas eu acho que o Congresso vai corrigir a tempo, junto com o Ministério da Fazenda e o Ministério do Planejamento.”

Segundo o MDA, a primeira etapa do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) possui orçamento de 250 milhões de reais e será executada na modalidade de compra pela Conab a partir de 15 de outubro. A pasta ainda prevê outra etapa do mesmo valor a ser implementada pelos estados e municípios. Por que você acha que essa política demorou tanto tempo para ser implementada e qual o impacto que ela terá para na comercialização da produção das famílias camponesas Sem Terra?

É inacreditável como é que uma empresa tão importante como essa, muito burocratizada, não estava a serviço da reforma agrária, muito menos da agricultura familiar. Nós demoramos quase três meses para nomear o presidente da Conab, por enes burocracia. Depois disso, demorou muito para chegar os recursos disponíveis para compra dos produtos e, por último, se criar um conjunto de normas para que pudesse atualizar e fazer as compras. Me parece que as compras já começaram há uma semana atrás. Nesse primeiro momento tem prioridade, em especial projeto das mulheres e projetos de quilombolas, que nós achamos que é um grande componente para a agricultura familiar. Estamos tentando ver que essa primeira etapa seja o quanto antes executada, para que o conjunto dos demais setores da reforma agrária que não estão organizados como mulheres ou quilombola, tenham acesso às compras da Conab.

Nos preocupa porque na agricultura, a Conab quando vai comprar os produtos não é como comprar ferramenta ou máquina agrícola, é comprar produção e a produção tem período específico. Eu não consigo deixar estocado farinha de mandioca por muito tempo, mandioca, ou a própria abóbora, ou alface, e assim por diante. Eu tenho um período para produzir e vender. Por isso que nós estamos pressionando muito para que a Conab execute o quanto antes esses 250 milhões. Mesmo porque os movimentos populares e associações de cooperativas já pleiteiam, ou seja, apresentar em forma de projeto aproximadamente 1,1 milhões de produtos que podem ser vendidos para Conab. Ou seja, se nós não correr contra o tempo, nós não vamos conseguir atender esse conjunto da demanda. Neste caso específico, o presidente Lula diz que não faltará recurso para Conab, diferente do Incra. Porém, o governo tem que adiantar o passo. Nós fizemos reuniões com a Conab, entregamos as nossas demandas, estamos pressionando a Conab e me parece que começou a entrar no ritmo.

O que nós estamos falando para o presidente da Conab, junto com o ministro da Reforma Agrária, Paulo Teixeira, que é importante que o governo, no dia 16 de outubro, possa sinalizar no Dia Internacional da Alimentação, o que a Conab fez e quais os planos dela até o final do ano. Quem tem fome tem pressa e quem produz também tem pressa. Então, esse é o esforço da Conab, como uma grande empresa de alimentação para responder às demandas do presidente Lula e do Brasil.”

Uma das principais políticas de educação no campo é o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que atualmente está com 21 cursos em andamento aguardando a liberação de orçamento para serem concluídos, além de outros 38 projetos que estão em análise e que também estão  aguardando liberação orçamentária para sua implementação futura. Considerando sua trajetória, qual impacto dessa política no campo ao longo de seus 25 anos de existência? Além dela, o que a população no campo precisa para evitar o êxodo rural da nova geração de camponeses e camponesas?

O Pronera talvez seja uma das políticas mais importantes de afirmação de uma nova agricultura, de um novo modelo agrícola de reforma agrária popular construído nos últimos anos. Uma grande conquista, porque é a forma de você garantir que uma juventude possa ter acesso a um curso de nível superior, numa boa universidade, e com um regime super bacana que é de alternância, onde as pessoas ficam uma parte do tempo no curso e uma parte do tempo dentro do assentamento. Isso é muito importante porque garante o vínculo durante todo o processo de formação.

Já pasaram pelos cursos do Pronera entre a alfabetização de jovens e adultos, junto com os cursos técnicos de capacitação, cursos de formação de educadores e educadoras, de graduação de mestrado e doutorado, aproximadamente 190 mil jovens. Uma grande conquista ao longo desses anos.”

Qual é o problema? O Bolsonaro esvaziou completamente o Pronera, hoje para atender os cursos que já estão em andamento e os projetos que estão em reivindicação, nós precisávamos de pelo menos 250 milhões [de reais]. O problema é que os recursos do Pronera são recursos do Incra e não do Ministério da Educação. É por isso que tem que ter uma suplementação organizada pela própria Casa Civil, Presidente da República, diretamente para o Incra e para esse programa específico que é o Pronera. Nós estamos reivindicando desde o início do ano, estamos pedindo que o próximo orçamento do ano que vem possa ter disponível o recurso.

Todos nós sabemos que não tem como parar o curso e dizer vou voltar daqui dois anos. Você tem uma evasão grande, você tem problemas de organização da turma, que seria um prejuízo muito grande. Para você ter uma idéia, o MST já formou mais de sete turmas em Direito, mais de 350 jovens Sem Terra, oriundo de acampamentos e assentamentos que são advogados, formou quatro turmas de veterinários, e na área de educação, centenas de jovens foram formados em pedagogia e uma série de outros cursos, arte e assim por diante. Por isso, o Pronera é uma conquista não só dos trabalhadores do campo, mas de toda a sociedade. E é a condição para que a reforma agrária dê um salto de qualidade, ou seja, nós ocuparmos o latifúndio da produção agrícola e resolver o problema da ausência de uma política de educação do campo nesse país.

Um especial lançado pela Folha de S. Paulo neste final de semana mostra como o “centrão” aparelhou o acesso à água para fins políticos, ainda durante o governo Bolsonaro. Neste cenário, a população rural, principalmente em regiões de seca, são as mais afetadas. Como será possível resolver essas lacunas considerando um governo de frente ampla com tantos interesses em jogo?

Eu estou muito animado que os compromissos do Lula com os movimentos no campo, com os mais pobres, tem sido muito ressaltado em todas as falas dele. Mas o estrago feito por dois anos de golpe e mais quatro anos do governo Bolsonaro, que é a continuação do golpe, é terrível. Porque além de ele ter feito uma reforma trabalhista que precariza o conjunto dos serviços no campo e aumentou os trabalhos análogo à escravidão, que talvez sejam os piores crimes para os trabalhadores, houve um cercamento de todos os recursos naturais do campo e aumentando a privatização ou a grilagem de terras públicas, terras devolutas e terras da União. E nessas terras, o que tinha de mais precioso, que são justamente as reservas minerais, as reservas de ouro, diamante e assim por diante, que é o que eles mais se interessavam.

Mais do que isso, as águas de todo o país. Houve um processo de privatização das represas, constituída com recurso público que todas elas leva de presente às represas. Houve um processo de privatização das beiradas de rios para concessão de hidrelétricas e outras coisas parecidas. E nós vamos ver uma tentativa agora de privatização das empresas públicas de saneamento, como é o caso da Sabesp aqui em São Paulo, como é o caso da empresa de Saneamento e Água do Rio de Janeiro, que isso é um prejuízo para a sociedade, para o conjunto dos trabalhadores, muito grande.

O que nos preocupa é que este agronegócio agora está indo com uma força muito grande para utilizar essas áreas de preservação ambiental e que tem ainda lençol freático significativo, para o processo de irrigação das suas culturas, dos seus produtos e deixando trabalhadores, agricultores, pequenos agricultores sem terra, na seca, sem ter acesso a água. Nós, dos movimentos populares, do MST, estamos muito preocupados porque há uma diminuição na produção agrícola, em especial dos produtos que vai para a nossa mesa, fruto dos problemas climáticos e ambientais no país.”

Excesso de água em determinados períodos e um excesso de seca. Portanto, uma política hídrica que leva em consideração a produção de alimento para a agricultura familiar é essencial. Em que o Estado brasileiro, junto com o Congresso Nacional e o presidente Lula, liderem esse processos, em especial nesse momento que nós vamos sediar daqui dois ano a COP30 no Brasil e que nós temos que estar com todos os grandes temas que preocupam a sociedade e a humanidade em dia para prestar conta – água, florestas e tudo mais. Eu estou muito convencido que o governo Lula vai ter uma postura muito mais radicalizada contra isso no próximo período, é óbvio, priorizando a produção de comida no Brasil.

O MST acaba de enterrar mais uma CPI contra o movimento, que foi a quinta nos últimos 20 anos. O que essa vitória significa para o movimento que está prestes a completar 40 anos?

Isso é uma alegria para nós muito grande, porque se o locutor Galvão Bueno tivesse transmitido, ele diria como no tetra, é penta, é penta, é penta. Foram cinco CPIs enterradas. E todas elas demonstraram que vieram para criminalizar, para criar uma política de ódio contra MST. E nenhuma delas conseguiu. Ambas no governo Fernando Henrique, no governo Lula, governo Dilma e essa agora no governo Lula de novo. Nós estamos convencidos de que o caminho da luta pela terra é um caminho sem volta, enquanto houver latifúndio improdutivo nesse país. Estamos convencidos que a ocupação do latifúndio improdutivo para denunciar é uma forma de luta respeitada pelo Judiciário brasileiro e confirmada agora pela Suprema Corte [Supremo Tribunal de Justiça], de que terras que não cumprem a função social, devem ser destinadas para reforma agrária.

O MST demonstrou ao longo desses anos, que nós fizemos talvez um bem para a sociedade brasileira, ao garantir que mais de 2 milhões de pessoas tivessem acesso a terra, casa e dignidade

No Brasil, nós temos aproximadamente 21 milhões de pessoas que vivem sem saber o que comer, nenhuma é do MST. Nós vivemos com centenas de crianças fora da escola, nenhuma é do MST. Nós não temos nenhum dirigente do MST que está preso porque cometeu qualquer crime que foi acusado durante a CPI. É por isso que o MST é uma organização política que faz luta, que tem responsabilidade. E a principal tarefa nossa nessa atual conjuntura é na luta para defender o governo Lula, democratizar as terras e produzir alimento saudável. Eu não sou daqueles de dizer que o MST saiu mais fortalecido da CPI, CPI não ajuda em nada. Mas nós reafirmamos que essa CPI seria um desserviço para o Congresso Nacional, para o governo e para os movimentos populares. E terminou em tempo de nós reafirmar o compromisso com as bandeiras históricas do nosso movimento.

Este mês, em virtude do dia mundial da alimentação, o MST fará uma jornada de lutas pela reforma agrária e no combate à fome. O que devemos esperar dessa mobilização nacional?

Outubro é um momento importante de luta neste país. Nós vamos ter um encontro da juventude para celebrar o futuro da reforma agrária. E que é um mês muito simbólico, que tem um 16 de outubro, que é o Dia Internacional da Luta em Defesa da Alimentação, onde o nosso movimento irá se mobilizar no país inteiro, fazendo doação de alimentos, mostrando as possibilidades de alimentos sem agrotóxicos, fazendo críticas pelo uso demasiado de agrotóxicos e trabalho análogo à escravidão e pressionando o governo Lula a aumentar sua produção, assentar o máximo de família possível. Então, quero aproveitar esse momento para convocar todos e todas para que na semana do 16 de outubro, faça algum gesto em defesa dos alimentos saudáveis, em defesa da reforma agrária e em defesa da agricultura familiar.

É muitíssimo importante que além dos movimentos do campo, de que quem está na cidade, os consumidores, se envolvam nessa luta que é uma luta de todo o Brasil. Não é possível nós convivermos com 21 milhões de brasileiros que não têm o que comer.

Só vamos mudar essa situação com muita luta, com muita manifestação, mas acima de tudo, com a unidade política das forças progressistas contra quem fez esse país voltar para o mapa da fome. E reafirmando o compromisso que a única forma de resolver o problema da fome no Brasil é fazendo reforma agrária, é distribuindo terra para o povo Sem Terra.” 

Confira entrevista completa:

*Editado por Fernanda Alcântara

João Paulo Rodrigues. Foto: Priscila Ramos

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