Saúde argentina à beira do abismo?

Sanitarista explica como funciona o sistema de saúde no país e quais os riscos que corre, sob o novo governo de Javier Milei. Capacidade do presidente é limitada, mas a repetição da lógica privatistas e individualista põe em risco cuidado da população

por Gabriel Brito, Outra Saúde

Javier Milei é o mais recente fenômeno político de extrema-direita eleito presidente de um país no embalo de massivas e confusas insatisfações “contra o sistema”. Mas ao menos na Saúde, as promessas do novo chefe de Estado da Argentina, apesar da retórica, mostram indícios de repetição de fórmulas aplicadas pelos setores mais privilegiados da sociedade em períodos não tão distantes.

Ao que tudo indica, no frigir dos ovos a promessa é de uma experiência neoliberal mais radicalizada. É o que se pode deduzir a partir da entrevista de Claudio Bloch, médico sanitarista e subsecretário de saúde de Morón, cidade da província de Buenos Aires. Em conversa com o Outra Saúde, Bloch analisou os planos de Milei e aproveitou para explicar a estrutura do sistema de saúde argentino.

“Existe um Ministério da Saúde Nacional e existem os Ministérios da Saúde Provinciais, mas segundo a constituição, o direito à Saúde, ou seja, a responsabilidade primária, é das províncias. Isso ocorre porque, de acordo com a constituição, as províncias têm precedência sobre a nação. Portanto, o direito à saúde, nesse sentido, não é universal. O Ministério da Saúde Nacional tem principalmente um papel normativo, com alguma transferência de recursos, mas sua função principal é de normatização e fiscalização. A prestação de serviços, especialmente em hospitais, é de responsabilidade das províncias”, introduziu.

Dessa forma, Bloch elucida que, embora todo cidadão tenha possibilidade de acessar um serviço público de saúde, não há uma centralização federal do sistema – o que em parte explica a cautela de Milei ao afirmar após ser eleito que, na Saúde e Educação, a agenda privatista não ocupa o horizonte próximo. Além disso, boa parte do acesso à Saúde se dá por meio do sistema previdenciário, como era o caso do Brasil antes da Constituição de 1988 e da formulação do SUS.

Quanto ao seus planos de comprimir os ministérios da Saúde, Educação, Trabalho e Desenvolvimento Social numa pasta de “Capital Humano”, Claudio Bloch destaca que não se trata exatamente uma novidade. Mauricio Macri (na presidência de 2015 a 2019) também reduziu a Saúde a uma secretaria, enquanto Carlos Menem (que governou entre 1989 a 1999) foi mais enfático em avançar no seu desfinanciamento.

“Em resumo, a proposta é preocupante e se assemelha muito à que foi proposta pelo Banco Mundial na década de 1990 – que já fracassou na Argentina e resultou em uma maior exclusão das pessoas para acessar serviços de saúde de qualidade”.

Como destaca Claudio Bloch, o direito à saúde na Argentina avança ou retrocede de forma diretamente atrelada ao momento econômico do país – o que torna o futuro próximo preocupante, uma vez que o país passa por profunda crise neste âmbito. Se adotada, a proposta do secretário de Saúde escolhido por Milei, Eduardo Filgueira Lima, poderia atacar ainda mais esse direito, uma vez que atrelaria o provimento de serviços à procura, isto é, adotaria uma relação de oferta e demanda já fracassada anteriormente.

Em sua visão, a chave é entender a saúde como um direito, o que aconteceu de forma satisfatória durante a pandemia no país. “A lógica de Milei é totalmente individualista e não considera a população em termos de direitos. A verdade é que não vejo que as abordagens que tomará na área da Saúde sejam adequadas para lidar com os nossos problemas sanitários. Digo que estou preocupado porque, apesar de tudo, a resposta à epidemia de covid foi, em geral, bastante apropriada na Argentina, pois se baseou no conceito do direito à saúde. Mesmo em um momento em que os privados estavam à beira da falência, foi oferecido atendimento a todos, e essa possibilidade esteve claramente vinculada à intervenção do Estado”, afirma Bloch.

Leia os principais trechos da entrevista abaixo.

Como funciona o sistema de saúde na Argentina?

A estrutura do sistema público tem três subsistemas: o sistema estatal, o da seguridade social e o privado. Qualquer pessoa pode ser atendida no público, mesmo tendo seguridade social e privada. Não há o direito à saúde como está na Constituição do Brasil, não existe um Sistema Único de Saúde, mas está disposto nesses três subsistemas e qualquer pessoa pode ser atendida no subsetor público.

Existe um Ministério da Saúde Nacional e existem os Ministérios da Saúde Provinciais, mas segundo a constituição, o direito à Saúde, ou seja, a responsabilidade primária, é das províncias. Isso ocorre porque, de acordo com a constituição, as províncias têm precedência sobre a nação. Portanto, o direito à saúde, nesse sentido, não é universal. O Ministério da Saúde Nacional tem principalmente um papel normativo, com alguma transferência de recursos, mas sua função principal é de normatização e fiscalização. A prestação de serviços, especialmente em hospitais, é de responsabilidade das províncias.

O governo nacional, ou Estado Nacional, também chamado de federal, é essencialmente um Estado normativo com poucas prerrogativas próprias. Ele possui alguns hospitais gerais e especializados e realiza principalmente transferências de fundos para programas específicos, como o de HIV/aids, saúde reprodutiva, doenças crônicas e medicamentos para o primeiro nível de atendimento. A maioria das responsabilidades recai sobre as províncias e os municípios.

Isso significa que, se alguém analisa a contribuição econômica total do Estado, o sistema federal corresponde a menos de 10% do sistema. Depois, o restante é principalmente proveniente das províncias e, em menor medida, dos municípios. A maioria dos hospitais é de responsabilidade das províncias, havendo alguns hospitais municipais. Em geral, os municípios são responsáveis pelo primeiro nível de atendimento, enquanto as províncias têm a responsabilidade pelos hospitais, que seriam considerados o terceiro nível.

Em relação a isso, o setor público exclusivamente é responsável por aproximadamente 40% da população do país. Os outros 60% são cobertos, mais ou menos, por 40% da seguridade social e aproximadamente 15% a 20% pelo gasto privado de forma direta. De qualquer maneira, a maior parte das camas ou leitos está no setor público, sendo 60% pertencentes a esse setor e 40% ao setor privado.

Qual o peso da saúde privada na prestação de serviços à população?

O peso do setor privado inclui, neste caso, a seguridade social, porque avança ano após ano. Ou seja, cada vez mais há um setor privado em expansão, e também cresce o gasto direto do bolso do cidadão mesmo para aqueles que são atendidos no setor público. Isso também depende dos momentos históricos. Na década de 1990, durante o governo de Menem, houve uma grande transferência de recursos do setor público para o privado, o que está, em teoria, alinhado com a nova proposta de Milei.

Há uma mudança na atenção à saúde quando há mais desemprego e perda da seguridade social. Nesses casos, há uma migração dos setores que eram atendidos pela seguridade social para o setor público. Essa dinâmica ocorre de acordo com as condições socioeconômicas que o país atravessa.

A questão de transferir diretamente para as províncias e municípios a responsabilidade pela Saúde apresenta um problema significativo. Existem províncias ou municípios que não conseguem arcar com a manutenção de hospitais de alta complexidade ou, por exemplo, tratamentos para o HIV/aids ou doenças oncológicas. Nesse sentido, surge claramente um problema que vai contra a ideia de um direito à saúde para todos igualmente, pois isso dependerá da capacidade e dos recursos de cada município ou província para fornecer serviços de saúde à sua população.

Claramente, em um país onde 40% da população vive em situação de pobreza, pensar que a privatização resolverá problemas parece, à primeira vista, agravar a situação. Isso porque retirará recursos dos setores mais desfavorecidos e vulneráveis, que têm direito à saúde e à educação. Ao propor o processo de privatização, parece que haverá um aumento na remoção da possibilidade de essas pessoas terem acesso a serviços de saúde e educação adequados.

A lógica de Milei é totalmente individualista e não considera a população em termos de direitos. A verdade é que não vejo que as abordagens que tomará na área da saúde sejam adequadas para lidar com os nossos problemas sanitários. Bem, digo que estou preocupado porque, apesar de tudo, a resposta à epidemia de covid foi, em geral, bastante apropriada na Argentina, pois se baseou no conceito do direito à saúde. Mesmo em um momento em que os privados estavam à beira da falência, foi oferecido atendimento a todos, e essa possibilidade esteve claramente vinculada à intervenção do Estado. Portanto, a diminuição do papel do Estado conforme proposto por Milei realmente gera muita preocupação.

Créditos da imagem: Central de Trabajadores y Trabajadoras de la Argentina (CTA)

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