Como a bancada do fumo virou defensora dos “vapes” no Congresso

Parlamentares fazem peregrinação ao Executivo para defender vapes, seguindo estratégia da indústria do tabaco

Por Laura Scofield, Rafael Oliveira, Bianca Feifel | Edição: Natalia Viana, em Agência Pública

Os dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs) são a nova aposta da bancada do fumo no Congresso. Oficialmente, os parlamentares se dizem representantes dos fumicultores e de outros trabalhadores da cadeia produtiva do tabaco envolvidos no plantio e processamento do fumo. Na prática, defendem também os interesses das grandes corporações, entre eles, a liberação da comercialização dos vaporizadores — conhecidos como “vapes” — e dos dispositivos de tabaco aquecido, proibidos desde 2009.

O grupo é formado, em sua maioria, por representantes do Rio Grande do Sul, estado que mais produz tabaco no Brasil.

No momento, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por barrar a venda dos dispositivos, e o Congresso Nacional estão analisando o tema. A Anvisa está com um processo em andamento e abriu uma consulta pública no início de dezembro de 2023. No Congresso, tramitam diversos projetos de lei sobre o tema, entre eles o da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), PL 5008/2023, que quer permitir a venda, e o do senador Eduardo Girão (Novo-CE), PL 4356/2023, que vai na direção contrária. Se o Congresso e a Anvisa tomarem decisões opostas, a liberação dos DEFs pode acabar na Justiça.

Por que isso importa?

  • Em setembro de 2023 a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) apresentou o Projeto de Lei (PL) 5.008/2023, que pretende liberar a venda dos cigarros eletrônicos
  • O PL foi proposto em meio a uma escalada do lobby pró-vape no Congresso com forte influência da indústria do tabaco, que também fabrica vapes. Outros PLs previam a proibição em todo o território nacional
  • Por decisão da Anvisa, os vapes são proibidos no Brasil desde 2009

“Tem lobby de ex-parlamentares, desta Casa [Senado] e da outra [Câmara]. Tem indústrias poderosas internacionais atrás disso”, explicou à Agência Pública o senador Girão, contrário à liberação dos DEFs. De acordo com o senador, lobistas da indústria do tabaco têm comparecido às discussões sobre o tema e visitado gabinetes. Ele mesmo diz ter sido abordado: “Lá atrás teve pessoas tentando me convencer [da liberação dos DEFs], de fazer uma audiência pública nesse sentido”, afirmou.

Lauro Anhezini Jr., diretor de assuntos regulatórios e científicos da British American Tobacco (BAT), uma das grandes empresas de tabaco que quer vender DEFs no Brasil, diz que a BAT Brasil tem acompanhado os projetos que tramitam e contatado os parlamentares para defender uma regulamentação pró-DEFs, mas diz que “todos os contatos com legisladores são públicos”.

“A gente sempre participa onde tem espaço para falar sobre o nosso assunto. Eu acho que faz parte desse trabalho de convencimento, de explicar para as pessoas o que realmente é ciência, o que realmente são os fatos e dados”, disse em entrevista à Pública. “Alguns parlamentares, assim como alguns membros da Anvisa entendem e se sensibilizam com o assunto, outros mantêm o seu posicionamento contrário”, acrescentou.

Soraya Thronicke admitiu em entrevista à reportagem que se reuniu com representantes da indústria do tabaco no último ano. “Recebemos de portas abertas todos os interessados, a favor e contra, a indústria, inclusive”. De acordo com ela, “é um tanto quanto contraditório” o Brasil permitir o uso do tabaco, mas não dos dispositivos eletrônicos para fumar. “O problema é o que você inala e não o dispositivo”, argumentou.

Porém, além de ter se reunido com a indústria, a senadora teria permitido que ela participasse da elaboração do projeto de lei que apresentou sobre o tema, de acordo com nota enviada pela Philip Morris Brasil. A empresa afirmou à reportagem que a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), da qual a PMI é associada, “participou” do processo de produção do PL 5008/2023. Em retorno ao Metrópoles, a Abifumo havia dito que só havia tomado conhecimento do PL após sua publicação.

Porém, na lista de perguntas enviadas pela reportagem, a empresa foi questionada se havia influenciado ou participado do “processo de produção do PL 5008/2023”. A resposta inicial, posteriormente retificada, foi: “A ABIFUMO participou, e a PMI é associada a ABIFUMO”.

Após a publicação, a assessoria de imprensa da Philip Morris entrou em contato com a Pública para pedir retificação da informação anterior. A empresa disse que a Abifumo apenas teria participado da audiência pública, e não da formulação do projeto de lei.

A tabageira não respondeu aos questionamentos da Pública acerca de encontros com parlamentares. Disse apenas que “está sempre pronta para discutir com qualquer público sobre os possíveis benefícios de se ter opções sem fumaça para fumantes”. Confira o retorno na íntegra. 

Já a BAT disse que não participou da elaboração do PL 5008/2023, proposto por Soraya Thronicke, ainda que também seja associada da Abifumo. A empresa afirmou que “a iniciativa é louvável, já que prevê a criação de regras rígidas e claras sobre os produtos”.

Esta história é parte do especial Redes de Nicotina (Nicotine Networks), uma colaboração internacional que investiga as táticas da indústria do tabaco para promover uma nova geração de produtos de nicotina além das fronteiras. Redes de Nicotina é uma investigação colaborativa da Agência Pública e cinco veículos das Américas: El ClipThe Examination (EUA), Salud con Lupa (Peru), Bolivia Verifica e Colombia Check.

Bancada do fumo se reuniu com ministros 

Nos últimos meses, os integrantes da bancada do fumo circularam em Brasília para defender os interesses do setor. Um deles foi o deputado federal Heitor Schuch (PSB-RS), que diz defender os produtores de tabaco.

De acordo com o site do deputado, ele foi responsável por agendar reuniões do setor produtivo com dois integrantes do alto escalão do governo Lula no ano passado: o vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), e o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro (PSD). Schuch também articulou encontros com representantes do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e da Casa Civil.

Embora o deputado negue relações com as grandes empresas de cigarros, a Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), que representa a categoria, esteve em pelo menos três reuniões marcadas por ele: com Alckmin, Fávaro e com o diplomata Igor Barbosa, Chefe da Divisão de Saúde Global do MRE.

“Eu levei e marquei reunião com os ministros para eles poderem ouvir e questionar como é o setor, o que ele representa, para que quem tem que formular a posição do governo brasileiro possa fazê-lo sabendo o que é a cultura”, explicou à reportagem.

Schuch disse à Pública que “praticamente não se falou” sobre cigarros eletrônicos nos encontros e que “essa é uma discussão que não me cabe”.

Porém, ao menos na reunião que ocorreu em 18 de outubro com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, o tema foi debatido, de acordo com o site da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). O texto diz que os participantes teriam pedido “neutralidade do governo” ao tratar do tema na 10ª Conferência das Partes (COP10) da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), a ser promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no Panamá em 2024. A Conferência estava prevista para acontecer no final de 2023, mas foi adiada por conta de protestos no país-sede.

De acordo com o deputado federal Rafael Pezenti (MDB-SC), um dos participantes da reunião, a regulação dos cigarros eletrônicos é um dos focos do setor do tabaco e dos parlamentares atuantes no tema. Ele considera que “se a gente não regulamentar, a gente incentiva o contrabando, a gente incentiva o crime”, argumento também repetido por Soraya Thronicke em entrevista.

Pezenti também disse à Pública que “consumir tabaco é uma prática milenar” e que “os usuários chegarão com regulamentação ou não”. “Astecas e maias já utilizavam o tabaco em rituais religiosos e políticos. De lá para cá, a forma como as pessoas utilizam tabaco vem mudando. As pessoas estão largando o cigarro convencional, mas não estão largando a nicotina, estão consumindo ainda outras formas, por exemplo, esses cigarros eletrônicos”, afirmou.

Estudos apontam o contrário. A pesquisa Vigitel 2023, produzida pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS), aponta que o número de fumantes no Brasil diminuiu de 15,7% em 2006 para 9,3% em 2023, resultado de políticas públicas que visam erradicar o tabagismo, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem. Entretanto, o uso de cigarros eletrônicos tem atraído jovens. De acordo com nota técnica da Organização Mundial da Saúde, os dispositivos têm sido “comercializados agressivamente para os jovens”. A OMS também aponta que o uso entre 13 e 15 anos excede a taxa entre adultos em todas as regiões avaliadas.

“Eu nunca vi ninguém começar a fumar a partir do cigarro eletrônico, mas eu já vi muitas pessoas pararem de fumar a partir da utilização do cigarro eletrônico”, afirmou à Pública o deputado Marcelo Moraes (PL-RS), também integrante da bancada do fumo.

Questionado sobre o avanço do consumo entre os jovens, o deputado perguntou: “Tu prefere que ele fume aquilo que vem do Paraguai sem nenhuma fiscalização por parte da Anvisa ou algo que é fabricado aqui no Brasil atendendo a todas as regras sanitárias brasileiras? Eu prefiro esse”.

“Se ele [o jovem] já está começando, está começando justamente por esse cigarro que é contrabandeado, que não tem nenhum tipo de fiscalização”, afirmou.

O argumento de que a proibição dos vapes incentiva o contrabando é um dos usados pela indústria do tabaco.

Além de Fávaro, em junho de 2023, o grupo liderado por Heitor Schuch se encontrou com o vice-presidente Geraldo Alckmin, também ministro da Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), na expectativa de que ele pudesse se tornar “o interlocutor da cadeia produtiva do tabaco dentro do governo”. “Fomos muito bem recebidos, ouvidos e acredito que ganhamos um aliado em favor dos produtores”, avaliou o deputado sobre reunião com Alckmin, de acordo com texto publicado por sua assessoria.

Em retorno, o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), do qual Alckmin é ministro, disse que “procura contribuir com as discussões levando em consideração as políticas públicas para a saúde, as determinações da Anvisa, o comércio ilegal e as preocupações dos setores econômicos envolvidos, incluindo os pequenos produtores rurais e a indústria”. Confira o texto na íntegra.

“Estratégia para desestabilizar”, diz secretária do governo 

A Conferência das Partes da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (COP), evento bianual organizado pela OMS e que terá sua 10ª edição em 2024, tem sido um dos focos da articulação dos deputados, por se tratar do evento internacional mais importante para o setor de tabaco. Por se tratar de um encontro entre nações, o objetivo é influenciar o governo e participar da delegação oficial.

Os dispositivos eletrônicos para fumar e as diferentes formas de regulamentá-los no mundo serão um dos temas principais da conferência. Sabendo disso, em 26 de outubro do ano passado, os deputados da bancada do fumo promoveram uma mesa redonda na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR) para debater a posição do Brasil para a conferência.

O assunto dos DEFs surgiu logo no início da mesa, com o deputado Rafael Pezenti defendendo uma regulamentação que libere o comércio dos DEFs. Em entrevista à Pública, o deputado prometeu defender essa pauta na COP 10, mesmo afirmando que não é “representante dos DEFs”.

A responsável pela elaboração dessa posição é a Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro sobre Controle do Uso do Tabaco e de seus Protocolos (Conicq). A comissão, presidida pelo Ministério da Saúde, é formada por integrantes de 15 pastas e também do Instituto Nacional de Câncer (Inca).

Durante a mesa redonda, a atual secretária da Conicq, Vera Luiz da Costa e Silva, teve a autoridade questionada pelos parlamentares.

Pezenti, por exemplo, disse que ela “se vale de uma autoridade que não tem” ao falar pela Conicq, citando um imbróglio jurídico originado no início no governo Bolsonaro, quando o ex-presidente extinguiu os conselhos e a bancada comemorou o fim da comissão. Em agosto deste ano, o presidente Lula publicou um decreto em que reorganiza a comissão.

“Eu acho que muito provavelmente aquilo foi uma estratégia para desestabilizar. Existe uma incursão muito forte da indústria para comercializar os DEFs no Brasil e para descaracterizar as iniciativas do governo no sentido de continuar a fazer o movimento de controle do tabagismo”, disse Vera Luiza à Pública. “Não só houve um questionamento de caráter pessoal contra minha probidade, como também um desrespeito à minha condição de mulher”, acrescentou.

Sobre a posição brasileira, disse que a Conicq será “cautelosa” e ressaltará que os DEFs são proibidos, mas que aguarda as deliberações da Anvisa.

A OMS estabelece que a formulação das políticas deve ser feita sem influência “dos interesses comerciais” da indústria do tabaco já que existiria um “conflito irreconciliável” entre as empresas e a saúde pública.

Os parlamentares da bancada do fumo também querem participar do evento, que não permite a entrada de pessoas com conflitos de interesse e ligadas à indústria. Em setembro de 2023, cinco deputados, entre eles Rafael Pezenti e Heitor Schuch, apresentaram um requerimento à CAPADR para tornar a viagem à COP uma missão oficial da Câmara. A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) apoiou o pedido, que foi aprovado na comissão. A ida de quatro deputados foi aprovada no ano passado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de acordo com retorno via Lei de Acesso à Informação. A viagem seria paga com dinheiro público, mas ainda não havia “estimativa de custos para essa missão”.

Como a conferência foi remarcada, Lira teve que fazer uma nova deliberação e autorizou a participação de três deputados no evento. Leia o retorno na íntegra. 

Mesmo assim, Schuch está tentando integrar a COP 10 como representante do parlamento do Mercosul, segundo apurou a reportagem.

“Eu acho preocupante, porque se eles tiverem acesso a tudo, o que vai sofrer é a imagem do Brasil”, disse à Pública Vera Luiza. “O Brasil tem o compromisso de não permitir pessoas que têm conflito de interesse com a indústria de tabaco, e esses deputados não vão conseguir assinar uma declaração de conflito de interesse”.

Procurado pela reportagem, Schuch disse que estará “na COP 10 como observador”, mas não respondeu sobre a tentativa de integrar a conferência pelo Mercosul. “A COP, sendo uma conferência mundial que debate o futuro de milhares de produtores, não pode ser fechada. Vou para ouvir, dialogar e saber das resoluções”, finalizou.

Também a fim de influenciar a posição brasileira na COP, representantes da bancada se reuniram em setembro com o chefe da Divisão de Saúde Global do Ministério das Relações Exteriores, Igor Barbosa, possível representante do Itamaraty no evento, “para a gente poder ter gente do governo lá dentro, segurando as pontas [para o setor do tabaco]”, disse Schuch em uma entrevista. Em agosto, fizeram ainda uma reunião com o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, em que uma das pautas foi a conferência.

A reunião com o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, também fez parte da estratégia. Após o encontro, o ministro disse que o MAPA fará uma “defesa incontestável do setor [do tabaco]” na COP 10.

A reunião teria tido um resultado prático: Fávaro teria enviado à Conicq uma carta na qual disse ter “preocupação” com as discussões no evento, incluindo a questão dos DEFs. A carta foi confirmada à Pública por Lauro Anhezini, diretor da British American Tobacco Brasil, e por Vera Luiza, segundo a qual o texto pediu que o Brasil fosse “cauteloso” quanto ao tema. O deputado Schuch também citou o documento na mesa redonda e disse que ele “poderia ter sido um pouco mais incisivo, um pouco mais firme”.

Pública questionou o MAPA sobre o tema e pediu que o documento fosse compartilhado com a reportagem, mas o ministério disse que “nenhum documento foi enviado”. Veja a resposta na íntegra. 

British American Tobacco quer fabricar vapes no Brasil 

Segundo parlamentares da bancada do fumo, defender os DEFs é de interesse dos fumicultores, ou seja, os agricultores que plantam tabaco para vender para as grandes empresas, porque os dispositivos seriam o caminho para manter a subsistência desses plantadores.

“Eu tenho recebido os representantes dos produtores rurais, porque eles têm bastante interesse em aproveitar esse aumento do uso de novas tecnologias”, afirmou Pezenti. Lauro Anhezini Jr, diretor da BAT Brasil, disse que os planos da empresa incluem “fazer a extração da nicotina no sul do Brasil”, o que beneficiaria “diretamente a cadeia de produtores do tabaco”.

O diretor também aponta que a fábrica da indústria que fica na cidade mineira de Uberlândia pode passar a produzir os dispositivos, “gerando mais emprego e renda”, caso seja aprovada uma regulação favorável. De acordo com ele, a liberação dos dispositivos pode gerar 114 mil empregos, de acordo com estudo da Federação de Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), encomendado pela empresa tabageira.

Porém, a secretária da Conicq, Vera Luiza da Costa e Silva, vê essas “promessas” da indústria como uma forma de pressão. “A indústria quer lucrar, então ela está prometendo fábrica em alguns estados para os governadores, está prometendo pros agricultores que eles vão ser mais bem pagos, porque o mercado da folha [de tabaco] está retraindo, já que está retraindo o consumo de cigarros no mundo. Ela está prometendo um monte de coisa e pressionando o governo”, afirmou.

Para ela, muitos parlamentares que dizem representar os fumicultores na verdade “defendem o interesse da indústria”. Eles negam.

“Os plantadores de tabaco precisam do suporte do governo no processo de diversificação [da sua produção], e não da promoção do cultivo do tabaco. Plantador de tabaco não gosta de plantar tabaco, ele planta tabaco como meio de ganhar a vida”, completou.

O único deputado ouvido pela reportagem que desvinculou os cigarros eletrônicos dos produtores foi Heithor Shuch. De acordo com nota enviada por ele, o tema é “da indústria, não dos produtores, de tabaco”. Ainda assim, ele defendeu uma regulação que libere a venda dos dispositivos: “A Anvisa deve pensar uma solução para que os vapes não continuem na clandestinidade. Este produto deve ser regulamentado e pagar impostos”, acrescentou.

Os convidados pró-vape da audiência de Soraya Thronicke

A senadora Soraya Thronicke não era conhecida das organizações que trabalham com o controle de tabaco. No ano passado, entretanto, ela se tornou uma das mais ativas na defesa da liberação dos DEFs.

Em 28 de setembro, Thronicke presidiu uma audiência pública “com o objetivo de debater o comércio de cigarros eletrônicos no Brasil e o risco ocasionado pela falta de regulamentação” na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado. Dos nomes que ela sugeriu para compor a mesa, a maioria era favorável à liberação dos vapes, entre eles vários representantes do Diretório de Redução de Danos do Tabagismo (Direta), uma organização pró-vape que tem tentado influenciar autoridades.

A senadora convidou Alexandre Lucian, presidente do Direta, a psicóloga Mônica Gorgulho e o ex-diretor-presidente da Anvisa Dirceu Barbano, ex-conselheiros da organização, e Silvia Cazenave, toxicologista citada no site da entidade. Ainda que busque se distanciar das grandes empresas de tabaco, o Direta seria “resultado direto” de eventos patrocinados pela Philip Morris Brasil (PMB) em 2019 e 2020, de acordo com fala de Gorgulho reproduzida em reportagem de O Joio e O Trigo.

Lucian também é presença constante em eventos patrocinados pela BAT Brasil, como mostrou reportagem da Pública sobre “conteúdo de marca” pró-vape pago pela empresa e pela Philip Morris.

Em retorno à reportagem, o Direta afirmou que não aceita recursos da indústria do tabaco e que é uma organização “oficial e independente, que defende a estratégia de Redução dos Danos do Tabagismo e representa consumidores no Brasil”. Sobre a fala de Gorgulho, afirmou que os eventos realizados com patrocínio da PMB permitiram que Lucian conhecesse a ex-consultora, gerando “troca de experiências e conhecimento”, o que contribuiu “para que o Direta se tornasse uma realidade”. “É nesse contexto que entendemos que Mônica Gorgulho possa ter declarado que o Direta seria algum ‘resultado direto’, como etapas do relacionamento profissional entre eles”, finalizou o diretório. Leia a resposta na íntegra.

Thronicke também foi a responsável pelo convite do representante da Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo), Lauro Anhezini Jr, que também é diretor da BAT Brasil; de Miguel Okumura, consumidor e fundador do projeto Vaporacast – podcast nacional “100% dedicado ao vapor”; e de especialistas internacionais que acreditam no cigarro eletrônico como alternativa de redução de danos — por mais que isso não seja consenso entre os médicos e especialistas de saúde pública.

De acordo com Eduardo Girão, foi necessária a intervenção de senadores contrários à liberação dos dispositivos para a criação de uma lista de convidados que contemplasse as diferentes visões sobre a regulamentação.Thronicke se defendeu em entrevista à Pública: “Todos os senadores fizeram pedidos e todos têm a liberdade de adicionar nomes para convocar”.

A senadora, porém, não deixou a representante da Anvisa falar.

Após ouvir os convidados da área da saúde, Receita Federal e o representante da Abifumo, Soraya Thronicke disse discordar da participação de Glória Maria Latuf, gerente-geral substituta de Registro e Fiscalização de Produtos Fumígenos da Anvisa.

“Se a Anvisa emitir um juízo de valor aqui falando durante 10 minutos, ela vai acabar tratando do mérito dessa questão, e isso me preocupa”, disse a parlamentar. Girão então defendeu que a representante da Anvisa falasse “para a gente ter uma audiência pública democrática, que não seja maculada, querendo levar pro outro lado, querendo beneficiar o lobby”.

“Pior que beneficiar o lobby é beneficiar o crime”, retrucou Thronicke, repetindo argumentos da indústria do tabaco que afirmam que não regular dos DEFs beneficia o tráfico e o contrabando.

Com apoio do senador Eduardo Gomes (PL-TO), a senadora decidiu que a representante da Anvisa seria ouvida no período da tarde. Depois, ela cancelou o evento.

“Na audiência pública ficou muito claro os interesses que estão por trás”, avaliou Girão à Pública. Ele classificou como uma “manobra” o impedimento da fala de Glória Latuf.

À Pública, Soraya Thronicke disse que Glória Latuf havia sido indicada por Barra Torres como “ouvinte”.

“Ele falou para mim que a Anvisa não iria falar, que a Anvisa não deveria falar, eu até me assustei quando pediram a palavra para ela”, afirmou.

À Pública, a Anvisa contradisse a versão de Thronicke, afirmando que Latuf foi indicada pela agência para fazer uma apresentação no audiência pública, o que não ocorreu devido ao cancelamento da segunda parte do evento.

Além de Latuf, outros convidados deixaram de falar quando a segunda parte da comissão foi cancelada, entre eles Lucian. Ele e outros manifestantes favoráveis à liberação dos vapes estavam na portaria do anexo II do Senado vestindo camisetas azuis com dizeres como “vaping é menos prejudicial que o cigarro”. Manifestantes ligados ao Direta também estiveram presentes em manifestação na porta da Anvisa no início de dezembro do ano passado, como mostrou outra reportagem do especial “Redes de Nicotina”.

Dias depois do evento, a senadora Soraya apresentou o PL 5008/2023, que busca permitir a venda dos DEFs. Eduardo Gomes foi escolhido como relator. Em entrevista à Pública, o senador disse que ainda não tem um posicionamento. “Eu pretendo conhecer, através do relatório, quais são os impactos, quais as informações dos setores de saúde, para ter responsabilidade”.

Na comissão, entretanto, havia defendido que “proibir” é uma “utopia”, propondo uso “restrito, regulado, orientado” dos cigarros eletrônicos.

Atualmente, o Direta está tentando incluir uma emenda ao PL de Soraya. Lucian contou à Pública que o diretório tem entrado em contato com os senadores e pedido que algum deles apresente a emenda. O documento, ao qual a reportagem teve acesso, defende por exemplo ampliar o tipo de DEFs permitido, liberando também os dispositivos eletrônicos para fumar de sistema aberto (nos quais o usuário adiciona a substância que será vaporizada), o que permitiria acrescentar outros tipos de substâncias, inclusive ilegais.

Já o PL apresentado por Girão, que proíbe a venda, será relatado pelo senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS), que também é ligado ao setor do tabaco e quer permitir a venda dos DEFs, segundo apurou a Pública.

A reportagem tentou uma entrevista com um representante da Philip Morris Brasil, mas a empresa apenas enviou uma nota crítica à proibição. “Uma boa regulamentação, que permita a comercialização pelo setor formal, seguindo parâmetros regulatórios apropriados, tem se mostrado eficaz para controlar o tabagismo”, diz o texto.

Soraya Thronicke se reuniu com representantes da indústria do tabaco no último ano. Pedro França/Agência Senado

Esta reportagem faz parte da colaboração internacional “Redes de Nicotina”, que investigou as estratégias das empresas tabagistas para liberar os cigarros eletrônicos na América Latina.

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