Visível e Invisível: a complexidade em torno da violência e acolhimento das mulheres. Entrevista especial com Amanda Lagreca

Pesquisadora detalha os dados do relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Por: João Vitor Santos, em IHU

Folheando a nova edição do relatório Visível e Invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é possível compreender que ainda somos uma sociedade machista e que subjuga a mulher. “Em relação aos casos de estupro e estupro de vulnerável, o crescimento foi de 14,9% no Brasil. Diferentemente do que aconteceu em relação ao feminicídio, o crescimento ocorreu em todas as regiões brasileiras”, aponta Amanda Lagreca, pesquisadora do Fórum.

Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por WhatsApp, Amanda ainda acrescenta que “estamos falando de um cenário em que os casos de estupro estão crescendo como um todo e as políticas públicas precisam olhar para isso, principalmente porque estamos falando de uma violência que acomete crianças”. Para ela, “isto revela que a mulher ainda é objetificada pela sociedade, que a sociedade é muito machista. O corpo da mulher é compreendido enquanto um corpo que pode ser invadido, pois falamos de uma violência que, necessariamente, invade o corpo desta mulher”.

E não é somente a violência sexual que preocupa. Apesar de ter sofrido uma queda em quase todas as regiões, os números de feminicídio no Sudeste impressionam. Em São Paulo, há um aumento de 33% dos casos. No Espírito Santo, a alta é de 20%. “Estamos falando de uma situação em que o Estado precisa não só enfrentar a violência – realizar a denúncia e acolher as provas –, mas também acolher essa vítima. Estamos falando de uma violência que pode, sim, deixar marcas físicas e que tem raízes muito profundas”, sintetiza a pesquisadora.

Amanda Lagreca é pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e mestranda em Administração Pública e Governo na Fundação Getúlio Vargas – FGV.

Confira a entrevista.
IHU – O Brasil registrou 722 feminicídios entre janeiro e junho de 2023, um total de 2,6% a mais do que os 704 casos no primeiro semestre de 2022. Como podemos compreender este aumento de casos?

Amanda Lagreca – Quando falamos sobre dados de feminicídios e este aumento que registramos no primeiro semestre de 2023 em comparação com o primeiro semestre de 2022, é preciso considerar que ainda é muito cedo para falarmos em principais causas deste aumento. No entanto, o que podemos dizer é que nós, enquanto sociedade civil, governo, enquanto organizações públicas que estão implementando as políticas públicas de enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres e meninas, precisamos olhar com muita atenção para estes dados. Principalmente porque eles podem ser indicativos do que vai acontecer em 2023. Não podemos considerar que isso significa um aumento, quando falamos no ano como um todo, mas podemos ver que houve um aumento na comparação com o mesmo período do ano anterior.

E este aumento diz respeito tanto a uma violência letal, ou seja, as mulheres estão morrendo mais, quanto a vítimas de violência sexual. Isto não ocorre de forma igual em todo território brasileiro. Quando olhamos para os casos de violência letal e feminicídio, percebemos uma queda em todas as regiões, com exceção do Sudeste, que teve um crescimento nos estados de São Paulo e Espírito Santo. Este segundo estado teve uma elevação também de 20%. Já São Paulo teve um crescimento de 33% dos casos. Por isso, precisamos olhar com atenção para os casos específicos.

Em relação aos casos de estupro e estupro de vulnerável, o crescimento foi de 14,9% no Brasil. Diferentemente do que aconteceu em relação ao feminicídio, o crescimento ocorreu em todas as regiões brasileiras. Então, estamos falando de um cenário em que os casos de estupro estão crescendo como um todo e as políticas públicas precisam olhar para isso, principalmente porque estamos falando de uma violência que acomete crianças. A maior parte destes casos são de crianças de 10 a 13 anos, isso olhando para os dados de 2022 como um todo.

IHU – Por que estas regiões são destaque no aumento dos casos?

Amanda Lagreca – Ainda não conseguimos elencar as causas específicas do que está acontecendo nestes lugares. Por isso, as políticas públicas que estão sendo implementadas localmente precisam se atentar para isso. Estas políticas públicas precisam agir de forma intersetorial, olhando tanto para as políticas de saúde como para as políticas educacionais, de assistência social, mas principalmente para as políticas de enfrentamento desta violência dentro do sistema de Justiça Criminal. É olhar para as delegacias, para a Polícia civil como um todo, atentando para o cenário de segurança pública também.

IHU – Os estupros cresceram 14,9% neste semestre. O que isto revela?

Amanda Lagreca – No que diz respeito à violência sexual, estupros e estupros de vulneráveis, isto revela que a mulher ainda é objetificada pela sociedade, que a sociedade é muito machista. O corpo da mulher é compreendido enquanto um corpo que pode ser invadido, pois falamos de uma violência que, necessariamente, invade o corpo desta mulher.

O que chama atenção é que estes casos, em geral, não são de mulheres adultas. Acontecem casos com mulheres adultas. Falamos que violência de gênero é “democrática” e acomete todas as mulheres, mas há perfis muito específicos também. No caso da violência sexual, as vítimas frequentemente são crianças.

IHU – Durante o período de maior isolamento social na pandemia de Covid-19, houve uma explosão de casos de violência contra a mulher. Em comparação com 2020 e 2021, o que os números atuais revelam?

Amanda Lagreca – Durante a pandemia de Covi-19, quando perguntamos na Visível e Invisível, uma pesquisa de vitimização que publicamos a cada dois anos, quais os motivos que as mulheres enxergavam que levavam a este aumento de casos durante este período, elas responderam trazendo a questão financeira. Então, o fato da perda de emprego na família, e levando em conta que muitas mulheres são chefes de família, a perda de renda, causava estresse ao ambiente e a violência foi sendo agravada. Ela era mais vítima pelo estresse que acometia aquele ambiente.

Quando olhamos agora os dados de 2023 e fazemos esta comparação, considerando os dados do primeiro semestre dos anos desde 2019, vemos que houve uma queda de alguns crimes em 2020. Não todos, mas no caso de estupros percebemos uma queda relevante e esta queda muito provavelmente está associada a restrição de circulação. É uma queda artificial, pois os crimes não estavam sendo denunciados, embora estivessem acontecendo.

Já olhando para os dados de feminicídio e homicídio doloso, não ocorre esta queda em 2020, mesmo porque estes crimes, em geral, acontecem dentro de casa e neste período de isolamento continuam acontecendo. Por isso, precisamos olhar sempre para o período da pandemia como um ponto fora da curva. A comparação dos dados é importante, mas ela por si só não diz muita coisa no sentido de que a violência voltou a outros patamares. Então, principalmente em relação ao estupro, percebemos que há mais casos do que o primeiro semestre de 2019.

IHU – Há muitas queixas de mulheres que, apesar de possuírem medidas protetivas, ainda são assediadas por seus agressores. Por que isto acontece? Onde estão as falhas neste processo de proteção?

Amanda Lagreca – As medidas protetivas de urgência são um mecanismo previsto na Lei Maria da Penha e um mecanismo que sofreu alteração recentemente, podendo ser concedido pela autoridade policial, na delegacia em que a mulher fez a denúncia. Isso torna esta lei um mecanismo usado cada vez mais pelo sistema policial e de Segurança Pública como uma forma de enfrentamento da violência.

As medidas protetivas podem ser diversas. Uma delas é a proibição da aproximação ente o agressor e a vítima. Quando dizemos que esta medida não tem sido necessariamente efetiva, falamos de um cenário que pode ter muitas condições. Pode ocorrer um cenário onde o agressor e a vítima se aproximam em decorrências dos filhos, ou porque a igreja em que frequentam é a mesma. Há muitos elementos que podem influenciar esta efetividade ou não.

Quando falamos da política pública como um todo, temos que considerar que existem equipamentos, políticas que fazem o monitoramento desta medida protetiva. As Rondas Maria da Penha, em geral, fazem isso, existem guardas civis municipais que fazem isso, a polícia militar faz isso. Tem uma série de mecanismos que fazem isso. Especificamente no caso de falha, temos que analisar o caso de forma muito específica.

Um fator que sempre elencamos é que a maior parte das vítimas de feminicídio não tinha uma medida protetiva de urgência vigente no momento em que ela foi morta, o que significa que muitas vezes esta vítima não chega na instituição de segurança pública para poder pedir este equipamento de proteção e muitas vezes nem sequer fez um boletim de ocorrência contra este agressor. E por isso temos apontado que o Estado tem falhado em atender, acolher e proteger essas mulheres.

IHU – Que iniciativas destaca como eficazes na proteção de mulheres vítimas de violência?

Amanda Lagreca – Quando falamos em iniciativas eficazes de proteção à violência contra meninas e mulheres, temos uma publicação chamada Experiências Inovadoras de Enfrentamento à Violência Contra Meninas e Mulheres no Brasil, onde mapeamos experiências no Brasil como um todo, sempre pautadas através de instituições de Justiça e Segurança Pública, como as polícias Civil e Militar, a Guarda Civil, o Ministério Público, entre muitos órgãos, que mostram que eles conseguem de fato fazer a diferença na vida de meninas e mulheres.

Estamos falando de diversas experiências, desde um mecanismo eficaz de solicitação de medida protetiva sem que seja necessário ir à delegacia, até uma ronda que consegue, de alguma forma, monitorar essa mulher com medida protetiva de urgência, ou salas de atendimento específicas em delegacias – chamadas “sala lilás” –, quando não há delegacias da mulher no território. Mas também falamos de algumas medidas para quando não há delegacias próximas – como a Ronda Maria da Penha itinerante na PM do Acre.

Enfim, existem várias iniciativas. Mas o que essas iniciativas têm em comum é que a vítima consegue ser acolhida quando precisa do Estado, porque quando chega ao Estado ela está muito vulnerável, acabou de sofrer uma violência. Portanto, estamos falando de uma situação em que o Estado precisa não só enfrentar a violência – realizar a denúncia e acolher as provas –, mas também acolher essa vítima. Falamos de uma violência que pode deixar marcas físicas e que tem raízes muito profundas.

Muitas vezes o agressor é o marido da mulher, que é pai dos filhos dela, tem uma dependência até emocional, tem a violência psicológica, tem violência patrimonial envolvida nessa denúncia que ela está fazendo. Temos que dar conta de olhar para essa complexidade de acolhimento da vítima e o possível enfrentamento da violência com o prosseguimento da denúncia.

Foto: Geovana Albuquerque | Agência Brasília

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