Uma série de fatos está tornando instável o cenário político. As mobilizações sociais voltaram e a economia cresce, mas há ameaças como a irrupção da violência e as chantagens do Centrão. Governo precisa entrar nas disputas, mas ainda não se deu conta disso
1.
Há um novo momento na conjuntura política quando se inicia o décimo mês do governo Lula. Em uma mesma conjuntura há oscilações nas relações políticas [de] força. Em uma mesma situação na luta de classes podem suceder-se diferentes conjunturas, sem que a relação social de forças mude. A situação permanece estável. Nem o governo, nem a oposição de ultradireita se fortaleceram ou enfraqueceram, qualitativamente. Situação e conjuntura são dois níveis distintos de análise. Mas a estabilidade da situação política não diminui a importância da análise mais fina da conjuntura.
2.
O novo momento da conjuntura se define por cinco fatores: (a) a continuidade dos indicadores positivos de recuperação econômica; (b) o impacto de lutas defensivas contra a iminência de privatizações em São Paulo; (c) a precipitação de um novo auge da crise estrutural da insegurança pública; (d) o choque provocado pela delação de Mauro Cid e a iminência de uma possível criminalização de Bolsonaro; (e) a reação grotesca do Congresso Nacional contra o STF depois da votação inconstitucional da tese do Marco Temporal.
3.
Tudo é o contrário do que parece. A esquerda está perdendo oportunidades. As chantagens do Congresso contra o STF e, em menor medida, contra o governo, mesmo depois da incorporação de ministros do centrão, são defensivas. A relação política de forças mudou. Há uma imensa confusão porque o governo, inacreditavelmente, não faz luta política. Lula foi eleito, mas capitula às absurdas pressões do centrão, que quer impedir que se cumpra o programa aprovado pelas urnas. O esdrúxulo é que agora o Centrão não quer que o Supremo possa julgar.
4.
A situação defensiva do bolsonarismo depois da derrota do 8 de janeiro repousa na iniciativa do STF. A verdade é que Parlamento perdeu as eleições, mesmo se a “cabala” de direita e extrema direita tenha maioria no Congresso. A maioria que se alinha atrás de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco sustentou o governo derrotado que não foi reeleito. Bolsonaro perdeu. A maioria reacionária no Parlamento fala em nome do país contra o STF, mas não tem legitimidade. O Supremo Tribunal Federal é o único dos três poderes que não foi eleito, mas foi a trincheira mais importante de defesa da Constituição. Ocupou um papel central na linha de defesa contra o golpismo. Está mais que na hora do governo reagir. Um passo em frente de cada vez. Mas na direção certa. Aprendendo as lições do desastre do governo Alberto Fernandez na Argentina. Não pode sair de costas fingindo que está entrando de frente.
5.
Na infraestrutura da sociedade a recuperação econômica surpreende pela manutenção de uma dinâmica de crescimento que pode até superar os 3%, ao mesmo tempo que o desemprego caiu para 7,9%, enquanto a inflação permanece estável. A dimensão dos trabalhadores com carteira assinada cresceu 3,4% ou 1,2 milhão de pessoas, e alcançou 37 milhões. Há três anos eram menos de 33 milhões. Esse contexto ajuda o governo porque, aliado ao sentimento de alívio que vem desde a derrota de Bolsonaro na eleição, favorece uma percepção de que vida está melhorando. Na estrutura, onde devemos aferir a relação social de forças, as oscilações são quantitativas, e mantém-se um quadro defensivo, pela insegurança que ainda existe no ânimo das massas populares. Numa palavra, o governo está ganhando tempo. Mas não, indefinidamente. O impacto das operações policiais de repressão com a sucessão de três semanas seguidas de chacinas incide na consciência de milhões, porque ninguém consegue perceber qual é a diferença entre a estratégia de segurança pública de governos de esquerda, e a política de “guerra às drogas” da extrema direita.
6.
Mas o desafio colocado, em São Paulo, pela greve unificada dos metroviários, ferroviários e trabalhadores da Sabesp contra as privatizações do governo Tarcísio, conquistou uma surpreendente simpatia popular, sinalizando que pode estar acontecendo uma mudança no estado de espírito das massas populares. A greve da USP pela contratação de docentes e por mínimas condições de assistência estudantil é, também, um indicador interessante, pela adesão em massa dos estudantes e solidariedade dos professores contra a decadência das Universidades Públicas. Ou seja, há reação no movimento sindical e estudantil contra a ofensiva do governo mais reacionário do país, o mais alinhado com o bolsonarismo.
A burguesia concluiu, rapidamente, o que está em disputa. Greve contra privatizações são uma forma muito elevada de luta de classes. Claro que há uma dimensão, estritamente, defensiva dos trabalhadores que sabem que haverá uma onda brutal de demissões. Mas trata-se de uma luta política em defesa de serviços públicos de transporte, e contra a mercantilização da água. Eles lutam por todos nós. A solidariedade foi quase invisível. Infelizmente, a imensa maioria da esquerda, e até dos movimentos sociais praticou, até agora, sonambulismo.
7.
O desfecho da luta contra as privatizações em São Paulo está em disputa. Não há nada que possa explicar o silêncio do governo federal. Biden foi até Detroit apoiar a luta dos trabalhadores da indústria automobilística por aumento de salários. Se até um presidente do partido democrata dos EUA, um partido umbilicalmente articulado com uma fração do capitalismo mais poderoso do mundo, foi capaz deste gesto, por que nem só ministro do governo Lula pode se posicionar contra as privatizações? Por que nenhuma liderança do governo pode defender os sindicatos, quando a linha do governo Tarcísio é a criminalização da greve? Se o governo Tarcísio derrotar a greve, e privatizar tudo, o impacto será devastador. Alguém está tão distraído, que não percebeu que a denúncia de partidarização da greve responde à tática de demonizar Boulos? É hora de cercar a luta de solidariedade e construir uma muralha de autodefesa com uma Frente Única de Esquerda.
8.
Na superestrutura a luta institucional mudou de patamar com a ofensiva reacionária do Parlamento, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado contra o STF (Supremo Tribunal Federal): a bancada BBB (Boi, Bala, Bíblia) na defesa do Marco Temporal, com a apresentação de projetos para que: (a) o Congresso suspenda decisões do STF; (b) para que o Congresso regulamente o regimento interno do STF desautorizando decisões monocráticas, impedindo que um só ministro possa pedir vistas dos processos; (c) que o Legislativo aprove, antes das deliberações do STF, PECs de viés conservador ou francamente reacionário sobre temas como aborto, descriminalização das drogas, o imposto sindical e o marco temporal. Ou seja, há reação da fração mais reacionária da burguesia contra o papel do STF de levar adiante a punição dos golpistas do 8 de janeiro, e o receio de que possa atingir oficiais generais das Forças Armadas e quiçá, o próprio Bolsonaro.
9.
As pesquisas de opinião reafirmam que a maioria da população, em especial nos grandes centros, reconhece a legitimidade do governo, mas no contexto de um país ainda fraturado. Aprovação e desaprovação são equivalentes. A fração mais importante da classe dominante que se mantém na oposição é o agronegócio, mas arrasta a massa da burguesia e, também, uma maioria das camadas médias acomodadas. Duas conclusões seriam precipitadas. A primeira seria desconsiderar o perigo que a extrema-direita ainda representa, e sossegar transferindo para o STF a responsabilidade pela punição do bolsonarismo. A segunda seria desconsiderar o perigo que as sucessivas concessões do governo ao centrão terão no horizonte de médio prazo.
10.
A questão estratégica de fundo que será decisiva para o destino do governo Lula é o crescimento econômico. E nada está garantido. A estratégia de governabilidade a “frio” do governo de Frente Amplíssima não conseguiu avançar além dos limites impostos pela maioria liderada por Lira na Câmara e a presidência de Campos Neto no Banco Central: os juros da taxa básica Selic mantém-se muito acima da média mundial, e não vão mudar de patamar, se considerarmos: (a) a estratégia do Federal Reserve dos EUA de manter, ou até aumentar a taxa básica, atraindo como um aspirador o entesouramento internacional, e tornado menos atrativo investimentos externos no Brasil; (b) a pressão que virá de provável aumento dos combustíveis, que parece provável com o impasse na guerra da Ucrânia. Do Banco Central com Campos Neto não sairá nada. A votação do arcabouço fiscal suavizou o estrangulamento aos investimentos do Estado através do PAC, mas transferindo para o setor privado o papel central no impulso da economia.
O terceiro governo Lula, sabia-se desde o início, será marcado por disputa e instabilidade. São os sinais da longa crise brasileira, que se imbrica com o impasse civilizatório global. O resultado da disputa, seja qual for, produzirá consequências de longo prazo. Há muito em jogo. Por isso, é ainda mais necessário estudar com atenção o cenário – e jamais agir no automático.
–
Foto: Ricardo Stuckert