O papa Leão XIII estava muito atento aos problemas que surgiram no final do século XIX, sobretudo aos questionamentos de grupos intelectuais sobre questões sociais, religiosas e no campo bíblico. Ele publicou dia 15 de maio de 1891, a Encíclica Rerum Novarum sobre as injustiças que o capitalismo estava impondo sobre os operários e outras questões sociais e a Encíclica sobre os estudos da Bíblia Deus Providentíssimo, publicada em 18 de novembro de 1893. Esse documento nasceu em uma época marcada por polêmicas e ataques contra a Igreja. A exegese liberal trazia um apoio importante, porque utilizava todos os recursos das ciências, desde a crítica textual até a geologia, passando pela filologia, pela crítica literária, pela história das religiões, pela arqueologia e por outras disciplinas.
A Encíclica Deus Providentíssimo buscava proteger a interpretação católica da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista. A encíclica do Papa “convida os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos”[1]. O primeiro meio de defesa é o estudo das línguas antigas do Oriente e o exercício da crítica científica. Pois, neste tempo havia muitos questionamentos sobre a autenticidade, a antiguidade, a integridade e o valor histórico dos Livros Bíblicos.
O Papa Leão XIII já havia manifestado a sua constante preocupação com os problemas relativos aos textos bíblicos com diversas intervenções. Em 1902 o papa criou a Comissão Bíblica e em 1909 o Papa Pio X fundou o Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, na Itália. Em 1920 o Papa Bento XV celebrou o milésimo quinquagésimo aniversário da morte de São Jerônimo com a Encíclica sobre a interpretação da Bíblia.
Para celebrar o cinquentenário da Encíclica Deus Providentíssimo, o papa Pio XII escreveu, em 1943, a Encíclica O Sopro Divino do Espírito. O contexto em que nasceu esta encíclica foi a polêmica que surgiu, sobretudo, na Itália, contra o estudo científico da Bíblia. Apareceu um fascículo anônimo advertindo contra um eventuais erros na interpretação da Bíblia. Pio XII já havia usufruído dos benefícios da Encíclica Deus Providentíssimo: “Graças a um maior conhecimento das línguas bíblicas e de tudo o que diz respeito ao Oriente… numerosas questões levantadas no tempo do papa Leão XIII contra a autenticidade, a antiguidade a integridade e o valor dos Livros Bíblicos, encontram-se hoje esclarecidas e resolvidas”[2].
O objetivo do documento O Sopro Divino do Espírito foi defender os exegetas católicos contra os ataques dos que não querem o uso das ciências para o estudo da Bíblia, e querem apenas a interpretação fundamentalista e espiritualista. A Encíclica O Sopro Divino do Espírito recomenda aos biblistas o estudo dos gêneros literários como tarefa complexa, necessária e apaixonante.
O documento da Pontifícia Comissão Bíblica, de 1993, afirma que os dois documentos: Deus Providentíssimo e O Sopro Divino do Espírito rejeitam o dualismo entre o humano e o divino, entre a investigação científica e o olhar da fé, entre o sentido literal e o espiritual. Esses dois documentos da Igreja mostram plena harmonia entre o estudo crítico dos textos bíblicos e o mistério da encarnação e toda a revelação divina por meio dos textos bíblicos.
Em 1965 nasceu a Dei Verbum: Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, no tempo do Papa Paulo VI – durante o Concílio Vaticano II. O documento nasceu com o objetivo de propor o genuíno ensinamento sobre a revelação divina e sua transmissão. É um documento relativamente pequeno e muito denso nas suas propostas feitas em cinco pequenos capítulos sobre: a Revelação, a Transmissão, a Inspiração divina; o Antigo Testamento, o Novo Testamento e a Sagrada Escritura na vida da Igreja.
A Dei Verbum ressalta a importância do estudo dos Gêneros Literários: “Para descobrir a intenção dos/as autores/as os textos bíblicos devem ser tidos também em conta, entre outras coisas, ‘os gêneros literários’. Com efeito, a verdade é proposta ora de um modo, ora de outro, segundo se trata de gêneros históricos, proféticos, poéticos ou outros...”[3]. Na Dei Verbum há um forte incentivo ao estudo e à pesquisa bíblica.
Por ocasião do centenário da Encíclica Deus Providentíssimo, de 1893, e do Cinquentenário da Encíclica Divino Sopro do Espírito, de 1943, a Pontifícia Comissão Bíblica, em 1993, apresentou a ‘Interpretação da Bíblia na Igreja’, em 1993, com o objetivo de: “indicar os caminhos que convém tomar para chegar a uma interpretação da Bíblia, que seja tão fiel quanto possível a seu caráter ao mesmo tempo humano e divino”. O que a Comissão Bíblica deseja é: “examinar os métodos suscetíveis de contribuírem com eficácia a valorizar todas as riquezas contidas nos textos bíblicos, a fim de que a Palavra de Deus possa tornar-se sempre mais o alimento espiritual dos membros de seu povo, a fonte para eles de uma vida de fé, de esperança e de amor, assim como uma luz para toda a humanidade[4].
Para alcançar este objetivo, o documento Interpretação da Bíblia na Igreja se apresenta em quatro capítulos: 1. Uma breve descrição dos diversos métodos e abordagens de leitura bíblica, indicando suas possibilidades e seus limites; 2. Algumas questões de hermenêutica; 3. As características da interpretação católica da Bíblia e sua relação interdisciplinar com as outras disciplinas teológicas; 4. O lugar que a interpretação da Bíblia ocupa na vida da Igreja.
Este documento Interpretação da Bíblia na Igreja é muito importante para o estudo da Bíblia como obra literária, dando uma abertura muito grande aos estudiosos da Bíblia e aos fiéis de pesquisarem, questionarem os diferentes textos, percebendo neles rupturas, junções, até contradições, imperfeições sob o ponto de vista literário, para compreender melhor a mensagem transmitida por meio das formas e dos gêneros literários presentes na Bíblia, sem minimizar a sua dimensão sagrada.
29/11/23
Obs.: As videorreportagens nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 – Bíblia: privatizada ou lida de forma crítica libertadora? Por frei Gilvander, no Palavra Ética
https://www.youtube.com/watch?v=pFRiBrjmcMQ
2 – Deram-nos a Bíblia. “Fechem os olhos!” Roubaram nossa terra. Xukuru-Kariri, Brumadinho/MG. Vídeo 5
https://www.youtube.com/watch?v=8ACp7JOtRb8
3 – Agir ético na Carta aos Efésios: Mês da Bíblia de 2023. Por frei Gilvander (Cinco vídeos reunidos)
https://www.youtube.com/watch?v=IBMdrHRNkB0
4 – Andar no amor na Casa Comum: Carta aos Efésios segundo a biblista Elsa Tamez e CEBI-MG – Set/2022
https://www.youtube.com/watch?v=nUsZeprbRBY
5 – Toda a Criação respira Deus: Carta aos Efésios segundo o biblista NÉSTOR MIGUEZ e CEBI-MG, set 2022
https://www.youtube.com/watch?v=bcIzASpx9Lo
6 – Chaves de leitura da Carta aos Efésios, segundo o biblista PEDRO LIMA VASCONCELOS e CEBI/MG –Set./22
https://www.youtube.com/watch?v=1uc95pm6GeE
7 – Estudo: Carta aos Efésios. Professor Francisco Orofino
https://www.youtube.com/watch?v=csZGT2S49SA
8 – Carta aos Efésios: Agir ético faz a diferença! – Por frei Gilvander – Mês da Bíblia/2023 -02/07/2023
https://www.youtube.com/watch?v=IuTKCuFgfhw
9 – Bíblia, Ética e Cidadania, com Frei Gilvander para CEBI Sudeste
https://www.youtube.com/watch?v=SHIi1O66RCg
10 – Contexto para o estudo do Livro de Josué – Mês da Bíblia 2022 – Por frei Gilvander – 30/8/2022
https://www.youtube.com/watch?v=6XJpE9u8a18
11 – CEBI: 43 anos de história! Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos lendo Bíblia com Opção pelos Pobres
https://www.youtube.com/watch?v=n8CGPjlaApE
[1] PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja. Paulinas: São Paulo, 1994. p. 9.
[2] Ibid. p. 10.
[3] CONCÍLIO VATICANO II, Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina, Paulinas: São Paulo, 1966. p. 16.
[4] PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. Interpretação da Bíblia na Igreja. Paulinas: São Paulo, 1994. p. 36.
Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.