A “Reforma” Tributária que não é

Sistema de impostos seguirá injusto e ineficiente, quando vigorarem as medidas aprovadas no Senado. Governo obteve pouco e concedeu demais, por apostar todas as fichas nas negociações com o Congresso. Como poderia ser diferente?

por Antonio Martins, em Outras Palavras

O Senado aprovou nesta quarta-feira (8/11), em duas sessões-relâmpago e sem debate real entre a sociedade, o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 45, que retrofita os impostos indiretos do país. A proposta voltará à Câmara dos Deputados para pequenos ajustes – que não parecem difíceis – e entrará em vigor em seguida. Professoral, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que o texto final merece “nota 7,5 com louvor”. Na véspera, um manifesto de economistas – quase todos neoliberais – e empresários exortou os senadores à aprovação. E no dia seguinte, os jornais ligados ao mercado financeiro consideraram a decisão “histórica”.

A PEC-45 inclui alguns avanços reais, como se verá adiante. No entanto, sua adoção manterá intacta uma das marcas mais perversas do sistema tributário brasileiro: a arrecadação concentrada em impostos indiretos, os mais injustos. E é provável que a alíquota dos novos tributos com este caráter chegue a 27,5% – a mais alta do mundo. Como tudo isso foi possível? Há alternativa?

A “Reforma” atual é a resultante de uma correlação de forças desfavorável, e da opção do governo de não desafiá-la. Nesse ponto, concordaram o auditor fiscal Dão Real Pereira dos Santos, presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF), e o ex-deputado (PT-SP) e ex-ministro (de Lula e Dilma) Ricardo Berzoini, hoje na Veredas Inteligência EstratégicaOutras Palavras ouviu-os em 7/11, no primeiro de quatro diálogos sobre o tema, realizados em parceria com a Fundação Fridrich Ebert (FES) e o próprio IJF.

“O que está sendo votado não é nem um terço de uma reforma”, opinou Berzoini, que atribuiu o fato às dificuldades do governo no Congresso. Elas teriam levado a equipe de Lula a abdicar da apresentação de um projeto de fato reformador, preferindo em vez disso impulsionar algumas das propostas que o Legislativo já considerava. Elas visam essencialmente simplificar o sistema de tributos. Mesmo que este ponto de vista mostre-se adequado, considerou o ex-ministro, faltou um trabalho político-didático. Consistiria em lembrar que está sendo votada apenas uma parte menor de uma reforma; e que será preciso preparar disputas mais duras e profundas, para chegar a um sistema “minimamente eficiente e justo”.

Dão Real acrescentou um dado relevante. A simplificação tem, em ao menos dois de seus aspectos, claro caráter pró-empresarial. Ela elimina “resíduos tributários” presentes no sistema atual. Ao fazê-lo, desonera as empresas, obrigando o consumidor a arcar integralmente com os impostos indiretos – ou transferindo-os ao Estado, no caso dos produtos e serviços exportados. Mas, acima de tudo, simplificar, na forma estabelecida pela PEC-45, elimina o princípio da seletividade – e neste aspecto tem claro sentido neoliberal. Segundo as normas atuais, o Estado tem margem para decisões políticas em relação aos impostos sobre o consumo. Pode, por exemplo, elevar as alíquotas sobre produtos de luxo, armas, veículos de alta cilindrada e outros itens supérfluos, tributados em até 70% de ICMS. A “reforma” elimina esta margem de decisão. Ela estabelece o princípio da neutralidade, segundo o qual os tributos não podem embutir políticas de estímulo ou dissuasão do consumo, cabendo apenas aos mercados fazê-lo…

Ao longo do diálogo de 7/11, Berzoini e Dão Real identificaram ao menos dois outros pontos em que aflora o viés pró-mercado da “reforma”. Um é a chamada “trava na carga fiscal”. Suponha que, por ganhos de eficiência fiscal, estados e municípios consigam coibir práticas sonegatórias e elevem, em consequência, a arrecadação Será um esforço inútil. Um dispositivo incluído na PEC-45 durante a tramitação no Senado determina que, nesse caso, os impostos incidentes sobre outros produtos ou serviços terão de ser reduzidos, para que o total arrecadado não se ultrapasse o percentual do PIB alcançado entre 2020 e 21. Qual a lógica, exceto o velho cacoete antiestado?

O segundo dispositivo, chamado pelo ministro Haddad de “desoneração de 100% das exportações” é ainda mais perverso. Ele inscreve na Constituição, como princípio, as disposições herdadas da famigerada “Lei Kandir” – que impediu o Estado de tributar as vendas ao exterior de produtos primários. “Qual o sentido dessa medida para um país que precisa se reindustrializar?”, perguntou Dão Real. E lembrou que em muitos casos, após a aprovação da PEC-45, matérias-primas minerais ou agropecuárias brasileiras poderão ser processadas no exterior a preços inferiores aos praticados no próprio país…

Todo este ímpeto neoliberalizante, contudo, pareceu dissolver-se por encanto, quanto entrou em ação a força do grande poder econômico e seus lobbies – ou seja, o patrimonialismo brasileiro.Setores empresariais com força no Congresso conseguiram, com jeitinho, emplacar privilégios, ao longo da tramitação da PEC-45. Dispositivos incluídos na proposta reduzem as alíquotas dos novos impostos (CBS federal e IBS estadual) a serem pagos, por exemplo, pela indústria automobilística, bancos, e indústria farmacêutica; pela Educação e Saúde privadas; pelas empresas que assumirem os serviços públicos de saneamento ou as concessões de rodovias; pelos escritórios de advocacia, empresas de eventos ou escritórios de engenharia. É possível identificar algum sentido político nestas isenções? Ou estão aí apenas novos sinais da promiscuidade entre o dinheiro e a maioria conservadora no Congresso?

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Nada disso é novidade – ficou claro no debate; apenas não merece o nome de “reforma”. E há pontos positivos na PEC-45. É positivo livrar as empresas do intricado cipoal tributário que hoje enfrentam, às vezes com centenas de regulamentos sobre ICMS em cada estado. Ao estabelecer alíquotas unificadas para o que são hoje o ICMS e o ISS, a proposta reduz fortemente as “guerras fiscais”. Estados e municípios não poderão mais competir uns com os outros para oferecer vantagens fiscais ao capital.

A cesta básica ficará isenta dos novos tributos. Se houver fiscalização que garanta redução efetiva dos preços (e não aumento sorrateiro dos lucros…), significará um alívio muito considerável na despesas dos mais pobres. Embora ainda não regulamentado, surgirá um sistema de cashback, por meio do qual a população de renda baixa poderá ter reembolsado o imposto embutido nos produtos que consome.

Haveria alternativas? É provável que sim. Ao apostar todas as fichas no diálogo com um Congresso conservador, o governo Lula parece se esquecer – também no tema da Reforma Tributária – que as correlações de forças podem ser mudadas, e que o elemento essencial para tanto, no atual cenário brasileiro, é a mobilização das maiorias. O Palácio do Planalto permanece cego a esta possibilidade, o que pode levá-lo a um beco sem saída.

Porém, Dão Real e Berzoini fugiram à tentação fácil (e cada vez mais comum, nas últimas semanas) de apontar o governo Lula como responsável quase único pela ausência de mudanças mais profundas no país. A Presidência, vista pela população como símbolo maior do poder político, tem enorme poder mobilizador, lembraram eles. Mas despertar a consciência e transformar a sociedade é algo que não pode ser atribuído apenas ao Poder Executivo – em especial, por quem acredita que a ação política vai muito além das eleições…

A ausência de debate real sobre Reforma Tributária é um dos sinais de quanto falta, a toda a esquerda, voltar a projetar um horizonte político de superação do neoliberalismo e de reconstrução nacional. Por isso, o esforço de Outras Palavras, do Instituto Justiça Fiscal e da Fundação Fredrich Ebert para examinar o tema em profundidade persistirá. Na próxima terça-feira (14/11), às 18h30, Clair Hickmann e Marcelo Lettieri, ambos auditores fiscais e membros do IJF, traçarão a Radiografia de um Sistema Tributário bizarroTentarão apresentar, num esforço didático-político, uma síntese dos mecanismos que tornam a estrutura tributária brasileira extremamente injusta e incapaz de resgatar o país. Em 21/11, Fátima Gondim e David Deccache estabelecerão um diálogo entre a luta por Justiça Fiscal e a Teoria Monetária Moderna. Aventarão a possibilidade de o Estado mudar o sistrema de impostos, e também emitir dinheiro a partir do nada, para garantir serviços públicos de excelência e renovar da infraestrutura. E em 28/11, Dari Krein, Kamila Mendonça e Paulo Gil Introini tentarão traçar caminhos para uma estrutura tributária que garanta justiça fiscal, social e ambiental.

Imagem criada por Inteligência Artificial

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