Num país subalternizado, e em meio ao ressurgimento mundial do fascismo, busca-se mitigar dores sem encarar suas causas. Como dar um passe adiante? Uma investigação teórico-política inspirada na Teoria Marxista da Dependência
Por Luiz Filgueiras, em Outras Palavras
A partir da perspectiva da Teoria Marxista da Dependência (TMD) atualizada (Amaral:2012)1, este ensaio tem por objetivo geral discutir as dificuldades e limitações históricas dos governos de esquerda no Brasil em implementar os seus programas (econômico, social e político), principalmente no que se refere ao seu eixo central, qual seja: a necessária, e urgente, mudança estrutural da distribuição de renda e da riqueza entre as classes – condição fundamental, necessária, embora não suficiente, para o enfrentamento das demais desigualdades sociais (de gênero, raça etc.) que organizam e estruturam historicamente o capitalismo, em particular o capitalismo dependente brasileiro (Almeida:2019).
Mais especificamente, tendo por pano de fundo as características estruturais do capitalismo dependente brasileiro, ele trata dos impasses e limitações que a atual conjuntura, caracterizada por um ambiente fortemente polarizado desde 2013-14, coloca para o terceiro Governo Lula, vis a vis os seus dois governos anteriores. Conjuntura na qual se constituiu um forte movimento neofascista na sociedade brasileira, que veio a se juntar à direita neoliberal tradicional2 (Boito: 2019).
Tendo por meta esses dois objetivos, situados respectivamente nos planos estrutural e conjuntural, este ensaio propõe e defende duas teses – que se articulam para a compreensão da natureza e possibilidades do terceiro Governo Lula no contexto do capitalismo dependente brasileiro. Primeira tese: a implementação de reformas estruturais e a adoção de políticas, que alterem significativamente a histórica concentração de renda e da riqueza existente, não podem ser viabilizadas sem confrontar as características fundamentais do capitalismo dependente, em especial a superexploração do trabalho e a existência de uma burguesia subordinada, direta ou indiretamente, ao imperialismo; burguesia dependente, que não tem um projeto nacional de caráter capitalista, mesmo que minimamente soberano. De forma direta e resumida: os países periféricos não podem superar a sua condição de dependência sem superar ao mesmo tempo o próprio capitalismo.
Segunda tese: no Brasil atual, a continuação do permanente “ajuste fiscal”, agora disfarçadamente intitulado “Arcabouço Fiscal”, juntamente com o Banco Central “independente”, além dos lobbies privados que atuam em diversas áreas, em especial na saúde e na educação, estão limitando, mais uma vez, a capacidade do Governo Lula de enfrentar estruturalmente a conhecida desigualdade de renda e riqueza que caracteriza o país. Para além das negociações políticas com o Parlamento, a possibilidade desse governo contornar, mesmo que parcialmente, as limitações de natureza estrutural e, principalmente, conjuntural, dependerá, obrigatoriamente, da organização e mobilização efetiva e permanente dos setores populares pela esquerda – com a criação de meios e instrumentos que viabilizem isso.
Como se pode constatar, a primeira tese, antiga e “radical”, é um corolário necessário da análise e compreensão da TMD sobre as sociedades e economias periféricas, de capitalismo dependente. Formulada desde os anos 1970, foi a principal razão política, após a redemocratização, do “apagamento” dessa corrente político-teórica da vida acadêmica brasileira, e do isolamento intelectual e não reconhecimento de seus formuladores como “Intérpretes do Brasil” (Prado: 2015; Wasserman: 2007; Transpadini, Stedile: 2005). Posteriormente, desde o início dos anos 2000, pode se constatar uma espécie de retomada das teses e formulações da TMD, tanto na academia como no âmbito político mais geral3 – uma espécie de resgate e reconhecimento tardio de sua importância para a compreensão das sociedades latino-americanas (Latimer, 2023).
Portanto, assume-se aqui que não há qualquer originalidade na sua proposição, ao mesmo tempo em que se reconhece a dificuldade de fazer a sua defesa, em um período histórico no qual a utopia do socialismo, ou de qualquer outra alternativa ao capitalismo, saíram, de fato, na prática política, do horizonte da esquerda (Fraser: 2022) – apesar de eventuais declarações “estratégicas” e das muitas críticas ao capitalismo, algumas decretando inclusive o seu ocaso, tendo em vista estar, supostamente, imerso em uma crise de caráter estrutural. No entanto, o reconhecimento da natureza do capitalismo dependente, enquanto limitação estrutural para qualquer governo de esquerda, será a referência fundamental deste ensaio para se fazer a “ponte” política entre estrutura e conjuntura – de modo a não se perder no emaranhado de problemas imediatos colocados no aqui e agora, bem como não confundir mudanças conjunturais com conquistas estruturais mais permanentes.
A segunda tese expressa um entendimento da atual conjuntura, ainda muito difícil para esquerda em geral e para o Governo Lula em particular, na qual, às limitações estruturais do capitalismo dependente soma-se a atuação das forças de direita neoliberais, agora associadas a uma extrema direita neofascista mobilizadora e organicamente estabelecida na sociedade – que por dentro do governo (em virtude das alianças estabelecidas), ou por fora dele (no parlamento e na mídia), força o seu deslocamento à direita. Uma conjuntura, portanto, mais complicada do que a do período dos dois governos anteriores de Lula.
Além dessa Introdução e da Conclusão, esse ensaio se organiza em sete seções. A seção 1 faz uma apresentação sintética, e mais geral, da TMD, justificando a sua relevância para a compreensão do capitalismo dependente e o seu estatuto frente às Teorias do Imperialismo, em particular, destacando, do ponto de vista do objeto de estudo (o capitalismo), os diferentes níveis de abstração existentes entre a Crítica da Economia Política levada a cabo por Marx e a “Economia Política da Dependência” proposta pela TMD.
Na seção 2, discute-se resumidamente a formulação da TMD, considerando os seus dois principais conceitos (troca desigual e superexploração do trabalho) e destacando a importância da construção de uma “Economia Política da Dependência”, que embora tendo como referência maior as leis gerais do capitalismo formuladas por Marx, reivindica a existência de leis específicas próprias do capitalismo dependente, mas que não contradizem as primeiras.
A seguir (seção 3), considera-se a necessidade de atualização da TMD, tendo em vista as transformações ocorridas no capitalismo nas últimas quatro décadas no plano mundial (processos convergentes de reestruturação produtiva, mundialização do capital, financeirização e neoliberalismo), assim como os seus impactos na periferia (Filgueiras: 2000, 2003 e 2006). Isso é feito tendo por referência os Padrões de Desenvolvimento Capitalista que se sucederam ao longo do desenvolvimento dependente do capitalismo brasileiro, que não romperam com a dependência e a subordinação, mas o contrário: criaram formas de dependência cada vez mais complexas.
Na seção 4, aborda-se a estrutura e dinâmica do Padrão de Desenvolvimento Liberal-Periférico (PDLP) constituído a partir de 1990: forma assumida pelo neoliberalismo na formação econômico-social brasileira. Destaca-se as suas principais características e evidencia-se que, apesar das diversas conjunturas internacionais, dos distintos Regimes de Política Macroeconômica (RPM) que se sucederam e das diferentes composições do Bloco no Poder em cada governo, ele manteve-se até o presente momento – acompanhando e dando forma ao atual modo de dominação e dependência.
A seção 5 discute as sucessivas conjunturas e os diversos momentos por que passou o PDLP, com destaque para as suas inflexões que repercutiram ou se expressaram em alterações na composição do Bloco no Poder e no RPM.
Na sequência (seção 6), consideram-se as implicações sociopolíticas do capitalismo dependente em geral, em especial a incapacidade política dos países periféricos em superarem a condição de dependência, derivada da natureza antinacional de suas respectivas burguesias e da forma como estas se articulam com o imperialismo – dependência, atualmente, ainda mais aprofundada pela dominância do capital financeiro. A “dependência da trajetória”, no que concerne no caso à relação entre o imperialismo e os países dependentes, torna-se, cada vez mais, um forte condicionante para o desenvolvimento do capitalismo na periferia.
A última seção tem como objeto o terceiro Governo Lula, evidenciando a importância da vitória eleitoral da esquerda contra o neofascismo bolsonarista e os principais impasses e limitações que a direita neoliberal, agora coadjuvada pela extrema direita neofascista, impõe ao cumprimento de seu programa e a sua governabilidade. Adicionalmente, sintetiza, segundo a perspectiva da TMD, o dilema fundamental, de natureza histórico-estrutural, colocado para os países periféricos, em especial o Brasil. Por fim, destaca o modo como a “Nova (Extrema) Direita” conseguiu se constituir em um sujeito político central no Brasil – com grande capacidade de mobilização e intervenção. Em contrapartida, evidencia a fragilidade da esquerda em geral no que concerne ao trabalho de organização e politização dos setores populares, cuja superação é condição incontornável para enfrentar as dificuldades conjunturais postas pelo “Presidencialismo de Coalizão” e os problemas estruturais colocados pelo capitalismo dependente.
1- A Teoria Marxista da Dependência: primeira aproximação
A Teoria Marxista da Dependência (TMD), apoiada na “Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado (Trotsky: 1980; Lowy: 1995), e a partir da perspectiva dos países subordinados na divisão internacional do trabalho, postula a existência de um capitalismo distinto (específico) na periferia do sistema, em contraposição ao capitalismo presente nos países centrais, imperialistas (tidos, comumente, como desenvolvidos) (Marini, 1973).
Segundo ela, as leis gerais (tendenciais) de movimento do capital, tal como formulada por Marx para o modo de produção capitalista em geral (o capital em geral), sofre mediações históricas de tempo e lugar quando se trata do capitalismo realmente existente, dando lugar na periferia a um “capitalismo dependente”, cujas leis específicas não contradizem, negam ou anulam as leis gerais, mas que, ao radicalizarem as suas contradições e consequências, implicam uma dinâmica econômica, social e política distinta da dos países centrais.
Essa identificação, de um sistema capitalista mundial fortemente hierarquizado, de um lado, com poucos países dominantes (imperialistas) determinando o desenvolvimento e a dinâmica da acumulação de capital do conjunto do sistema e de sua periferia e, de outro, uma grande maioria de países subordinados, com processos de acumulação subsumidos ao movimento do capital a partir dos primeiros, já havia sido captada e demonstrada pelos clássicos do marxismo a partir das “Teorias do Imperialismo”, formuladas desde a virada do século XIX para o XX (Lênin: 2009; Luxemburgo: 1985; Bukharin: 1985 ).
Mas as “Teorias do Imperialismo” captam a assimetria existente no sistema capitalista mundial, com a subordinação dos países periféricos, observando o fenômeno a partir dos países centrais, evidenciando as características e a dinâmica da dominação destes últimos. A TMD, por sua vez, observa o mesmo fenômeno a partir dos países dominados, evidenciando as características e dinâmica das sociedades e economias desses países que os definem como dependentes – com a reprodução das relações sociais e de poder, de dominação e subordinação em relação ao imperialismo5. Em suma, demonstra e explica como a dependência se reproduz internamente nos países periféricos; ou, no dizer de Frank (1966), como ocorre o “desenvolvimento do subdesenvolvimento”. Portanto, as duas teorias, longe de serem concorrentes e substitutas, são complementares, dando conta do fenômeno em sua totalidade (Amaral: op. cit.).
Em síntese, as leis gerais do capitalismo valem para o conjunto do sistema, tanto para os países imperialistas como para os países dependentes. Mas essas leis foram formuladas por Marx em um nível elevado de abstração (a partir do conceito de “capital em geral”), caracterizando a estrutura e a dinâmica do modo de produção capitalista em geral, em sua representação pura, ideal (Rosdolsky: 2001). Por sua vez, as “Teorias do Imperialismo e da Dependência” são ambas formuladas em um nível de abstração menor (no âmbito da concorrência intercapitalista, da “pluralidade dos capitais”), no qual se levam em conta a existência de formações econômicosociais distintas, as relações internacionais assimétricas entre elas e as ações de Estados nacionais (dominantes e dominados) – com diferentes níveis de desenvolvimento capitalista e poder econômico, político e militar. Nessas circunstâncias, as leis gerais de desenvolvimento do capitalismo se realizam de formas distintas no centro e na periferia, sofrem mediações histórico-sociais diferentes, caracterizando, nesse plano de análise, duas espécies de capitalismo, que se diferenciam em suas respectivas estruturas e dinâmicas.
2- Capitalismo Dependente e a Teoria Marxista da Dependência
A explicação da TMD, sobre as características específicas da estrutura e dinâmica do capitalismo dependente, está apoiada em duas proposições formuladas por Marini (op. cit.). Partindo da esfera da circulação das mercadorias, tal como Marx (2013), mas diferentemente deste, que ao determinar as leis gerais de desenvolvimento do capitalismo supõe a igualdade (equivalência) na troca de mercadorias, Marini postula a existência de duas desigualdades que vão marcar o capitalismo na periferia – constituindo-se ambas os fundamentos da Economia Política da Dependência:
1- Na esfera internacional, de forma estrutural, há uma “troca desigual” no comércio de mercadorias entre países periféricos e países imperialistas, que beneficia estes últimos em termos de valor; com isso, verifica-se uma transferência de excedente, de forma permanente, dos países de capitalismo dependente para os países imperialistas. Mais especificamente, as burguesias dos primeiros cedem às burguesias dos segundos parte do mais-valor extraído de sua classe trabalhadora.
Essa “troca desigual” não se confunde com o clássico, e conhecido, conceito da teoria cepalina, qual seja: a tendência histórica de “deterioração dos termos de troca”, existente na relação entre os países periféricos (bens primários) e países centrais (bens industriais). Essa deterioração, expressa em preços de mercado relativos cada vez mais favoráveis aos produtos industriais, decorre do fato de os países centrais não repassarem seus ganhos de produtividade aos países periféricos; assim como da existência do controle dos mercados internacionais dos bens primários por oligopsônios com capacidade de determinarem os preços.
Já a “troca desigual” da TMD, embora também derivada dos diferenciais de produtividade dos países periféricos e centrais, está ancorada na teoria do valor-trabalho marxista, que distingue três conceitos interrelacionados: valor, preço de produção e preço de mercado. O valor (social) de uma mercadoria é determinado pelo trabalho socialmente necessário para produzi-la – definido pelas condições médias de produtividade existentes para a sua produção (determinada pela composição orgânica do capital, definida pela relação entre capital constante/capital variável).
O preço de produção social (válido para todos os produtores) é o valor modificado pela concorrência intercapitalista (que estabelece uma taxa média de lucro igual para todos os produtores), a depender da “composição orgânica média dos capitais” prevalecente na produção da mercadoria. Assim, os capitais individuais com composição orgânica individual acima da média (maior produtividade) terão seus respectivos valores individuais abaixo do preço de produção social, enquanto aqueles com composição orgânica individual abaixo da média (menor produtividade) terão seus valores individuais acima do preço de produção social. Desse modo, na troca das mercadorias, com base no preço de produção social, os produtores com menor produtividade (abaixo da média) transferem valor para os produtores de maior produtividade (acima da média) – o que justifica a busca, por parte de todos os produtores individuais, de condições de produção vantajosas (todo tipo de inovações), que lhes possibilitem maior competitividade.
Esse processo é válido também quando se considera os diversos ramos e setores da economia; há uma transferência de valor dos ramos com menor composição orgânica (por exemplo, agricultura ou construção civil) para aqueles com maior composição orgânica (os ramos mais importantes da indústria manufatureira). Desse modo, a “troca desigual” da TMD, ou seja, a transferência de valor dos países periféricos para os países imperialistas, é justificada pela concorrência intercapitalista, que favorece as exportações das mercadorias destes últimos (com preços de produção acima de seus valores) quando comparada com as exportações das mercadorias dos primeiros (com preços de produção abaixo de seus valores). O corolário fundamental da troca desigual, para o desenvolvimento do capitalismo no centro do sistema, é o de rebaixar o valor da força de trabalho nos países imperialistas (alimentos e matérias-primas mais baratos) e, portanto, aumentar o montante do mais-valor extraído de seus trabalhadores na forma de mais-valor relativo.
Por fim, o preço de mercado é o preço prevalecente em cada momento de acordo com as variações das condições da oferta e demanda da mercadoria, podendo eventualmente ficar abaixo, ou acima, do preço de produção social; ou, de forma mais permanente (estrutural) em virtude da existência de oligopólios-oligopsônios, com poder de estabelecer e manter os preços de mercado sempre acima do preço de produção social (obtendo lucros monopolistas). Essa segunda possibilidade (preço de monopólio), também explica a existência da “troca desigual” entre países periféricos e imperialistas, tendo em vista o controle dos mercados internacionais por estes últimos e suas empresas.
Uma última observação sobre essa questão dos preços na teoria marxista: não se desconhece as críticas e observações que destacam a dificuldade de se supor o estabelecimento, pela competição, de uma mesma taxa média de lucro para todos os capitais, tendo em vista as barreiras erigidas pelos capitais oligopolistas e monopolistas ao livre movimento dos capitais. Essa é uma questão que deu origem a acalorados debates no campo marxista (conhecido como “o problema da transformação do valor em preço de produção”). No caso da TMD, a dificuldade é maior ainda, pois se trata da concorrência (e da mobilidade de capitais) entre diferentes países. Contudo, mesmo considerando essa dificuldade, os preços de monopólio, que permitem uma maior taxa de lucro para os países (e empresas) que possuem poder de mercado, favorecem os capitais, setores e países que possuem uma composição orgânica do capital mais elevada, que lhes possibilita uma maior produtividade. Portanto, a troca desigual acontece da mesma forma, com a transferência do excedente dos países dependentes para os países imperialistas.
2- Para compensar a perda de mais-valor para o imperialismo, as burguesias periféricas, no âmbito interno de seus respectivos Estados e economias nacionais, viabilizam-se lucrativamente através da superexploração do trabalhador, possibilitada por outra troca desigual; desta feita a que ocorre na compra e venda da força de trabalho. Mais claramente, os capitalistas na periferia não pagam ao trabalhador o valor de sua força de trabalho, tal como definido por Marx, isto é, o valor correspondente a todos os bens e serviços necessários à subsistência do trabalhador e sua família. Portanto, não se trata simplesmente de um mais-valor extraordinário, acima do mais-valor “normal” (absoluto ou relativo), que existe mesmo quando o capital paga a sua força de trabalho pelo seu real valor; ou seja, a superexploração deriva da apropriação de parte do fundo de subsistência do trabalhador pelo capitalista – o que compromete, ao longo do tempo, a reprodução da força de trabalho.
Da mesma forma, o prolongamento da jornada de trabalho e/ou a maior intensidade do processo de trabalho, com um maior desgaste da força de trabalho, tem o mesmo efeito, ao não permitir a sua reprodução/reconstituição em condições normais, comprometendo a sua vida útil como força produtiva e reduzindo o tempo de vida do trabalhador. Em suma, a superexploração se viabiliza diretamente pelo não pagamento do real valor da força de trabalho e/ou pelo maior desgaste de seu uso – seja através do prolongamento da jornada de trabalho, seja pela maior intensidade no ritmo do processo de trabalho.
Adicionalmente, não se desconhece que, na sua formulação original, Marini postula a existência de uma outra forma de compensação para os capitais radicados no Brasil, qual seja, a transferência de valor a seu favor, decorrente de sua relação internacional com os demais países periféricos, situados em uma condição inferior à sua na divisão internacional do trabalho – o que definiria o Brasil, no contexto do sistema mundial capitalista, como fazendo parte de uma semiperiferia.
Mas, indo além do reconhecimento da existência de uma hierarquia no interior da própria periferia, ele cunhou o conceito de “Subimperialismo” que definiria a posição e ação do Brasil no plano internacional, possibilitado, objetivamente, por uma composição orgânica do capital mais elevada do que a dos países situados na periferia propriamente dita – o que daria ao capitalismo dependente brasileiro mais uma forma de compensação para sua perda de excedente para os países imperialistas. Essa proposição, contudo, além de ser muito polêmica e controversa, não faz parte do centro da TMD – que dela não depende para a sua validação. Adicionalmente, segundo o autor, a posição de subimperialista de um país também depende de outras circunstâncias, de natureza política e conjuntural. Por isso, dispensamo-nos de abordar essa tese em seus detalhes nesse ensaio. Por último, duas observações importantes, para maior clareza do fenômeno da superexploração:
1- Ele é potencialmente inerente ao capitalismo em geral, tanto no centro quanto na periferia; e, no limite, na falta de regulação política da relação capital-trabalho, de alguma coerção/restrição extraeconômica, a superexploração tende a atingir a situação de escravidão, como evidencia o trabalho análogo ao escravo contemporâneo. Marx, na análise do capitalismo, evidencia amplamente a existência de superexploração do trabalho nos capítulos históricos d’O Capital, referentes à Revolução Industrial na Inglaterra; no entanto, na sua formulação da lei do valor (lei do mais-valor), e das demais leis dela derivadas, supõe a igualdade (equivalência) na troca (uma situação ideal), na compra e venda da força de trabalho, para demonstrar o surgimento do mais-valor, isto é, a capacidade da força de trabalho, como uma mercadoria especial, de gerar um valor maior do que o seu próprio, mesmo admitindo-se a prevalência da troca de equivalentes. É nesse sentido que o mais-valor não se confunde com o roubo ou engano; trocam-se valores quantitativamente iguais (equivalentes) e, mesmo assim, a exploração do trabalho se configura.
2- A constatação do surgimento, no capitalismo contemporâneo, de situações de superexploração também nos países imperialistas apenas reafirma a natureza obsessiva do capital na busca do mais-valor, e nem de longe tem o mesmo significado da superexploração própria do capitalismo dependente, quando se considera o seu sentido na dinâmica deste último. Nesse caso, ela é determinada pela troca desigual entre países imperialistas e dependentes e, ao mesmo tempo, é o motivo que permite e garante a transferência de excedentes dos primeiros para os segundos, sem inviabilizar a acumulação de capital na periferia. Nos países imperialistas, a atual superexploração não se relaciona com a transferência de excedentes para os países periféricos, nem é condição incontornável para existência da reprodução do capital, mas apenas evidencia o retorno de circunstâncias estruturais-conjunturais que alargaram a assimetria da relação entre capital-trabalho a favor do primeiro. Circunstâncias essas criadas pelas grandes transformações sofridas pelo capitalismo nas últimas quatro décadas: em especial, os processos de reestruturação produtiva, financeirização e mundialização do capital, sob a hegemonia político-ideológica do neoliberalismo – que levaram ao rompimento unilateral (pelo capital) do pacto fordista-socialdemocrata.
1Depois de um longo período de “hibernação”, a TMD, a partir dos anos 2000, voltou ao centro do debate sobre as questões do desenvolvimento capitalista nos países periféricos. Inúmeros artigos, coletâneas e livros foram publicados, resgatando o pensamento de seus autores clássicos: Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos e Vânia Bambirra. Este Ensaio não faz uma revisão bibliográfica exaustiva e detalhada sobre o tema e os inúmeros autores que tem trabalhado com essa perspectiva, nem trata das suas diversas polêmicas. Apenas sintetiza a visão e compreensão do seu autor sobre a TMD com o objetivo de discutir os momentos principais do desenvolvimento capitalista dependente brasileiro e, em particular, as limitações e dificuldades que se apresentam para o terceiro Governo Lula. Uma tentativa analítica de articular, de um lado, as dimensões estrutural e conjuntural e, de outro, economia e política.
2Para uma explicação de por que considero o “bolsonarismo” um movimento/uma corrente política de extrema direita, de natureza neofascista, e não simplesmente autoritário ou “populista de direita”, ver Filgueiras e Druck (2020).
3Entre outra publicações, com participação de diversos autores, podem ser mencionadas: Desenvolvimento e dependência : cátedra Ruy Mauro Marini / Organizador: Niemeyer Almeida Filho. – Brasília : Ipea, 2013; Dossiê: Teoria Marxista da Dependência hoje. MARTINS, C. E.; FILGUEIRAS, L. In: Caderno CRH, v. 31, n. 84 – Set./Dez. 2018; Dialéctica de la dependencia. A cincuenta años. OSORIO, J.; LUCE, M. S. (coords.). Buenos Aires: CLACSO; Xochimilco: UAM, 2023
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Imagem: Bruno Itan / Olhar Complexo