Os nossos criminosos de guerra e os outros. Por Halley Margon

No Terapia Política

I

Quanto tempo ainda será necessário para que a grande audiência planetária possa perceber a dimensão do massacre que Israel está perpetrando na Palestina? Se é que um dia isso vai acontecer. Porque a verdade é que os vencedores não gostam de revelar seus crimes, têm recursos para impedir que venham à tona e até para fazer com que pareçam atos do mais puro heroísmo.

II

Centenas de milhares de civis foram incendiados vivos em dezenas de cidades alemãs ao final da Segunda Guerra, apenas para que a indústria bélica aeronáutica fizesse dinheiro, demonstrasse seu poderio e aperfeiçoasse sua tecnologia de matar. Quem quiser ter noção da magnitude desses ataques (e da ambição dessa gente) pode ler O Incêndio – Como os aliados destruíram as cidades alemãs do historiador Jorg Friedrich (Ed. Record, 2006). Esquecendo qualquer outro juízo que se possa fazer do recém-lançado Oppenheimer, há pelo menos uma cena digna de imenso louvor, justamente aquela que, ainda antes da metade do filme, registra o gozo orgiástico da pequena plateia que ouve o cientista chefe do projeto Manhattan anunciar a sucesso do lançamento da primeira das bombas. Como sabemos, e sabiam eles, porque era esse o propósito da coisa, o artefacto matou mais de 150 mil civis. A Alemanha havia se rendido três meses antes, no começo de maio. Então, qual era o propósito daquilo? Três dias depois, o gozo certamente terá se repetido (embora o filme do sr. Christopher Nolan não o mostre), com a morte de mais 80 mil pessoas em Nagasaki. E nós, desde criancinhas, aprendemos a celebrar o grande feito dos heróis que derrotaram os cruéis nazistas e seus aliados amarelos. Preto no branco. O bem e o mal. O mocinho e o bandido, como Hollywood nos ensinou.

III

Quando se tratava de Putin, ao primeiro indício já o processaram por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Não faz tanto tempo assim, está ainda bastante fresco na memória para quem quiser lembrar. O russo é atualmente um banido da grande maioria dos foros internacionais e se deixa o seu país é para visitar apenas os mais fiéis aliados, do contrário corre o risco de ser preso. Para Netanyahu, que manda bombardear civis ou os cerca como animais deixando-os à mingua, sem água, comida e energia, toda a condescendência humanitária da civilização ocidental. Pouco importam as evidências de brutalidade e o persistente assassinato de civis, em grande parte crianças, até agora à luz do dia e à vista de todo o planeta – as imagens dessas três semanas do ininterrupto ataque israelense a Gaza fazem com que os supostos crimes que tornaram Putin persona non grata ao Ocidente pareçam estórias da carochinha.

IV

É difícil encontrar na história do mundo moderno um momento no qual a suposta grande criação da modernidade – as tradicionais democracias ocidentais e suas instituições representativas – tenha descido a um patamar tão rasteiro de vileza e indignidade. E dessa debacle moral profundíssima não escapa, senão o contrário, a famigerada instituição que em tese deveria cuidar, em nome do bom público, da fiscalização dos chamados poderes do Estado: a imprensa livre. Será algum dia capaz de se recuperar dessa descida ao esgoto?

(Um parêntesis para registrar a performance absolutamente fora da curva de boa parte do jornalismo da RTVE, ou Radio y Televisión Publica Española.)

V

Desde o princípio, o Estado de Israel não tergiversou por um só instante acerca do ineditismo das medidas de represália que viria a tomar. Já pelas inesquecíveis palavras do primeiro-ministro israelense, as famosas “isso é só começo”, era muito fácil adivinhar o tamanho da retaliação. Dia após dia, semana após semana, sem que nem a Europa, nem aqueles que talvez pudessem injetar uma dose minúscula de inibição na testosterona ultra belicista de Netanyahu, os Estados Unidos, tentassem interpor obstáculos à desproporcional escalada de violência anunciada. Naturalmente, durante essas três semanas, tudo o que vimos foi justamente esse previsível crescendo de brutalidade bélica. Na madrugada de sexta para sábado, 27 para 28 de outubro, um passo a mais em direção às trevas. Quem saberá calcular o alcance desse passo? Como os criminosos preferem atuar sempre às escuras e como, aparentemente, passarão a um novo patamar de violência, ainda que talvez inimaginável para muitos de nós, antes de darem início ao ataque do final de semana cortaram todas as formas de comunicação a partir do interior da Faixa. Nenhuma imagem sairá mais dali, absolutamente nada que não queiram mostrar os perpetradores.

VI

Um amigo recorda para mim uma das cenas do documentário do cineasta sérvio Emir Kusturica sobre Maradona. Nessa cena, assim como se meio ao acaso, ao passar por um edifício bombardeado na cidade de Belgrado, Maradona se dirige ao diretor e pergunta: “Quem fez isso?”. Kusturica, algo poético e cortante, não titubeia: “Javier Solana”. O que faz o cineasta, com seu procedimento poético, é tirar a máscara institucional atrás da qual esses homens tão valorosos gostam de se esconder. Porque afinal são homens e têm nomes e sobrenomes os que afinal ordenam que as bombas sejam lançadas sobre as cidades e sobre as pessoas, chamem-se Netanyahu, Biden ou Javier Solana. O espanhol foi secretário-geral da OTAN entre 1995 e 1999, durante as guerras na extinta Iugoslávia. Semana passada, deixou momentaneamente sua confortável aposentadoria para declarar que a reação de Israel à incursão e aos assassinatos do Hamas era “muito desproporcional”. Ser secretário-geral da OTAN não é o mesmo que ser secretário-geral da ONU. Tem lá suas equivalências simbólicas, mas não é a mesma coisa. Assim que quando um António Guterres abandona a subserviência e num raro momento de crua sinceridade afirma de público que o Hamas “não nasceu do vácuo”, algo de valor deve ser creditado à sua declaração. Mas quando um ex-secretário geral da Armada Ocidental vem a público para condenar a hybris israelense é possivelmente porque todos os limites foram ultrapassados, e foram ultrapassados com sobras.

VII

A manchete no topo da página do El País (imagino que de muitos outros jornais) deve ter deixado escandalizados a todos aqueles que ainda são capazes de se escandalizar: Israel pede a demissão do secretário-geral da ONU e bloqueia os vistos dos representantes do organismo internacional – O embaixador israelense disse que é “o momento de ensinar uma lição” às Nações Unidas depois que António Guterres afirmou que os ataques do Hamas “não vêm do nada”, mas de 50 anos de ocupação asfixiante”. Ou seja, Israel exige que o secretário-geral da ONU seja castigado e sumariamente demitido pelas palavras que havia ousado pronunciar. Que liberdade é essa que toma o moderador-mor das Nações Unidas de dizer uma vírgula que ao Estado de Israel não agrade? Castigado, talvez não da mesma maneira como estão sendo castigados os palestinos de Gaza, mas de todo modo, castigado.

VIII

No meio da tragédia de incomensuráveis dimensões, vemos a farsa de grosso calibre e terrível falta de oportunidade ou senso de tamanho. Num artigo do The Economist de 24 último: “Que frágeis são as forças que tentam manter as coisas unidas. Quinze horas depois da explosão (do hospital em Gaza), aterrizou em Israel o presidente Joe Biden, um ancião com o peso do mundo sobre seus ombros ” – o itálico é de minha responsabilidade, claro.

IX

E, mais uma vez, as devidas proporções. No dia 7 de outubro, o principal diário espanhol dava destaque para uma notícia da AFP que dizia: “Um bombardeio russo matou ontem, sexta-feira, uma criança de 10 anos e sua avó em Jarkov, no noroeste da Ucrânia…”.  No vigésimo dia desde o início do bombardeio de Gaza pelo Estado de Israel, a estimativa do Ministério da Saúde de Gaza, reconhecido pela ONU, era de aproximadamente três mil crianças mortas. Também para o tamanho dos interesses que por detrás da cena conduzem os atos e para a pequenez dos chamados homens e instituições do bem deveríamos encontrar uma régua.

X

Uma mui modesta indagação final: por que Netanyahu – e Biden – não foram ainda (e não serão jamais) denunciados ao Tribunal Penal Internacional de Haia?

Ilustração: Mihai Cauli  e  Revisão: Celia Bartone

 

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