Obesidade infantil, pandemia e ultraprocessados

Crise sanitária aumentou o preço da comida saudável, ampliando consumo de produtos baratos e de má qualidade. Brasil está acima da média global em sobrepeso de crianças e adolescentes – e precisa agir, com regulação e aumento de impostos

por Gabriela Leite, Outra Saúde

A pandemia de covid-19 continua a reverberar na vida dos brasileiros em diversos aspectos – e a alimentação é um dos mais cruciais. Um levantamento realizado pelo Observatório de Saúde na Infância (Observa Infância), da Fiocruz, analisou os dados de sobrepeso e obesidade entre crianças e adolescentes no país e em cada região. A descoberta foi que a crise sanitária contribuiu para ampliar o excesso de peso entre as faixas etárias de até 5 anos e entre 10 e 18 anos. Mas o problema já era grave, mesmo antes: o Brasil está muito acima da média global e da América Latina, quando se trata da obesidade infantil.

O que aconteceu para os jovens engordarem durante a pandemia? “A gente tende a atribuir toda a culpa ao sedentarismo, à dificuldade ou ausência de espaços públicos em função do distanciamento e do isolamento social. Contudo, o que a gente observa é que também nesse período aumentaram a fome e a insegurança alimentar”, interpreta Cristiano Boccolini, pesquisador e professor da Fiocruz, responsável pelo levantamento, em entrevista ao Outra Saúde. Mas como a volta da fome influencia no que parece seu oposto, o aumento de peso?

A resposta, segundo Cristiano, está no aumento do consumo de alimentos ultraprocessados – comida industrializada composta por ingredientes de qualidade nutricional baixíssima, enriquecidos com conservantes, aromatizantes, edulcorantes e outros químicos. Vão desde biscoitos recheados e lasanhas congeladas a pães de forma e requeijão. “Por mais paradoxal que seja, a situação de insegurança alimentar leva ao aumento do consumo de ultraprocessados, porque as famílias não têm condições de preparar seus próprios alimentos ou de adquirirem alimentos saudáveis, comida de verdade. Elas acabam lançando mão desses alimentos que estão prontos e semiprontos, que têm todos esses conjuntos de químico”, alerta Cristiano.

Durante a pandemia, entre 2020 e 2022, a insegurança alimentar (situação de uma pessoa que não tem pleno acesso a alimentos todos os dias) chegou a 70,3 milhões de brasileiros, segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Como mostram os gráficos a seguir, elaborados pelo levantamento do excesso de peso do Observa Infância, o impacto na alimentação entre os mais jovens foi relevante. Entre as crianças, a tendência geral era de queda do sobrepeso, claramente revertida em 2020. Observar essa faixa etária, de até 5 anos, é relevante porque é uma fase em que os bebês transitam do aleitamento à introdução alimentar. É um período de muita importância para seu desenvolvimento.

Excesso de peso entre crianças de até 5 anos

Já os adolescentes de 10 a 18 anos, que atravessam o período escolar, têm ganho relativo de autonomia em relação à sua alimentação. Essa faixa etária traz preocupações por ter uma tendência inversa à das crianças: nos últimos 10 anos, é possível observar um aumento do sobrepeso. Esse crescimento foi acentuado nos anos da pandemia, seguido por uma queda em 2022 mas ainda bastante superior aos números de 2019. No ano passado, quase um terço (31,2%) dos adolescentes estavam com excesso de peso, bastante acima da média global (18,2%).

Excesso de peso entre adolescentes entre 10 e 18 anos

Há outro elemento bastante claro nos gráficos, que torna a compreensão do fenômeno mais complexa: a disparidade entre regiões. Cristiano explica que um dos motivos pelos quais o Sul concentra mais adolescentes com sobrepeso é a maior disponibilidade de alimentos ultraprocessados. O fato de a população ter poder aquisitivo mais alto que a média da população também contribui para isso – o que mostra como o perfil dos consumidores desse tipo de alimento é vasto e atinge todos os extratos sociais.

Segundo o relatório do levantamento da Observa Infância, “O Nordeste se destaca com o maior índice de crianças com excesso de peso, e, ao mesmo tempo, apresenta uma tendência de redução mais modesta na série histórica. É digno de nota que, apesar do Centro-Oeste apresentar o menor percentual de crianças com excesso de peso, liderou em termos de redução anual média. Esse quadro reforça a necessidade de medidas e intervenções regionalizadas, considerando as particularidades de cada região.”

Cristiano considera que a recente regulamentação da rotulagem dos alimentos ultraprocessados, que indica aqueles que têm alto teor de açúcar, gordura e sódio, é uma medida importante para começar a enfrentar o problema. “A gente espera que esse tipo de ação, como acontece em outros países, tenha impacto no consumo de ultraprocessados e, por consequência, redução da obesidade”, afirma. Mas é preciso ir além, para ele, com o aumento de impostos nesse tipo de produto, “incluindo refrigerantes, biscoitos, doces e outros”.

O pesquisador destaca, ainda, o papel das escolas e da publicidade: “Há políticas bem-sucedidas de restrição do consumo de ultraprocessados no ambiente escolar, de proibição ou restrição da venda dentro das escolas. Muitas vezes, no perímetro das escolas – porque o apelo ao consumo desses alimentos está presente em diversas redes sociais, por meio de influenciadores e canais de YouTube e outras redes sociais. Existe um apelo, um marketing agressivo, muitas vezes abusivo, desses produtos direcionados direto para os adolescentes. Então seria preciso também uma maior limitação da promoção e marketing desses produtos para o público adolescente”.

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