Padre Lancellotti e os incircuncisos de coração. Por José Ribamar Bessa Freire

Homens incircuncisos de coração e de ouvidos, vós

sois como os vossos pais, que mataram os profetas”.

(Santo Estevão, protomártir, ano 35 d.C.)

Taquiprati

O padre Júlio Lancellotti, defensor dos moradores de rua, foi canonizado em vida pelo Brasil limpo e decente. Santo ele já é. No entanto, os incircuncisos de coração, entre eles o Coiso, o Coisinha e o Mamãe Falei querem convertê-lo em mártir. Incentivam a violência física, quando disparam lama e o apedrejam simbolicamente. Ele já recebeu várias ameaças de morte, não apenas verbais.

Coiso, então deputado federal, publicou em 2017 nas redes sociais um vídeo tão fedorento e fake como ele, intitulado “O nebuloso envolvimento do padre Júlio Lancellotti em caso de pedofilia”, além de acusações falaciosas de enriquecimento do padre com os usuários de crack, como se a Cracolândia fosse um cofre de joias presenteadas pela Arábia Saudita. Tais agressões se devem ao fato de que a especulação imobiliária é combatida pela Lei Padre Júlio Lancellotti.

Essa lei do senador Fábio Contarato (PT-ES) foi vetada pelo Coiso, presidente da República, já depois de derrotado na última eleição. A lei proíbe a “arquitetura hostil” – o uso de técnicas construtivas em espaços públicos das cidades para afastar os pobres das praças, viadutos, calçadas e jardins. Até cercas eletrificadas foram colocadas em logradouros para “limpar” a área, que ficaria “desvalorizada” com a vizinhança dos sem-teto.

O Congresso derrubou o veto em 16 de dezembro de 2022, quando o Coiso preparava sua fuga para Miami. O nome da lei finalmente aprovada traz o nome do padre Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua em São Paulo, que usou uma marreta, feito um arcanjo guerreiro, para quebrar as pedras pontiagudas colocadas pela Prefeitura debaixo de um viaduto.

Morte ao padre

A rejeição aos moradores de rua na capital paulista cresceu na medida em que o número deles aumentou, tornando-os mais visíveis. Hoje somam mais de 48 mil. Foi aí que o Coisinha, vereador de São Paulo e candidato derrotado a vice-prefeito de Vinhedo (SP), decidiu “matar o profeta” politicamente, a fim de angariar votos do gado aporófobo. Propôs a criação da CPI das Ongs, para exercitar tiro-ao-alvo sobre o Padre Júlio, que nunca pertenceu a qualquer Ong.

A CPI, se instalada em fevereiro, se afogará nas águas da mentira, sem qualquer consequência legal. Mas vai incitar a violência nas redes sociais, o que não é de agora. O ódio aos sem-teto é transferido a quem os defende. Quatro matadores de aluguel já procuraram o padre Júlio, como ele contou em entrevista a El País:

– Um deles falou que não conseguiu atirar, porque tinha muita gente ao meu lado e algumas crianças. Outro, levado por sua advogada, confessou ter sido escalado para me atropelar, mas ficou com peso na consciência de ter que matar um padre.

Recebeu ameaças explícitas pela internet: “Morte ao padre Júlio”, “Matem o padre Júlio”, “Acabem com esse homem”. Fez boletim de ocorrência após ser xingado na praça Barão de Tietê por um motoqueiro, que reduziu a velocidade e falou: – Ô seu padre filho da puta, defensor de ´nóia’. Acelerou e virou à direita na rua Sapucaia, lá encontrou catadores de material reciclável vinculados à Pastoral do Povo de Rua e falou: – Vou meter fogo em vocês.

Essas agressões foram estimuladas, em 2020, pelo então deputado estadual Mamãe Falei que, apoiado por um ex-comandante da Guarda Civil Metropolitana, o chamou de “cafetão da miséria”. O padre preferiu não aceitar a escolta que o Estado lhe ofereceu.

Martírio

É assim que está sendo martirizado o padre Júlio Lancellotti por acolher moradores de ruas, catadores, usuários e dependentes de crack abandonados pelas políticas públicas. Razões similares martirizaram muita gente desde o início da Era Cristã, quando só era canonizado santo quem era mártir (do grego “testemunha”) na perseguição feita aos primeiros cristãos.

Santo Estevão, o primeiro deles, chamado de protomártir, teve sua morte descrita nos Atos dos Apóstolos, que relata o seu embate com os fariseus, na Sinagoga quando, após a leitura das Escrituras, fez o que Flávio Dino faz com os bolsominions: botou todos no bolso. Raivosos, subornaram alguns homens para darem falso testemunho no Sinédrio – o Tribunal dos antigos judeus, onde juraram terem ouvido blasfêmias de Estevão, que seria “contra as leis de Moisés”.

Saulo de Tarso, filho de comerciante rico ligado aos fariseus, algemou Estevão e o encarcerou. Condenado ao apedrejamento até a morte, sacerdotes, anciãos e escribas o levaram para fora da cidade acompanhados do povo amotinado que “com grande clamor o apedrejaram”. Entre eles, estava Saulo que depois, arrependido, se tornou – quem diria? –  São Paulo, Apóstolo dos gentios. Coberto de sangue, Estevão lhes disse:

– Homens de cerviz dura, incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sois como os vossos pais, que mataram os profetas.

“Incircunciso de coração” é uma figura de linguagem depois usada por Paulo Apóstolo para designar pessoas insensíveis e desumanas, incapazes de ter compaixão pela dor alheia, que não ouvem o lamento dos que sofrem. Se na época tivesse epidemia de covid, os fariseus ainda debochariam, imitando a falta de ar das vítimas.

A reza da Preta

Enquanto era apedrejado, Estevão pediu a Jesus que perdoasse os seus assassinos:

– Senhor, não lhes imputeis este pecado.

Reação similar teve o padre Júlio Lancellotti, quando perguntado se perdoava os seus algozes caluniadores e fakenewszeiros:

– Não tenho ódio deles e não vou semear ódio. O que é o perdão? Eu não esqueço o que eles fizeram e não vou fazer igual. Nunca direi a eles que são cafetões da miséria. Isso seria uma ofensa e significaria minha falta de perdão. O meu perdão é dizer a eles:

– Vocês são meus irmãos.

Égua! Peralá! Eles não são meus irmãos não. Quem é minha irmã é a Preta, que tem horror às agressões contra o Padre Júlio – esse sim, nosso irmão –  e que também reza diariamente pelo Coiso, o Coisinha e o Mamãe Falei. – “Amém” diz contrito seu filho, o “Pão Molhado”.

Estevão e o padre Júlio são santos, a Preta é um projeto de santa, o “Pão Molhado” é um santinho. Tenho a maior admiração pelos quatro, acho que estão certos e que o errado sou eu, que não sou santo e não perdoo tanta ignomínia e canalhice nem que a vaca tussa. O conselho que dou aos “incircuncisos” deste Brasil varonil é:

– Circuncidai os vossos corações, os vossos ouvidos e outras “cositas” mais. Depois disso a gente se fala.

P.S. Já é um clichê dizer que tudo que começa um dia, um dia acaba. Comecei a escrever as crônicas semanais do Taquiprati no Diário do Amazonas em 18 de janeiro de 2004, foram vinte anos sem interrupção. Nesta sexta (12), fui informado que o Diário impresso e o D-24 não publicarão mais a coluna. Com a morte de Batará, seu fundador, a empresa está se reorganizando.

Nessas duas décadas de convivência, gozei sempre de total liberdade para defender opiniões, que muitas vezes contrariavam a linha editorial do jornal. Agradeço ao Cirilo e a seu irmão Ciro pelo tratamento sempre respeitoso que tive.

Dessa forma, a coluna deixa de aparecer semanalmente no blog Taquiprati, que replicava a versão impressa. Apenas ocasional, eventual e excepcionalmente será postada aqui, já sem qualquer periodicidade.

Aos leitores, muito deles fiéis, agradeço a atenção, a leitura, os comentários, alguns deles elogiosos, outros críticos. Hasta siempre! Nos veremos por aí, nas esquinas da vida, enquanto der.

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