Lideranças indígenas denunciam descaso do poder público na comunidade Belém do Solimões, no Amazonas

Mais de 7.200 indígenas, que integram mais de 1100 famílias, vivem em situação precária e em risco de morte iminente pela precariedade na infraestrutura comunitária

LIGIA APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE I

Belém do Solimões é uma localidade da Terra Indígena (TI) Eware, situada às margens do alto rio Solimões, no município de Tabatinga, Amazonas, região de fronteira com Colômbia e Peru. Povos indígenas Ticuna, Kokama, Kambeba e Kanamari convivem no território em 82 comunidades. Belém do Solimões, considerada a maior do território, tem predominância Ticuna, com mais de 5 mil indígenas.

Nos anos de 1990, esses povos conquistam a demarcação do seu território, que recebe o mesmo nome do igarapé Eware, um local sagrado para o povo Ticuna. Sua origem conta que foram “pescados por Yo’i”, um de seus principais heróis culturais, nas águas vermelhas do igarapé Eware. Daí a importância do local aos Ticuna que mantém viva sua identidade cultural, apesar dos sangrentos ataques e violências cometidos por seringueiros, pescadores e madeireiros no século XVII.

“O território recebe o mesmo nome do igarapé Eware, um local sagrado para o povo Ticuna”

A importância do igarapé continua para os descendentes Ticuna.  “Mesmo hoje em dia, este é para os Ticuna um local sagrado, onde residem alguns dos imortais e onde estão os vestígios materiais de suas crenças (como os restos da casa ou a vara de pescar usada por Yo´i)”, descreve a página Povos Indígenas do Brasil, do Instituto Socioambiental.

Além da resistência pela preservação de sua identidade, como a língua materna, que muitos ainda falam, os Ticuna de Belém do Solimões enfrentam o desafio de garantir sua sustentabilidade econômica e ambiental.

No entanto, o descaso do poder público em suas obrigações de manter as políticas públicas indígenas conquistadas revela uma situação de abandono generalizada. Em documento de denúncia e reivindicação, 80 lideranças Ticuna e Kokama elencam as precariedades da infraestrutura e da falta de assistência e atendimento público dos órgãos públicos responsáveis.

O descaso do poder público em manter as políticas públicas indígenas revela uma situação de abandono generalizada

A comunidade possui 17 pontes que interligam os bairros e permitem o tráfego das pessoas e bicicletas. Todas de madeira, que se encontram em precário e perigoso estado de conservação. Uma delas possui oito metros de altura e 89 metros de comprimento, cujas bases não dão sustentação adequada, colocando em risco iminente quem passa por ela.

São inúmeras as denúncias apontadas no documento: as ruas e estradas sem manutenção inviabilizam a passagem de pessoas e bicicletas e o escoamento das produções agrícolas; o sistema de água não fornece água potável e não alcança todos os bairros da comunidade, que também não conta com saneamento; as escolas estão abandonadas há 13 anos e a creche há 10; na área da saúde, há falta de medicamentos, equipamentos, profissionais, transporte e de infraestrutura adequada; não há segurança na comunidade, apesar do alto índice de alcoolismo e entrada de drogas; não há terminal flutuante na frente da comunidade; a energia elétrica não chega em todas as casas; não há coleta de lixo ou aterro para acomodação do lixo.

A comunidade possui 17 pontes que interligam os bairros […]todas de madeira, que se encontram em precário e perigoso estado de conservação

Tarcy da Silva Muratu, liderança Ticuna e presidente de bairro da TI Eware, fala com dolorido apelo sobre essa situação. “Aqui na nossa aldeia, a maior [Terra] Indígena de Belém do Solimões, está sempre abandonado. Há muito tempo [o poder público] está nos enganando. Falta de água, falta de reciclagem, saneamento básico, energia, ponte, falta muito aqui. Queremos construir pontes concretas. Nossa escola está abandonada há quase 13 anos. Falta merenda escolar também. A nossa creche não funciona bem e por causa disso nosso aluno está saindo quase uma hora [antes] porque não tem merenda”.

Também repleto de angústia está o apelo da Neide Estevão Tomaz Ticuna, diretora da rádio indígena Eware. Neide destaca os problemas que enfrentam. “Às vezes falta a energia e tem que ligar o gerador. Mas o que está piorando é a violência e as drogas. Isso tem que diminuir. Falta polícia também e a polícia pode chegar rápido aqui. Também falta água em nossa rua onde fica nossa escola. Há mais de 10 anos nossa escola está abandonada. Falta ponte, falta educação, falta saúde e remédio”, afirma Neide, lançando seu pedido aos poderes públicos:

Falta de água, falta de reciclagem, saneamento básico, energia, ponte, falta muito aqui

“Nós precisamos muito [de tudo isso], porque nossas famílias estão crescendo. Tem que fazer rápido. Também a nossa ponte. Os alunos vêm de longe [e precisam passar], então, tem que fazer rápido. Nós precisamos de nossa água também. Nossas crianças estão tomando banho com a água da chuva. Nós precisamos muito e vocês tem que fazer algo rápido”, apela a diretora da rádio.

O documento elaborado pelas lideranças em reunião no dia 8 de novembro, além das denúncias, apresenta as reivindicações para regularização dos problemas que enfrentam as mais de 7.200 pessoas da comunidade, que integram mais de 1100 famílias.  O documento foi entregue ao procurador da república do Ministério Público Federal (MPF) em Tabatinga, Guilherme Diego Rodrigues Leal; para a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, em Brasília; Ministério dos Povos Indígenas (MPI); Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI); Prefeitura de Tabatinga; Fundação dos Povos Indígenas (Funai); Secretaria Estadual de Educação do Amazonas (Seeduc); Secretaria Municipal de Educação Tabatinga (Semed); Polícias Federal, Militar e Civil;  Marinha e Exército.

“Nós precisamos de nossa água também. Nossas crianças estão tomando banho com a água da chuva”

Com o lema do Cimi “a luta indígena é de todos nós” à frente em suas ações, o frei franciscano capuchinho, Paolo Maria Braghini, que há 17 anos está na paroquia de Belém Solimões, apoia os esforços que a comunidade está empenhando para reivindicar compromisso e seriedade das autoridades em seu território.

“Nos últimos tempos o abandono a essa comunidade, tanto Eware I como a II e em toda essa região do Alto Solimões, aumentou muito. Há muito tempo as lideranças indígenas de Belém do Solimões, de várias formas, seja individualmente, seja com os caciques reunidos, estão solicitando [ a resolução] de várias necessidades que não são atendidas pelo governo, em suas várias instâncias”, explica Paolo.

“Que a voz das lideranças indígenas, jovens e adultas sejam ouvidas, porque esta, inclusive, é a maior aldeia indígena do Brasil. Vamos buscar as soluções”, conclama o Frei em entrevista ao Vatican News.  “O nosso papel como Igreja é dar voz a quem não é escutado e é preciso que o mundo veja em que estado de abandono está esse povo”, afirma.

Veja aqui o documento na íntegra.

Foto: Esmael Santiago dos Santos/ Rádio Eware

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