Quem usufruiu e ainda desfruta dos lucros saídos dos porões dos tumbeiros?
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Façamos um exercício de fabulação. Imagine que em vez de acordar uma barata, como o personagem de Franz Kafka no livro Metamorfose, você acordou hoje transformado em uma nota de dinheiro. Digamos que você, leitor, que você, leitora, são moedas. Isso mesmo. Não há nada de estranho, pois esta era a condição de qualquer pessoa escravizada nas Américas e Europa modernas e, como capital no sistema econômico nascente, sua função principal não era carregar água, lavar, cozinhar ou servir. Sua principal função na vida era dar lucro para quem, literalmente, te possuía de papel passado.
Hoje, em 2023, se avolumam perguntas que não passarão mais um século sem respostas: Quem lucrou com estas “moedas”, quem acumulou este tesouro, quem financiou este sistema e quem ainda hoje colhe dividendos dos “corpos-dinheiro”? Falamos de nomes de pessoas, famílias e instituições com riquezas incomensuráveis erguidas nos porões dos tumbeiros. Uma casa de vespas históricas que alguns países já começaram a cutucar, mas que o Brasil – maior nação escravocrata moderna e última a exterminá-la oficialmente – insiste em fazer “vista grossa”.
UM BANCO E UMA HISTÓRIA DE DOR
O Banco do Brasil foi tragado para o olho deste furacão recentemente, quando, depois de comprovarem com documentos e fatos a participação da instituição financeira na alimentação do sistema escravocrata, 14 pesquisadores de 11 universidades federais decidiram pelo óbvio: ajuizar a questão. A ação ganhou a mídia há um mês, em matéria a princípio da BBC Brasil.
O BB foi fundado em outubro de 1808, meses depois da chegada da família real portuguesa (sempre usarei no diminutivo) ao Brasil. Em seu site na internet, na aba “Sobre nós”, até o momento da escrita deste texto está lá: “(…) cultivando, há mais de 200 anos, o valor dessa relação que temos com os brasileiros”. Desta forma, nem tente argumentar que o banco de hoje não é o de ontem. A própria instituição se vincula à mesma que originalmente arrecadava as taxas dos traficantes de gente, que lucrava com os depósitos feitos por escravocratas em troca de títulos de nobreza e que tinha grandes e famosos traficantes de escravizados no corpo de diretores e fundadores.
Tudo isto está em pesquisas como a de historiadores como Thiago Campos Pessoa, da Universidade Federal Fluminense, que estuda um destes traficantes: José Bernardino de Sá, um dos magnatas mais ricos do império. Segundo ele, Bernardino tinha 5.216 ações do BB em 1855. Uma fortuna gigante e maior que a de muitos dos homens mais ricos entre os mais ricos daquele tempo, os cafeicultores. José era apenas um dos ricaços da escravidão e que faziam o Banco do Brasil ser o que era.
Segundo outro pesquisador, Clemente Penna, da Federal de Santa Catarina, toda a economia girava baseada em títulos de créditos, letras de câmbio, etc. Quem tinha grana viva em caixa, grana à vera, grana como dizem “real oficial” eram os traficantes, logo, eles financiaram o Estado brasileiro e o capital societário dos bancos.
Agora, voltemos ao nosso exercício de ficção, leitor e leitora queridos. Você é um objeto caro e seu dono não pagou as dívidas que contraiu. Serasa? Nada disso. A justiça determina que os escravizados pertencentes ao devedor sejam enviados a um depósito no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro. Vocês passarão um tempo “armazenados” por lá até que o seu dono resolva pagar o que deve seja a um particular, seja ao banco. Se isso não acontecer, óbvio, você vai a leilão. Afinal, alguém precisa pagar!
Isto significa, querido “leitor-moeda”, que depois de sequestrado da sua terra natal, depois de viver preso e torturado sem autonomia para ir na esquina sem dar satisfação, para pagar os fiados do seu dono ou dona, você será separado de todos os laços e afetos que porventura tenha construído, terá que deixar tudo para trás e passará às mãos de um arrematante. Torça para que ele ou ela sejam bons pagadores, caso contrário, o depósito do Valongo é logo ali.
IMPAGÁVEL
O caso está rolando e não vou me estender, pois o noticiário tem todos os detalhes. O resumo é que o Ministério Público Federal notificou o BB em 27 de setembro sore a abertura de um inquérito civil público. A ação é inédita no país e o Banco do Brasil enviou nota dizendo que irá colaborar com o MPF. Estão sendo estudados meios de reparação.
Esta é apenas uma fagulha de um vulcão que precisa eclodir especialmente no Brasil, protagonista de um dos maiores crimes contra a humanidade que foi a escravidão transatlântica dos séculos 15 ao 19. Evento tão grandioso em sua ação nefasta por séculos, que ecoa em consequências perversas para o país e o mundo em plena terceira década do século 21.
O vespeiro é grande, afinal, quase ninguém quer admitir que suas facilidades de vida advém de algo tão repugnante e refutam responsabilidades. Por outro lado, a incalculável dívida financeira com as gerações descendentes destes corpos-moedas pode até ser atenuada, mas nunca será saldada totalmente, pois a dimensão subjetiva deste dano é incomensurável.
Estava nas últimas linhas deste texto, quando foi veiculada a notícia da criação de uma Bancada Negra na Câmara dos Deputados. Quem sabe seja esta, voz unida para pautar mudanças, a moeda mais valiosa.
Pronto, querido leitor, amada leitora. Pode sair da viagem de tormentos que os conduzi, mas lembre-se: Foi real. Por causa dela, hoje, muitos corpos ainda são o dinheiro de alguém.
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Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Julio Araujo.
Imagem: Latuff