Justiça libera 400 mil hectares sob suspeita de grilagem após pressão ruralista na Bahia

Antes da liberação de terras suspeitas de grilagem, agronegócio debateu insegurança jurídica com procuradora-geral da BA

Por  Caio de Freitas Paes, Agência Pública

No último dia 19 de outubro, o Judiciário da Bahia mandou bloquear 7,5 mil hectares de terra por suspeita de grilagem na zona rural de Correntina (BA), a 850 km da capital Salvador. A decisão lembra outro caso relatado neste ano pela Agência Pública, quando outros 11 mil hectares neste município foram bloqueados sob suspeita semelhante. Com os registros de terra bloqueados, ruralistas não conseguiriam crédito e financiamento para o plantio da safra atual, por exemplo.

Mas a aparente boa notícia para os povos do campo em Correntina esconde um revés: menos de três meses antes da decisão, o bloqueio era sobre uma área muito maior, que ainda está sob forte suspeita de grilagem. Em 28 de julho passado, a comarca da Justiça Estadual em Correntina tinha determinado o bloqueio de mais de 400 mil hectares na mesma região.

Tal decisão nada mais era que uma ordem judicial emitida em 2014, mas nunca cumprida por cartórios do oeste baiano. A medida bloqueou os registros de pelo menos 342 fazendas, segundo documentos obtidos pela Pública, atingindo grandes fazendeiros e empresas do agronegócio, como a SLC Agrícola e seus sócios estrangeiros.

No fim de setembro, líderes da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba) e da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) – os dois principais grupos ruralistas no estado – reuniram-se com a Procuradora-Geral da Bahia (PGE), Bárbara Camardelli Loi, para “tratar sobre a insegurança jurídica trazida” pelo imenso bloqueio de terras.

Após o encontro, os ruralistas relataram que “a audiência foi concluída com a promessa de que a Procuradoria irá se apresentar rapidamente nos autos do processo no intuito de mitigar os efeitos negativos gerados pela decisão” original – assinada pelo juiz da comarca de Correntina, Matheus Agenor Alves Santos. O pedido pelo bloqueio das terras partiu da própria PGE, anos atrás. Então, no último dia 19 de outubro, o Judiciário recuou e liberou mais de 98% das fazendas.

À Pública, a PGE disse que “não houve promessa de ‘mitigar efeitos negativos da decisão’, mas sim atuação racional para limitar o bloqueio à área de efetivo conflito” em Correntina. Sem dar mais detalhes, o órgão afirmou que o bloqueio de mais de 400 mil hectares ocorreu em meio a casos de pistolagem na região, com o registro de uma “tentativa de homicídio de integrantes de comunidades tradicionais” na área – as comunidades de fundo e fecho de pasto.

“A decisão foi importante para cessar as abordagens violentas que ocorriam”, segundo a PGE, que disse ainda que “o Estado entende mais benéfico à população a manutenção regular das atividades produtivas” das fazendas, ainda que sob forte suspeita de grilagem.

A reportagem perguntou se a PGE convocou reuniões com o juiz de Correntina após reunir-se com os líderes do agro baiano, mas o órgão se recusou a informar.

Para a Procuradoria, não há “relevância para descrição de datas e pautas, ou lista de presentes” de eventuais encontros – qualificados como uma “atividade ordinária” pelo órgão.

A matrícula nº 2280 e os indícios de grilagem

Uma análise de documentos do Tribunal de Justiça da Bahia revela os indícios de grilagem na área recém-liberada. A decisão que bloqueou os mais de 400 mil hectares, de 28 de julho passado, refaz o histórico do caso.

A principal suspeita é que a matrícula de terras de nº 2280, registrada no cartório de Santa Maria da Vitória (BA), tenha originado uma série de registros ilegais em toda a região. As fazendas bloqueadas no fim de julho têm relação com esta matrícula, conforme os documentos obtidos pela Pública.

Para órgãos do governo, Ministério Público Estadual e a própria PGE, as terras seriam, na verdade, do Estado da Bahia.

Com base no pedido inicial, formulado pela PGE, o juiz Matheus Santos narra: “as próprias transcrições [matrículas] nº 2280, anteriores e consequentes, além de outras que possam ser apresentadas referente ao perímetro discriminado, onde atualmente está registrado o imóvel Gleba Arrojelândia, devem ser tidas por nulas e então canceladas”.

Tal conclusão vinha de um estudo da Coordenação de Desenvolvimento Agrário do governo baiano, que identificou que em 1980 “a matrícula 2280 foi aumentada de 2.000 hectares para 400.000 hectares”, avançando ilegalmente sobre terras públicas nos municípios de Correntina, Jaborandi e Santa Maria da Vitória.

Com base na suposta grilagem ocorrida há mais de 40 anos, o Ministério Público da Bahia havia concluído que “não há outra medida a fazer senão anular todos os títulos da área em questão que forem considerados fraudulentos e, posteriormente, regularizar a posse da área para as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto que secularmente vivem na região” – ainda conforme relato da comarca de Correntina.

O juiz Matheus Santos ainda destacou que a suposta grilagem teria ocorrido simultaneamente ao registro das fazendas junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – “o que pode revelar interesse federal” no caso, segundo ele.

“Tanto é assim que há procedimentos investigativos instaurados pelo Ministério Público Federal” para apurar o caso da matrícula nº 2280, relatou o magistrado.

O juiz referia-se a um inquérito civil sobre o caso, da unidade do MPF em Bom Jesus da Lapa (BA), e a um procedimento administrativo aberto pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF após a conclusão do inquérito inicial.

Procurado pela Pública, o MPF informou que as investigações seguem a cargo de sua unidade em Bom Jesus da Lapa (BA), sem dar mais detalhes.

Juiz se exime e questiona governo quanto à área grilada

Para justificar a liberação dos mais de 400 mil hectares sob suspeita de grilagem, o juiz de Correntina alegou que foi o Estado da Bahia, responsável por propor a ação inicial, quem definiu que a área a ser bloqueada era de apenas 7,5 mil hectares.

Na decisão, o magistrado relata que, “passados mais de 15 anos desde o protocolo da [ação] inicial, o autor [Estado da Bahia] não possui certeza do objeto do feito e o seu alcance” – ou seja, o governo baiano não saberia, ao certo, qual o tamanho da área supostamente grilada.

Na decisão que liberou as fazendas, o juiz de Correntina alegou também que o imenso bloqueio criava “obstáculo ao crédito dos produtores, de modo a prejudicar toda a cadeia agrícola” no oeste baiano, na fronteira agrícola do Matopiba.

À época da reunião com a PGE, os ruralistas também estiveram com o diretor da Superintendência de Desenvolvimento Agrário (SDA), Gustavo Eduardo Rocha, responsável pela regularização fundiária e reforma agrária na Bahia, e com o coordenador de Análise de Processos de Incentivos Fiscais do estado, Silvio José Santana, para discutir o caso.

À Pública, o juiz Matheus Santos não respondeu às perguntas específicas sobre o caso, baseando-se na lei que impede juízes de se manifestarem sobre processos sem julgamento final.

O magistrado, porém, defendeu a atuação do Judiciário no oeste baiano: “a Comissão de Conflitos Fundiários do TJBA [Tribunal de Justiça da Bahia] tem mantido constante diálogo com os representantes das comunidades tradicionais, o poder público local, os produtores rurais e a PGE, a fim de se construir, conjuntamente, uma solução para os problemas estabelecidos”.

A Pública também procurou o diretor-superintendente da SDA, Gustavo Rocha, para saber o que foi discutido no encontro com os ruralistas no fim de setembro, além da posição da pasta diante das suspeitas de grilagem em torno da matrícula 2280, mas não houve retorno. Caso se manifeste, o texto será atualizado.

Suspeita de grilagem envolve SLC Agrícola (e seus sócios estrangeiros)

Um dos membros da diretoria da Aiba é parte interessada no processo. Com pouco mais de 350 hectares, um dos imóveis recém-liberados na área sob suspeita está registrado em nome da Fazenda Piratini Empreendimentos Agrícolas, uma filial da SLC Agrícola – que hoje ocupa a vice-diretoria administrativa da Aiba.

Piratini é o mesmo nome de outra propriedade da SLC na região, próxima à divisa com Goiás, uma das fazendas mais privilegiadas com concessões de uso de água subterrânea para o agronegócio baiano, como revelado pela Pública.

O latifúndio é partilhado com o fundo britânico Valiance, um dos muitos sócios bilionários da SLC no exterior. Fundada e controlada pela família gaúcha Logemann, a companhia também está associada ao investidor britânico Crispin Odey, um dos principais financiadores do movimento Brexit, no Reino Unido.

Documentos apresentados pela SLC ao mercado financeiro em 2023 revelam ainda, entre seus sócios, uma série de fundos de investimento de categorias trabalhistas dos Estados Unidos, como dos professores aposentados da Califórnia, dos servidores públicos do Alaska, do Novo México e do Missouri, dentre outros.

Grandes investidores do sistema financeiro global também estão associados à SLC, por meio de fundos ligados a JP Morgan Chase, Vanguard e BlackRock – três grupos acusados por organizações indígenas de financiarem projetos nocivos à Amazônia.

À Pública, a SLC Agrícola disse que “não é parte no processo” que bloqueou os mais de 400 mil hectares no oeste baiano e que “a área em disputa [no processo] é distante de onde está localizado” seu imóvel na região. Quanto aos encontros dos ruralistas com o governo estadual e a PGE, a SLC afirmou que “nenhum representante da companhia esteve presente” nas reuniões.

Danos ambientais e ‘pistolagem’ cercam parte dos envolvidos

Em resposta à Justiça Estadual, no último dia 7 de agosto o cartório de registros de Correntina enviou uma lista preliminar com parte dos supostos donos das propriedades atingidas pelo imenso bloqueio de terras, ainda válido à época.

A Pública teve acesso ao documento, que mostra que pelo menos 12 mil hectares da área então bloqueada são controlados pelos irmãos gaúchos John e Harald Kudiess, fazendeiros e donos da empresa J&H Sementes.

John já foi acusado pelo Ministério Público de Goiás de provocar danos ambientais em “vasta região” do Parque Estadual da Terra Ronca (GO), pois teria causado “deslizamento de terra de consideráveis proporções” ao supostamente desviar água da chuva nas plantações de uma de suas fazendas no oeste baiano. À ONG Global Witness, John Kudiess já afirmou que as acusações do MP goiano “não contêm nenhuma prova de que as atividades na propriedade teriam sido a causa de tais deslizamentos”.

O grupo agrícola Igarashi também se destaca entre os nomes do agro envolvidos no caso, controlando pouco menos de 5 mil hectares na área sob suspeita de grilagem. É o mesmo grupo que esteve no coração de uma revolta popular em 2017.

À época, centenas de camponeses invadiram uma das fazendas da companhia em protesto contra a Igarashi, pela empresa poder coletar milhões de litros de água diariamente nos rios próximos enquanto a seca só avança em suas terras.

O conflito escalou a ponto da população de Correntina unir-se e protestar nas ruas contra o ‘libera geral’ de outorgas de uso de água para o agronegócio. Anos depois, o grupo Igarashi segue autorizado a usar fartamente os recursos hídricos na região.

Também do ramo de sementes agrícolas, a Agropecuária Talismã é mais uma com fazendas na área sob suspeita de grilagem. A Pública revelou, em maio passado, que a empresa tinha sido impactada por outro bloqueio de terras em Correntina, de 11 mil hectares, com acusações ainda mais graves por parte da PGE.

Segundo a Procuradoria-Geral, seguranças a serviço da Agropecuária Talismã teriam usado de “ameaças, cárcere privado [contra camponeses], fechamento de estradas tradicionais”, além “da circulação ostensiva e permanente [de seguranças da empresa] pela área portando armas de grosso calibre”, para expulsar camponeses da zona rural em Correntina.

A Pública procurou a Agropecuária Talismã, para ouvi-la sobre as acusações da PGE e sobre a suspeita de grilagem, mas não houve retorno. A reportagem tentou contato com o grupo Igarashi e com a J&H Sementes, mas também não houve resposta. Caso as empresas retornem, o texto será atualizado.

Imagem: Há décadas, comunidades tradicionais disputam áreas de Cerrado nativo com o agronegócio no oeste da Bahia – José Cícero/Agência Pública

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