Policial foi chamado à escola depois que seu filho chamou um colega de “macaco” e “negro nojento”, segundo testemunhas. Vídeo flagrou PM ameaçando algemar mulher que fez a denúncia. Especialistas vêm abuso de autoridade
Catarina Duarte, na Ponte
Ao ser chamado na escola porque seu filho teria dirigido insultos racistas a um colega, um sargento da Polícia Militar do Paraná resolveu dar voz de prisão para a mulher que havia levado a denúncia ao colégio. Mesmo estando presente a uma reunião escolar na condição de pai, e não de policial, o PM tentou impedir que a mulher deixasse o local, a empurrou e ameaçou algemá-la.
A violência ocorreu na segunda-feira (20/11), Dia da Consciência Negra, no Colégio Estadual do Paraná, em Curitiba, e foi registrada em vídeo. O caso foi levado a público pelo advogado antirracista Valnei Francisco (Fils) de França Filho. Especialistas ouvidos pela Ponte confirmaram que o policial cometeu abuso de autoridade.
O PM e a mulher, que é mãe de outro aluno, estavam na escola para uma reunião pedagógica convocada pela direção após uma denúncia de racismo. O episódio teria ocorrido no dia 14 deste mês. Segundo relato de familiar de um estudante negro à Ponte, o aluno foi chamado de “macaco” e “negro nojento” pelo filho do policial.
O insulto racista foi motivo para a mobilização do Coletivo Preto, grupo formado por estudantes da escola. Os adolescentes passaram em salas de aula falando sobre a importância de um discurso antirracista. Segundo a mãe que recebeu voz de prisão do PM, quando os adolescentes do Coletivo estiveram na sala onde estava o filho do PM, houve uma discussão com ele.
Em nota, o colégio informou que foi neste contexto que convocou os pais de cinco estudantes para a reunião — tanto os que se envolveram no caso da ofensa racista como os que participaram da discussão com o filho do policial. “Um episódio lamentável ocorreu quando o pai do aluno que, segundo denúncias, proferiu o ato racista, cometeu abuso de autoridade contra a mãe de um dos estudantes”, escreveu a instituição em nota.
Um vídeo gravado durante a reunião de segunda mostra a mãe questionando a atitude do PM, que não a deixa sair da sala onde a reunião ocorre. A mulher, que preferiu não ser identificada por medo de represálias, conversou com a Ponte.
Ela conta que, desde o começo da conversa com a direção, já se sentiu acuada pela forma de falar do PM e que isso foi registrado em ata. “Depois que a reunião terminou eu falei para ele: ‘o senhor está se usando do aparato da Polícia Militar para defender o seu filho que cometeu atos racistas’”, diz.
Foi quando o sargento deu voz de prisão à mulher e passou a impedi-la de sair da sala onde estavam. No vídeo é possível ouvir o PM dizendo que a algemaria mesmo sem que ela apresentasse resistência. “Eu vou algemar a senhora. A senhora quer ficar algemada?”, diz.
A mulher relatou à Ponte que o PM chegou a empurrá-la durante a abordagem. Os dois foram encaminhados para uma delegacia por agentes do Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária. O caso, segundo a mãe, foi registrado pela Polícia Civil como calúnia.
A mulher contou que a Polícia Civil não aceitou registrar um boletim de ocorrência pelo abuso de autoridade do PM. Ela deve acionar a Corregedoria da Polícia Militar nos próximos dias.
A mãe do jovem negro que teria sido vítima de racismo também estava presente na reunião. Ela contou que ficou intimidada com a presença do policial armado e fardado na reunião e que ele não demonstrou comprometimento em tentar resolver o problema. “A intenção dele não era esclarecer pedagogicamente, atuar pedagogicamente numa ação para adolescentes. A intenção dele lá era prender alguém, seja quem fosse. Era exercer o poder dele como policial”, afirma.
Ela conta que o filho lida com o racismo no cotidiano, mas que ela sempre o ensinou a se defender e identificar quando é alvo de descriminação. “O meu filho desde quando se conhece por gente vive isso todos os dias. Ele é impedido de entrar no shopping, aprendeu que não pode andar com a mão no bolso. Ele não anda de boné, não corre para pegar ônibus. O racismo é o dia-a-dia dele”, comenta.
A mulher diz temer pela segurança do filho após o caso envolvendo o PM. Ela tentou registrar um B.O. sobre o caso na cidade onde vive, mas foi orientada a procurar uma delegacia em Curitiba. Ela também conta que vai acionar a Corregedoria.
“Eu tenho medo como mãe e meu filho tem medo como indivíduo. Ele pega o ônibus sozinho, vai para a escola sozinho. O que pode acontecer com ele no meio do trajeto? Eu tenho medo por ele. Eu tenho medo da vida dele”, afirma.
O advogado Valnei Fils de França Filho, que denunciou o caso nas redes, disse em vídeo que vai acionar a Corregedoria da PM para saber se o comando da corporação apoiou a atitude do sargento.
Abuso de autoridade
Para a advogada criminalista Débora Nachmanowicz, ouvida pela Ponte, a partir das imagens é possível falar em abuso de autoridade. “Em um olhar geral é absolutamente autoritário a maneira como o policial age em relação a essa mãe. Nós não sabemos o que aconteceu nos minutos anteriores desse vídeo, mas me soa sim, um exagero”, disse.
Nachmanowicz explica que a ação do militar se enquadra em tipificações previstas na Lei de Abuso de Autoridade, no artigo 13, que trata de “submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei”. Como o PM impediu a mulher de tentar sair da sala, também poderia ser enquadrado no artigo 9, que proíbe qualquer “medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. Nos dois casos, a pena vai de um a quatro anos de detenção.
Para o advogado Ariel de Castro Alves, ex-secretário nacional dos Direitos das Crianças e do Adolescente, a membro do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, a polícia deveria investigar não só o abuso de autoridade, mas também os possíveis crimes de ameaça e racismo.
“Claramente o policial cometeu abuso de autoridade e usou o cargo para prender a mulher sem que ela estivesse em flagrante de qualquer crime. Então ele precisa ser investigado pelos crimes de abuso de autoridade, ameaça e racismo contra a vítima. Administrativamente ele precisa responder pelo uso do cargo para fins particulares”, comenta.
Já Maria Tranjan, coordenadora do Programa de Proteção e Participação da ARTIGO 19 Brasil e América do Sul, avalia ser comum a tentativa de culpabilização do denunciante em casos de racismo e homofobia, por exemplo. A problemática disso, avalia, é o fortalecimento do processo de silenciamento das minorias.
“Isso é absolutamente comum, infelizmente, e é uma estratégia que é comumente mobilizada para silenciar as pessoas, para ferir o direito à liberdade de expressão, especialmente desses denunciantes, dessas vítimas de violências relacionadas a desigualdades de caráter estrutural e histórico na sociedade brasileira, e isso realmente é um problema muito grande, porque o que nós acabamos vendo em decorrência desses casos, dessas ameaças, ou dos processos de criminalização de fato, é um processo de autossilenciamento”, afirma.
O que diz a Secretaria de Educação
A Secretaria Estadual de Educação do Estado do Paraná (SEED/PR) informou por nota estar ciente da situação e que colabora com as autoridades para resolver o que chamou de incidente:
Nesta segunda-feira (20), durante reunião pedagógica convocada pela direção do Colégio Estadual do Paraná (CEP) para abordar um caso de racismo envolvendo dois estudantes da instituição, foi registrada uma situação de abuso de autoridade. Os responsáveis pelos alunos foram convocados pela escola para resolver a questão em nível pedagógico, mas durante a reunião, o pai do estudante, que é sargento, deu voz de prisão à mãe da aluna vítima de racismo. A direção do colégio agiu imediatamente, acionando o Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária (Bpec), que prosseguiu com a condução dos envolvidos à delegacia onde – por parte da mãe da estudante – foi registrado Boletim de Ocorrência por abuso de autoridade e, pelo sargento, por desacato. A direção está oferecendo apoio às vítimas tanto de racismo quanto de abuso de autoridade. O caso segue sob investigação da Polícia Civil.
Reforce-se que as ações dos pais dos alunos estão além do escopo da escola, que está colaborando plenamente com as autoridades competentes para esclarecer e resolver o incidente.
O que diz a polícia
A Ponte solicitou entrevista com o sargento envolvido no caso à Secretaria de Estado da Segurança Pública do Paraná, mas não teve retorno. A (SESP/PR) chamou a situação, classificada por especialistas como abuso de autoridade, de “discordância”. Em nota, informou que a Polícia Militar abriu um procedimento para apurar o caso, que também é investigado pela Polícia Civil:
A Secretaria da Segurança Pública do Paraná informa que referente ao acontecimento nos dias 17 e 20 de novembro, no Colégio Estadual do Paraná, ocorreu um desentendimento entre alunos da instituição.
Após esse episódio, os pais desses alunos, foram convocados para maiores esclarecimentos durante uma reunião pedagógica convocada pela direção do colégio que aconteceu na tarde de ontem (20).
Durante a reunião, houve uma discordância entre eles, precisando a direção do colégio acionar o Batalhão de Patrulha Escolar Comunitária (Bpec). O caso foi encaminhado para a Polícia Civil do Paraná, para esclarecimento dos fatos.
A Polícia Militar do Paraná abriu procedimento administrativo para apurar as circunstâncias da ocorrência.
Eles foram encaminhados pela Polícia Militar à Central de Flagrantes da PCPR. Ambos foram ouvidos e assinaram um termo circunstanciado.
O procedimento será encaminhado ao 1° Distrito da PCPR em Curitiba para a realização de diligências complementares a fim de esclarecer os fatos.