No TaquiPraTi
Votar no Partido Comunista / Para todos terem terra / E o pão de cada dia / Para o povo liberdade /para o Brasil, democracia.
(Caymmi, jingle da campanha de Prestes, 1946)
Tinha eu 15 anos, em 1962, quando recebi em Manaus a revista do IBAD editada no Rio com a foto de um homem barbudo comendo um pernil. A legenda fake dizia: Comunista russo comendo a perna de uma criancinha. Tremi de medo. O fantasma intravenoso do anticomunismo, que me injetaram no bairro de Aparecida, continua assombrando muita gente desinformada. Aconselho a quem quiser se vacinar contra esse bicho papão a ler o livro, que acaba de sair, sobre um século de história do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
“Cem anos de amor e coragem – Imagens da centenária história de lutas do Partido Comunista do Brasil (1922-2022)”, em papel couchê e capa dura, com 600 páginas, traz mais de 5 mil fotos com imagens de militantes, passeatas, cartazes, jornais, livros, revistas, pinturas, desenhos, charges e mapas do Centro de Documentação e Memória (CDM) Maurício Grabois, do Instituto Astrojildo Pereira, de outros arquivos e até de álbuns familiares com histórias deliciosas.
O livro é fruto do trabalho coletivo de dez anos, sob a coordenação do historiador Fernando Garcia e do jornalista Adalberto Monteiro. Diante de nossos olhos desfila a militância do PCdoB, da sua fundação aos dias de hoje, entrelaçada com a história do Brasil. Estão lá vitórias e acertos, mas também mancadas, vacilos e derrotas dos comunistas brasileiros. Nesse sentido, não se trata de mera propaganda, embora guarde seu caráter de celebração, mas de uma pesquisa histórica bem documentada com visão crítica.
O susto na burguesia
As fotos selecionadas foram organizadas em ordem cronológica e temática. O livro começa com os antecedentes: a Confederação Operária (1906), as disputas com os anarco-sindicalistas e a edição de jornais operários, seguidas da fundação do Partido, em 1922, ano da Semana de Arte Moderna criada, segundo Di Cavalcanti, “para assustar essa burguesia que cochila na glória de seus lucros”. O Brasil tinha então 32 milhões de habitantes, dos quais 24 milhões viviam na roça.
As mudanças do país e do próprio partido são traçadas em cada etapa histórica. Está tudo lá: os poucos anos intercalados de legalidade, a clandestinidade, a repressão, a tortura, as prisões, o exílio, os assassinatos de militantes e simpatizantes, a censura, os jornais empastelados, a resistência, as greves, os conflitos sindicais, as dissidências internas, as alianças políticas, a luta pela paz, o movimento contra a carestia, a relação com operários, camponeses e intelectuais.
Na medida em que se folheia o livro, imagens coloridas e em preto-branco vão mostrando, como num filme, eventos datados: a fundação da Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) em 1929 e dois anos antes da Juventude Comunista, a Coluna Prestes, a revolta tenentista, a filiação de Prestes ao PC (1934) a criação do Bloco Operário Camponês (BOC), que lança em 1930 a candidatura a presidente da República de um operário negro, Minervino de Oliveira.
As fotos se movem como num passe de mágica e registram a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), em 1935, com o lema Pão, Terra e Liberdade, que chegou a reunir 400 mil integrantes, quando o Partido contava com 5 mil filiados. É quando Vargas promulga a chamada Lei Monstro dita de Segurança Nacional, fecha a ANL, cuja sede é invadida pela polícia chefiada por Filinto Muller, ex-membro da Coluna Prestes, de onde foi expulso por corrupção. Mais de 15 mil aliancistas e comunistas são presos.
A torcida do Vasco
Prestes é condenado a 50 anos de prisão. Sua mulher, Olga Benário, grávida, com o aval do STF, é deportada para a Alemanha. Judia, foi assassinada na câmara de gás pelos nazistas. Em 1941, o Partido, realiza na clandestinidade a histórica Conferência da Mantiqueira e organiza a luta contra o fascismo na 2ª Guerra Mundial. Contava então com 1800 comunistas fora da cadeia.
As fotos gritam, comovem e informam: Prestes é anistiado em 1945, o Partido abre sedes em todo o país e realiza comícios no Estádio do Vasco (RJ) com 100 mil pessoas e no Pacaembu (SP) com 130 mil. No ano seguinte, já na legalidade, na eleição para a Constituinte, elege um senador (Prestes) e 14 deputados, dos quais 6 são operários e 12 ex-presos políticos. Mas alegria de comunista dura pouco.
No primeiro aniversário da legalidade, por ordem direta do marechal Dutra, a Polícia reprime passeata no Largo da Carioca, mata dois operários e fere centenas de manifestantes. Na eleição de 1947, o PC elege 45 deputados estaduais em 15 estados e 18 vereadores. Quatro meses depois, o TSE cassou os mandatos de todos os comunistas eleitos pelo voto popular. O Congresso Nacional, em 2013, num gesto simbólico, anulou as cassações por reconhecer terem sido arbitrárias.
As campanhas feitas pelo PC eram duramente reprimidas, como aconteceu com duas delas: As jornadas de rua O petróleo é nosso, que deu origem à Petrobrás, e a luta pela paz na Guerra da Coréia, que matou 3.5 milhões de civis e condenou a militante Elisa Branco a 4 anos e 3 meses de prisão por portar faixa com a frase “Os soldados nossos filhos não irão para a Coréia”.
A imagem de Elisa nos remete ao machismo e à misoginia condenados pelo 4º Congresso do PC (1954), que elege sete mulheres para o Comitê Central e cria a Federação das Mulheres do Brasil.
PCdoB no Amazonas
Um espaço é reservado ao racha do PCB que deu origem ao PCdoB, herdeiro dessa história de um século. A reunião que reorganizou o partido ocorreu em Niterói, em março de 1962, com os presentes cantando A Internacional bem baixinho, num murmúrio, para não atrair a repressão. Outras cisões tratadas com respeito no livro – criação da ALN e do PCBR – homenageiam Marighella, Mário Alves e Gregório Bezerra.
Com o golpe de 1964, seguido do AI-5, a ditadura fecha o Congresso, cassa deputados, proíbe reuniões, reprime sindicatos e institui censura prévia a jornais e a todas formas de manifestação cultural: teatro, música, cinema. Impedido de lutar pelas vias democráticas, o PCdoB organiza a Guerrilha do Araguaia, que merece capítulo à parte. Muitos militantes são mortos, entre eles Carlos Danielli torturado até a morte pelo cel. Ulstra no DOI-Codi. No interrogatório, o torturador exige informações sobre a Guerrilha do Araguaia.
– É disto que querem saber? É comigo mesmo. Mas não vou falar – disse Carlos. Não falou. Este período turbulento é registrado por imagens da geração-68: a passeata dos cem mil e o enterro de Edson Luiz, que antecedem a repressão no Araguaia.
Um novo capítulo se inaugura com a Anistia e a volta do exílio da liderança comunista: João Amazonas, Renato Rebelo e Diógenes Arruda. A Tribuna da Luta Operária volta a circular com 60 mil exemplares. O resto é o que todos conhecem da história mais recente, a campanha pelas Diretas Já, o papel do Partido na eleição de Lula por dois mandatos consecutivos. Em 2010, o PCdoB elege 15 deputados federais e dois senadores, entre eles, Vanessa Grazziotin.
Túmulo do fantasma
O Amazonas está presente com Selma Baçal, ex-presidente da UBES, além de 18 fotos de Vanessa: na Palestina com Yasser Arafat, na 2ª Conferência Nacional de Emancipação da Mulher, no impeachment de Dilma, com Lula na saída da prisão. Eron Bezerra, aparece entre os Tenharim, selando compromisso com os direitos indígenas, nem sempre considerados pelo PCdoB, quando dominavam no Partido os uivos tenebrosos de Aldo Rebelo, o trânsfuga, que se refugiou no PDT. Nesse trote, vai acabar no PL, no colo do Valdemar Neto.
Os uivos silenciaram. O que se ouviu em Niterói, no Festival Vermelho comemorativo dos cem anos, foram as vozes melodiosas do Coral Guarani da Aldeia Mata Verde Bonita de Maricá, cuja foto embeleza uma das últimas páginas do livro. Talvez tenha aí o dedo sensível da deputada Jandira Feghali, com quem visitamos aldeias Guarani na campanha para o Senado, em 2006, quando defendeu um espaço na TV para as línguas indígenas.
A leitura do livro tem sabor de vingança contra a revista do IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática. A CPI presidida em 1963 pelo deputado Ulysses Guimarães apurou que o IBAD-IPES recebeu 5 milhões de dólares depositados no Royal Bank do Canadá por empresas multinacionais como Texaco, Esso, Coca-Cola, Bayer e IBM destinados a assombrar o Brasil com o fantasma do comunismo. Essa “grana branca” preparou o golpe de 64 financiando revistas, livros, candidaturas de parlamentares e manifestações anticomunistas.
A revista que li há 60 anos era de distribuição gratuita em todo o território nacional e anunciava que “os comunistas vão tomar tua casa e teu carro” e que a FAB era um “ninho de comunistas“, não escapou nem o papa. Agora, acabo de ler Cem anos de amor e coragem pelo Brasil, que custa R$200,00. Foi um presente de meu amigo titiriteiro Euclides de Souza, velho e fiel militante comuna, a quem agradeço por haver jogado a última pá de cal no túmulo do fantasma criado para amedrontar os ingênuos e os bobinhos.
Um conselho final: se sua bíblia é o livro de receitas de como cozinhar criancinhas ao molho pardo ou assar no forno, ou ainda o conto da bruxa que engordava João e Maria para devorá-los, não procure conhecer a história centenária de lutas do PCdoB. O outro fantasma que rondava a Europa anunciado por Marx e Engels na primeira frase do Manifesto de 1848 continua vivo. Não leia este livro. Sua leitura te levará a ver o mundo com outros olhos e – olha o perigo – te induzirá a pedir a carteirinha de filiação ao PCdoB. Ah, esses comunistas são tão ardilosos…
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