Decisão dos ministros deixou de fora redução da pena quando cumprida em locais com inadequações; propostas de intervenção devem ser executadas em três anos
Por Catarina Duarte, na Ponte
Por decisão unânime, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceram a existência de estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, admitindo que existem violações massivas dos direitos dos presos. A decisão atende a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, apresentada pelo PSOL e que começou a ser julgada em 2015.
”Espero que seja um resultado relevante para melhorar minimamente as condições degradantes do sistema prisional brasileiro em respeito às pessoas que estão lá privadas de liberdade, mas não de dignidade e no interesse da sociedade a partir da premissa que estabelecemos, de que o sistema penitenciário deficiente realimenta a criminalidade”, disse Luís Roberto Barroso, presidente do STF, durante o julgamento.
O STF determinou que seja elaborado um plano nacional para que sejam superadas as violações com indicadores que permitam que a aplicação das medidas seja monitorada. Estados e o Distrito Federal também têm de elaborar medidas.
O prazo é de seis meses para elaboração do plano e de até três anos para a implementação. O desenvolvimento das medidas nacionais deve ser acompanhado pelo Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (DMF/CNJ) e contar com diálogo com a instituição da sociedade civil.
Celebradas pelos ministros da Suprema Corte, as medidas sozinhas são vistas como irrisórias por especialistas e ativistas ouvidos pela Ponte. Eles defendem que para que além do plano é preciso lidar agir em outras frentes como, por exemplo, descriminalizar o porte de drogas.
Regina Lúcia dos Santos, coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado de São Paulo, coordenadora da Associação de Amigos/as e familiares de presos (AMPARAR) e componente da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo, é cética sobre o poder de mudança que a implementação dos planos pode promover na vida dos presos. Ela argumenta que a manutenção de condições degradantes nos presídios faz parte da lógica ancorada no racismo.
“A política do cárcere no Brasil é desumanizar os corpos que lá estão. Eu não consigo visualizar que haverá uma repercussão na alimentação, na condição de higiene. A falta de elementos para uma alimentação digna não acontece porque os gestores não acompanham o fornecimento. É porque isso faz parte do pacote de desumanização”, afirma Regina.
Ela defende ser necessário discutir a política sobre as drogas e que a polícia tem de atuar de forma mais dedicada à investigação, “seguindo o dinheiro”. “Se houver, e aqui no Brasil não acontece, uma [atuação da] polícia com inteligência na investigação, se combate o tráfico de drogas de forma muito mais eficiente”, diz.
Diego Polachini, coordenador-auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC) da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, pondera que os planos podem ajudar em situações pontuais. Contudo, ele critica a falta de priorização da questão do encarceramento no Brasil pelo governo federal que lançou um plano de ação para a área nesta semana.
“É difícil falar sobre reforma de um sistema que tem a sua origem tão problemática. Pode ser que o Plano que o Governo Federal ajude em problemas pontuais, mas nem isso é garantido, pois, ao vermos o Plano (de enfrentamento das organizações criminosas) lançado recentemente pelo Ministério da Justiça, não há o enfrentamento do encarceramento em massa“, avalia.
Já a Irmã Petra Pfaller, coordenadora Nacional da Pastoral Carcerária, acredita não ser possível falar em uma reforma no sistema prisional sem avançar na lei de drogas atual. “Um terço das pessoas presas hoje estão por crimes previstos na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) – em São Paulo, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz de 2018, metade das pessoas presas por tráfico de drogas levavam consigo no momento da apreensão o equivalente a 2 bombons “Sonho de Valsa”, isto é, 40 gramas”, diz.
Pfaller diz que o Estado e Judiciário enxergam a prisão como única medida aplicável aos caos que neles chegam e que enxerga o desencarceramento como única solução.
“Ainda, é preciso dizer que não acreditamos em reforma do sistema penitenciário: infelizmente, já temos diversas leis, tratados e resoluções que deveriam garantir a existência minimamente digna das pessoas presas e elas são sistematicamente desrespeitadas. Por isso, entendemos que a única possibilidade de garantir a vida digna das pessoas presas é através do desencarceramento”, conclui.
Compensação punitiva
O texto final aprovado pelo STF deixou de fora uma medida considerada importante por especialistas ouvidos pela Ponte. A proposta apresentada por Barroso fala em compensação punitiva, ou seja, redução de pena para presos que estivessem em condições precárias no cumprimento da medida. Rejeitada pelos demais ministros, a proposta ficou de fora da decisão.
Juliane Arcanjo, cientista social, estudante de Direito, pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), ativista da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo e da Associação de Familiares e Amigos de Presos (AMPARAR), diz que a medida teria impacto positivo e serviria uma “instrumento de reparação” já o Estado não é capaz de ofertar ao preso condições mínimas de saúde, higiene e alimentação.
“Quando o Estado torna alguém um custodiado, é preciso que essa pessoa tenha o mínimo de dignidade. Quando falamos em direitos de pessoas encarceradas não é sobre uma vida de luxo”, defende.
Juliane fala que a base dos problemas do sistema prisional é o racismo. É preciso, na análise da ativista, a mudança estrutural na sociedade brasileira.
“O racismo é a metodologia e a base que sustenta as engrenagens do sistema de justiça criminal. Temos uma nação que baseou a justiça criminal no racismo e no controle de corpos indesejáveis”, classifica.
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Foto: Antonio Cruz /Agência Brasil