Consórcios e tratores: as armas de Lira para desbancar Renan Calheiros em Alagoas

Dossiê “Arthur, o Fazendeiro” revela o uso político da Codevasf e dos consórcios intermunicipais Conagreste e Conisul para fortalecer candidaturas da família Pereira em 2024; distribuição de tratores e criação de serviço de inspeção agropecuária beneficiam prefeituras comandadas por primos e aliados

Por Bruno Stankevicius Bassi, em De Olho nos Ruralistas

Publicado na segunda-feira (13/11), o dossiê “Arthur, o Fazendeiro” revela as conexões agrárias e políticas das famílias Lira e Pereira, sobrenomes paterno e materno do presidente da Câmara. Ao longo de seis meses de pesquisa, a equipe do De Olho nos Ruralistas identificou 115 fazendas ligadas a parentes de Arthur Lira, que somam 20.039,51 hectares em Alagoas e Pernambuco. Com elas, um histórico de violações de direitos humanos contado de forma inédita. Da criação de gado na Terra Indígena Kariri-Xocó ao despejo de um casal de camponeses.

O império agropecuário construído pelo clã possui uma interface com a disputa eleitoral. Além da proliferação de primos de Arthur Lira pelas prefeituras do Agreste alagoano, tratada na última reportagem da série, o líder do Centrão utiliza a influência sobre o orçamento federal para fortalecer seu bloco político para o pleito de 2024, em disputa direta com o rival Renan Calheiros.

A operação se divide em duas frentes. A primeira é comandada pelo primo Joãozinho Pereira, superintendente regional da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em Alagoas. Nos últimos meses, o apadrinhado de Lira intensificou o fluxo de entregas de tratores e obras pela estatal. Suas redes sociais não escondem o clima de campanha eleitoral e mostram dezenas de fotos junto às máquinas.

Filiado ao PP de Arthur, Joãozinho é dado como nome certo na disputa pela prefeitura de Junqueiro em 2024. O município serviu de base para a expansão política e pecuária dos Pereira, mas passou para a oposição no último pleito. Primo distante do clã, o atual prefeito Leandro Silva (PTB) não demorou a se aproximar de Renan Calheiros (MDB). Foi o senador quem apoiou a campanha vitoriosa de André Silva, irmão de Leandro, para a Assembleia Legislativa. Em 2024, os irmãos Silva pretendem bater de frente com os Pereira em duas prefeituras: em Teotônio Vilela, Valdir Silva disputará contra o candidato à reeleição Peu Pereira; em Campo Alegre, André enfrentará a ex-prefeita Pauline Pereira.

Eis a urgência de Joãozinho em “mostrar serviço”. Em um vídeo de maio de 2023 obtido por O Globo, ele aparece comemorando junto ao irmão e ex-prefeito Fernando Pereira o início das obras de pavimentação da Codevasf em Junqueiro. O trator mostra mais do que deveria: na lateral aparece um adesivo com o nome do Grupo Pereira, que inclui, entre seus negócios, uma empresa de terraplanagem. A obra de R$ 1,1 milhão foi custeada por uma emenda parlamentar de Arthur Lira.

Poucos dias após a história vir à tona, em 29 de setembro, Joãozinho postou uma arte celebrando o marco de 100 tratores distribuídos pela Codevasf por meio de emendas assinadas por Arthur. “A agricultura tá ON!”, comemorou.

No mês anterior, os dois primos participaram de uma entrega de tratores em Limoeiro de Anadia, um pequeno município vizinho de Junqueiro e Campo Alegre. A cidade é governada por James Marlan Ferreira Barbosa (PP), antecessor de Joãozinho na superintendência regional da Codevasf e o responsável pela segunda frente de avanço do “tratoraço” dos Pereira.

O CONAGRESTE E SEUS TRATORES

Aliado antigo do clã Pereira, Marlan Ferreira deixou a estatal em 2020 para concorrer à prefeitura de Limoeiro de Anadia. Ele foi eleito com 53% dos votos, sendo apoiado diretamente por Arthur Lira, Benedito de Lira e pelos irmãos Joãozinho, Jó, Pauline e Fernando Pereira.

Poucos meses após assumir o mandato, Marlan foi eleito para a presidência do Consórcio Intermunicipal do Agreste Alagoano (Conagreste), uma espécie de “liga de prefeitos” fundada em 2014, que congrega 22 municípios da região e mantém convênios de cooperação com outros quatro. Seu vice é um personagem importante do clã: o prefeito de Craíbas, Teófilo Pereira (PP). Filho mais velho de Adelmo do Junqueiro, ele é o principal administrador das fazendas sobrepostas em terra indígena: “Família de Arthur Lira destruiu mata sagrada dos Kariri-Xocó em Alagoas“.

Aproveitando o trânsito livre em Brasília, os dirigentes do Conagreste articularam com Lira o envio direto de emendas parlamentares para o consórcio. O repasse foi efetuado em 2022, não pelo presidente da Câmara, mas por um de seus principais aliados no estado, o senador Fernando Collor (PTB). Segundo Marlan Ferreira, a verba se encontrava travada e só foi liberada graças à intervenção de Arthur.

Estipulado em R$ 29 milhões, o contrato prevê a compra de 30 tratores com seus respectivos implementos, 9 retroescavadeiras, 12 caminhões e 8 pipas, além de uma escavadeira hidráulica, a serem distribuídos entre os municípios consorciados ao Conagreste.

Neste caso, não houve participação da Codevasf, conforme detalhado em março por Marlan Ferreira, durante a XXIV Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios:

— Atualmente os parlamentares ficam impedidos de colocar recursos devido à inadimplência dos municípios no CAUC [Cadastro Único de Convênios]. É através da Codevasf ou através dos consórcios que os parlamentares podem destinar recursos aos municípios que estão nessa delicada situação. Desses recursos, quando são direcionados, de 3% a 4% ficam para a Codevasf ou para a Caixa [Econômica Federal]. Estamos em busca de que essa porcentagem seja direcionada para os  consórcios, para que possamos contratar técnicos e engenheiros para elaborações de projetos e fiscalizações dessas obras e pavimentações.

Consultada durante a elaboração do dossiê, a Codevasf afirmou que não mantém convênios com o Conagreste, nem realizou doação de tratores aos municípios mencionados.

Os equipamentos começaram a chegar em 23 de junho de 2023. Os três primeiros tratores foram entregues à prefeitura de Limoeiro de Anadia, governada por Marlan Ferreira. A cerimônia contou com a presença do superintendente regional da Codevasf, Joãozinho Pereira. Além destes, outros nove veículos foram destinados, no mês seguinte, às prefeituras de Campo Grande, Craíbas, Feira Grande, Maribondo, Olho D’Água Grande, São Sebastião, Taquarana e Traipu.

Em 29 de julho, durante a solenidade de entrega das máquinas, Arthur Lira detalhou a importância do Conagreste no repasse de recursos aos municípios:

— Quero ressaltar que o consórcio público é o caminho de serem agilizadas as obras, as ações e de conseguir atender de maneira menos burocratizada os municípios. Com estes equipamentos, o Conagreste se organizará. Vai dar uma autonomia a todos os seus municípios.

No dia anterior, em entrevista a uma rádio de Arapiraca, o deputado deixou entrever o real propósito da reinvenção do “tratoraço” via Conagreste. “Todo o desenvolvimento foi feito na Câmara Federal para que os consórcios recebam as emendas diretamente”, declarou. “Sem passar mais pelos governos dos estados!”.

CLÃ PEREIRA REINVENTA O “TRATORAÇO”

— Eu faço questão que o Arthur use a minha senha aí. Arthur, dá um click aí. Assinar, por favor. É só assinar que o dinheiro vai para conta da prefeitura. Está lendo, um, dois, três… Confirmar. Se confirmar… Confirma. Máquina registradora. Contou. Pronto, dinheiro na conta.

É assim, como um tesoureiro, que João José Pereira Filho define sua função na engrenagem de distribuição de verbas parlamentares orquestrada pelo primo Arthur Lira.

O sincericídio foi cometido em 29 de outubro de 2021, durante a assinatura de uma ordem de serviços relativa a obras da Codevasf no município de São Miguel dos Campos. Joãozinho havia chegado à superintendência do órgão em Alagoas pouco meses antes, em abril, por indicação direta do presidente da Câmara.

Em maio daquele ano, o jornal Estadão noticiara o “tratoraço”, a face agrária do orçamento secreto que começava a ser escancarado. Sob o comando de Lira, a mesa diretora da Câmara distribuiu cerca de R$ 3 bilhões em emendas parlamentares para a compra de maquinário agrícola. Os contratos superfaturados eram geridos pela Codevasf com recursos do Ministério do Desenvolvimento Regional. A pasta era comandada pelo ex-deputado — hoje senador — Rogério Marinho (PL), homem de confiança de Lira.

Os tratores eram apenas a ponta do iceberg. A manobra orçamentária envolveu outros ministérios e teve um papel fundamental nas eleições de 2022, turbinando os currais eleitorais de líderes do Centrão. Em troca, estes garantiriam a base de sustentação a Bolsonaro, facilitando sua reeleição. Entre 2020 e 2022, estima-se que o orçamento secreto custou aos cofres públicos R$ 53,9 bilhões — valor equivalente a 91% do PIB de Alagoas.

O resultado não foi o esperado. Boa parte dos parlamentares que utilizaram o recurso foram reeleitos, mas não evitaram a vitória de Lula. Em dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou as “emendas de relator” — que constituíam a base do orçamento secreto — inconstitucionais.

CONAGRESTE INSPECIONA MATADOURO USADO PELO GRUPO PEREIRA

A chegada de Marlan e Teófilo levou o Conagreste a um novo patamar. Em abril de 2022, o grupo lançou o primeiro Serviço de Inspeção Municipal via consórcio de Alagoas. O SIM/Conagreste estabelece um selo de inspeção agropecuária compartilhado entre os municípios conveniados, facilitando a comercialização de produtos como carne e laticínios. A partir desse sistema, os produtores contemplados com o selo de conformidade não precisam passar por novas inspeções sanitárias ao vender em prefeituras integrantes do consórcio.

A plataforma consorciada passou a ser uma pedra no sapato para o governo estadual, que possui um selo próprio emitido pela Agência de Defesa e Inspeção Agropecuária de Alagoas (Adeal), permitindo a comercialização em todo o estado.

O município de Campo Alegre, local do matadouro público usado pelo frigorífico Dom Grill para abater e processar a carne dos bois criados pela família Pereira, esteve entre os primeiros consorciados do Conagreste a aderir a proposta. Com isso, as carnes refrigeradas vendidas por Nicolas Agostinho Pereira podem ser comercializadas nos 26 municípios que compõem o consórcio, sem necessidade de revalidar o selo de conformidade com a inspeção sanitária.

A lista deve crescer ainda mais com a adesão de Japaratinga, Piaçabuçu, Porto Calvo, Igreja Nova e, principalmente, Maceió. O processo na capital já é dado como certo e vem sendo conduzido pessoalmente pelo prefeito JHC — que conta com Jó Pereira em seu secretariado, na pasta de Educação. No dia 30 de outubro, JHC se reuniu com Marlan Ferreira e com o deputado estadual Fernando Pereira, irmão de Jó, que acompanha as negociações para ajustar os últimos detalhes antes do anúncio de adesão.

Mais uma vitória para a Dom Grill, que possui unidade em Maceió. A mesma que, durante sua inauguração,  foi prestigiada pelos filhos do Prefeitão.

CONSÓRCIOS VIRAM ARMA POLÍTICA

O Conagreste não é o único consórcio público dominado pela família Pereira. O Consórcio Intermunicipal do Sul do Estado de Alagoas (Conisul), presidido pelo prefeito de Coruripe, Marcelo Beltrão Siqueira (PP), possui uma atuação voltada para compras públicas de medicamentos, materiais hospitalares, odontológicos e suplementos alimentares, além de possuir acordos de cooperação com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e com a Fundação Itaú Social.

Entre os 17 municípios consorciados estão alguns dos currais eleitorais do clã, como Junqueiro, Teotônio Vilela, Campo Alegre e Barra de São Miguel. A organização possui convênios com outras 39 prefeituras, incluindo Maragogi, governada por Sérgio Lira.

Entre 2017 e 2021, o Conisul foi presidido por Pauline Pereira, ex-prefeita de Campo Alegre. Ao deixar o comando do município, após dois mandatos, ela se tornou superintendente da organização, mantendo-se no cargo até outubro de 2022, quando foi convidada para assumir a gestão financeira do Hospital Veredas, em Maceió. Para manter o feudo, Peu Pereira, prefeito de Teotônio Vilela, assumiu a vice-presidência.

Conhecido pelo antigo nome de Hospital do Açúcar, devido ao longo período em que ficou sob a gestão de uma associação de usineiros alagoanos, a unidade de saúde foi motivo de uma rixa recente entre Arthur Lira e Renan Calheiros. Em junho, funcionários do hospital entraram em greve após quatro meses sem salários. A cobrança recaiu sobre o governador Paulo Dantas (MDB), homem de confiança de Renan. Ele disse que a responsabilidade pela má-gestão era dos indicados de Lira.

Além do fortalecimento dos consórcios intermunicipais, o presidente da Câmara possui outra arma na disputa para defenestrar os Calheiros do Palácio República dos Palmares em 2026. Seus familiares também vêm galgando cargos em associações temáticas, que congregam os interesses de municípios em pautas como Educação e Saúde e possuem interlocução nacional com grupos de outros estados. Em muitos casos, essas demandas conseguem escalar ao nível federal antes de passar pelo governo estadual.

Esse é o caso de Noêmia Pereira, secretária de Educação de Teotônio Vilela e presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação de Alagoas (Undime/AL) entre 2021 e 2023, por indicação do Conisul. Noêmia é herdeira de Adelmo do Junqueiro, irmã de Teófilo Pereira, do Conagreste, e mãe de Nicolas Agostinho, do frigorífico Dom Grill. Seu outro filho, José Nilson dos Santos Filho, o Nilsinho, é secretário de Finanças no mesmo município, governado pelo primo Peu Pereira.

Também em Teotônio Vilela fica lotada Izabelle Monteiro Alcântara Pereira, a esposa de Joãozinho Pereira. Desde 2009 ela vem ocupando cargos executivos no secretariado, seja na gestão do marido, seja na do primo. Atualmente, ela comanda a pasta de Saúde e presidiu, por dois mandatos, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Alagoas (Cosems), entre 2017 e 2021.

Foto principal (Facebook/Joãozinho Pereira): Joãozinho é a “máquina registradora” do clã Pereira.

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