‘Parente falando para parente’: diálogo entre povos Mura e Maraguá marca Oficina de Agroecologia, no Amazonas

Na perspectiva de desenvolver agroecologia nos territórios, indígenas Maraguá receberam os Mura para realizar atividades de Sistemas Agroflorestais e trocar conhecimentos relacionados à natureza

POR JAÍNE FIDELIX, HOADSON LEONARDO E QUEZIA MARTINS, EQUIPE BORBA/CIMI REGIONAL NORTE I, E LÍGIA APEL, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI REGIONAL NORTE I, COM REPORTAGEM DE KAREN PEREIRA REIS MARAGUÁ

“Tecer, construir, juntar conhecimentos e fortalecer a responsabilidade com a Mãe-Terra, para que ela possa continuar gerando alimentos saudáveis e garantir a soberania e a segurança alimentar das aldeias”. Esse foi o objetivo da Oficina de Agroecologia com os povos Maraguá e Mura, realizada entre os dias 27 e 30 de novembro, na aldeia Terra Preta, Terra Indígena (TI) Maraguá Pagy, município de Nova Olinda do Norte – Rio Abacaxis (AM).

“Com os pés firmes no chão”, participaram da oficina 15 indígenas das aldeias Maruim, São José e Terra Preta, ministrada pelos indígenas Mura Jonisson Prado da Fonseca, da aldeia Terra Preta da Josefa, TI Miguel/Josefa, e Adílio Vieira de Souza, da aldeia Moyray, TI Iguapenu. Os assessores são agroecólogos e desenvolvem atividades de agroecologia em suas aldeias há alguns anos e atestam os resultados que já possuem. “Temos resultados positivos, como a recuperação do solo e da diversidade de espécies de frutas e macaxeira no território”, explica Jonisson Mura.

Nesse sentido, foi mais do que uma oficina de agroecologia, foi uma troca de experiências, práticas e técnicas entre povos, de forma que atendeu objetivos do projeto “Fortalecimento das Capacidades dos Parceiros e Comunidades dentro dos Territórios para Projetar e Promover uma Transição Ecológica Justa”, que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I desenvolve, apoiado pelas cooperantes Cáritas França e Misereor.

“Foi mais do que uma oficina de agroecologia, foi uma troca de experiências, práticas e técnicas entre povos”

Em tempos de evidentes mudanças climáticas, o projeto propõe em uma de suas metas “fortalecer as capacidades das populações locais através da experimentação, sistematização e extensão de sistemas econômicos e produtivos ambientalmente corretos para garantir sua soberania alimentar e resiliência as mudanças climáticas”.

Na primeira etapa da oficina, os assessores trabalharam o conceito de agroecologia, sistemas agroflorestais – ou agrofloresta –, adubos orgânicos e preparo de compostagem. E os participantes refletiram sobre os potenciais e as fragilidades na TI Maraguá, identificando o que há de positivo e negativo dentro de seus territórios.

No quadro final dessa atividade concluíram que o território tem abundância de “ar puro, peixe, frutas, roças, floresta, terra, caça, água e minérios”. Já a escassez e as dificuldades que enfrentam vão desde a carência de políticas de educação e saúde, passando pela falta de infraestrutura e proteção territorial até as consequências decorrentes das mudanças climáticas. “Educação indígena de qualidade e diferenciada, saneamento básico, saúde de qualidade e diferenciada, proteção territorial, desequilíbrio ecológico causado pelas mudanças climáticas”, apresenta o rápido diagnóstico feito no primeiro dia da oficina.

“O território tem abundância de ar puro, peixe, frutas, roças, floresta, terra, caça, água e minérios”

Outro ponto refletido foi a violência do agronegócio contra os povos do campo e da floresta, a mercantilização da natureza, racismo ambiental e o discurso do sistema capitalista. Diante do avanço desse quadro de destruição detectado durante o debate, os indígenas discutiram a importância da agroecologia, da agricultura familiar, do manejo responsável dos recursos naturais e do papel que os povos tradicionais têm desempenhado na geração de alimentos saudáveis e proteção da natureza.

“No nosso SAFs [Sistema Agroflorestal], os resultados que alcançamos estão proporcionando alimentos saudáveis, porque sabemos que é perfeitamente possível desenvolver um projeto de sistema agroflorestal, aproveitando a natureza e assimilando a agroecologia de forma sustentável”, diz Jonisson, atestando que, ao contrário do que o agronegócio faz, o sistema agroecológico de produção de alimentos é o que o mundo precisa.

“No nosso SAFs, os resultados que alcançamos estão proporcionando alimentos saudáveis. É perfeitamente possível desenvolver um projeto de sistema agroflorestal, aproveitando a natureza”

O território Maraguá vem sendo impactado negativamente por diversas frentes: invasão do rio e da floresta, aliciamentos por parte de grandes empreendimentos, mineração, garimpo, turismo predatório e pesca ilegal. A ausência do estado é um grande problema pela falta de implementação de políticas públicas de qualidade. É essa ausência que, aos olhos dos indígenas, é proposital e tem gerado uma série de violações de direitos dentro do território Maraguá. A principal consequência que apontam e reclamam é a morosidade no processo de demarcação de suas terras e, com isso, a falta de fiscalização.

As partilhas desse assunto não foram muito animadoras, mas provocaram opiniões sobre os desafios a enfrentar diante das violações de direitos que têm impactado o povo Maraguá, do rio Abacaxis. O Tuxaua Raimundo Maraguá, da aldeia São José, tem um olhar claro sobre essa situação. “Nosso rio é farto e pobre ao mesmo tempo. Temos muitas coisas, mas grande parte é retirada de nós com as invasões, e isso acontece em qualquer parte do território, seja rio ou terra”, diz com grande tristeza, porém sem desânimo para a luta e reconhecendo que a agroecologia é um caminho importante.

“Nosso rio é farto e pobre ao mesmo tempo. Temos muitas coisas, mas grande parte é retirada de nós com as invasões”

Assim como o Tuxaua Raimundo, outros participantes se manifestaram sobre a importância dos assuntos em debate e do momento. “Josué Reis Maraguá, morador da aldeia Terra Preta e irmão do Cacique geral do Povo Maraguá é da opinião de que não se pode perder a oportunidade de conversar. “Nesses dias, eu tinha um trabalho fora da aldeia, mas decidi ficar para participar dessa atividade. Não me importa se perdi dinheiro ou se alguém ficou sem o meu trabalho. Não penso somente em dinheiro, eu penso que a gente tem que comer bem e alimentar as crianças”.

“Não penso somente em dinheiro, eu penso que a gente tem que comer bem e alimentar as crianças”

Depois dos debates, que foram uma verdadeira roda de conversa, os assessores levaram os participantes para o roçado da aldeia Terra Preta. Foi o momento de colocar em prática tudo que foi ensinado e aprendido, “experienciar” as partilhas.

No roçado escolhido foi feita a demonstração de como produzir uma compostagem a partir de elementos presentes no próprio roçado e seus arredores, como construir um círculo de bananeiras aproveitando restos orgânicos e como corrigir as deficiências e acidez do solo através de plantas ricas em potássio, nitrogênio, fósforo, e delas produzir fertilizante orgânico e livre de agrotóxicos. Nesse dia, cerca de três roçados foram visitados a fim de mostrar os diferentes tipos de solo (terra preta, arenoso e cinzento).

O povo Maraguá tem uma relação de respeito com a natureza, a partir de práticas ancestrais. Reconhecem a importância de cada organismo presente na natureza. Eles nos ensinaram que se uma árvore é cortada, deve-se pedir perdão à Mãe-Terra e repor essa árvore, que é importante cuidar das abelhas e escutar e se atentar para a inteligência de todos os bichos e insetos.

“Quando eu preciso derrubar uma árvore, eu peço perdão por estar fazendo aquilo, mas eu também tenho consciência que eu preciso plantar outra árvore”, declara Josué, confirmando que é essa relação com a natureza o princípio da agroecologia e da ecoagricultura: “respeitar o tempo de cada planta e cada ser vivo, respeitar cada lua e tempo de plantação”.

“Quando eu preciso derrubar uma árvore, eu peço perdão por estar fazendo aquilo, mas eu também tenho consciência que eu preciso plantar outra árvore”

A proposta da oficina não foi levar práticas desconhecidas, mas sim, juntar, debater, compartilhar sobre conhecimentos ancestrais, tradicionais e modos de manejar os recursos naturais, de plantar e colher somados às técnicas que respeitam a vida e as formas de viver do povo Maraguá.

A oficina buscou fortalecer a cultura, a organização social, a governança territorial e, também, os cantos Maraguá que foram entoados no decorrer dos dias. Refletir sobre a relação de tudo isso com a agroecologia, sobre a urgência da sociedade reconhecer e apoiar essa forma de relação com a natureza como um dos caminhos de combate às mudanças climáticas e à fome, conservação da biodiversidade, bem-viver e justiça social.

Ao final, um dos pontos avaliados como positivo, foi o fato de a oficina ter sido conduzida por dois indígenas, o que gerou fluidez nos debates e nas trocas de conhecimentos. É o que avalia Ruberval Ahypwnã Maraguá, da aldeia Terra Preta: “Foi algo que chamou minha atenção. Mesmo tendo alguns termos técnicos, foi fácil de entender, conseguimos dialogar com os parentes Mura. Parente falando para parente. Isso é bom porque a gente se entende”, exaltou.

Essa interação proporcionada pela oficina encontra base na ação de Vitor M. Toledo, etnoecólogo da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e ativista social, que diz que a construção coletiva do conhecimento é uma parte integrante da agroecologia e discute as mudanças necessárias para que essa forma de agricultura ganhe terreno globalmente.

“Agroecólogos não ensinam os agricultores como fazer agricultura. Eles se envolvem em um diálogo intercultural que aceita que a ciência não é a única maneira de olhar, transformar e emancipar o mundo. Na Agroecologia, adotamos o que se convencionou chamar de diálogo de saberes, que está associado à descolonização da mente”, diz Toledo em entrevista à Diana Queiroz, da revista Agriculturas.

Em novembro de 2023, os povos Mura e Maraguá se reuniram na aldeia Terra Preta, na TI Maraguá Pagy, para fortalecer a soberania alimentar dentro dos territórios. Foto: Equipe Borba/Cimi Regional Norte I

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