A dialética da polarização

Debater desejando a eliminação do que pensa diferente é rejeitar a divergência. Mas incomodar-se com conflitos também é aspirar a uma sociedade de pensamento único. E não será possível pacificá-la mantendo injustiças e impunidades

por Paulo César Carbonari, em Outras Palavras

A polarização é um fenômeno forte na vida social e política. Nos dias atuais, parece ser ainda mais. No Brasil se vive uma experiência de polarização, em parte semelhante ao que ocorre em outros lugares. Há debates de diversos tipos, inclusive para saber se é de natureza social ou política (ou de ambas). Ensaiamos aqui um exercício que pretende não mais do que trazer elementos subsidiários para a compreensão da questão… sem a pretensão de oferecer saídas ou respostas, ainda que estejam subjacentes à toda análise, sobretudo no sentido da defesa da necessidade de seguir divergindo.

São muitas as questões contidas num tema destes: seria o caso de confundirmos polarização com “extremismo”? Não seria a polarização uma redução da complexidade dos dissensos, das divergências, das diferenças, dos conflitos presentes na sociedade e, também, parte das dinâmicas políticas? Ou seria o desejo de sua “extinção”, confundindo pacificação com total ausência de conflitos e dissensos? Não estaria em jogo exatamente uma compreensão e prática do que é democracia num contexto no qual sua viabilidade tem sido reduzida ao máximo a pleitos eleitorais razoáveis? Será que dinâmicas por demais consensualistas ou hegemonistas não estariam precisando ser repensadas?

Trata-se de um problema a ser resolvido ou de uma realidade com a qual conviver? Tendemos a acreditar mais que seja uma realidade do que um problema a ser resolvido e é nesta linha que a reflexão será desenvolvida. E sustentamos esta posição com base numa certa concepção de sociedade e de convivência política que se resume na ideia de que vivemos numa sociedade cuja vigência de conflitos e disputas é processo permanente e aberto, ainda quando submetidas a regimes fechados que os impedem de aparecer e de ser publicizados. É da convivência humana a existência de conflitos e divergências. Somos plurais e irredutíveis a números manipuláveis, ainda que, por algum tempo, isto possa acontecer – já tenha acontecido e siga acontecendo em experiências totalitárias. Aliás, se experiências deste tipo já foram e ainda poderão ser superadas é exatamente em razão da possibilidade de escapar da massificação como uma expressão da condição da vida social e política, ou seja, ao não reducionismo determinista de qualquer tipo.

Ficar surpreso ou incomodar-se com divergências e conflitos, até mesmo com polarizações, pode significar, no fundo, aspirar a uma sociedade cuja convivência não seja na pluralidade e na diversidade. Outra coisa é confundir divergências com destruição de todos os laços de convivência, uma expressão daquilo que se usa para falar de “polarização” como extremismo que não reconhece a divergência, aliás, a usa como recurso narcísico para a autoafirmação e para a reprodução mimética do mesmo. Nestes casos o que ocorre é que, aquilo que se caracterizaria como divergência, como conflito, na verdade é a sua negação, pela eliminação do opositor, gerando, por resultado, a ausência de qualquer possibilidade de polarização. Este é o “paradoxo da polarização”: tudo o que é posto nestes termos a rigor almeja a destruição da existência do polo radicalmente oposto, destruindo-a.

Na sociedade brasileira se vive um processo de polarização deste tipo que é histórico e que se traduz no que hoje se chama de “aporofobia”, mas que se expressa também no racismo contra negros e negras, na misoginia e no patriarcado, na lgbtia+fobia, no “ódio de classe”, enfim, nas mais diversas formas de exclusão e eliminação dos/as/es indesejáveis. Este ódio à alteridade tem raízes profundas na formação brasileira: nasce com o “mito fundacional” que se organizou com a eliminação desde o primeiro instante dos povos indígenas – e que seguiu vigente na história até hoje. O que se tem assistido nos últimos anos é que a prática da “conciliação das elites”, que sempre foi gerando “transições intermináveis” capazes de manter “tudo como dantes”, já não foi o pacto implementado por um setor significativo desta elite, convertendo-se sua ação e política em ódio, de modo que, o que estava disseminado na convivência social nela continua esgarçado, mas também transformado em prática política, em estratégia de ação eleitoral, de modo a termos notícias da instalação de um “gabinete do ódio” nos porões do Palácio durante o governo de Bolsonaro, por exemplo.

O que está acontecendo, diferente do que dizem alguns sociólogos e cientistas políticos, não é a transferência da polarização da política para o social e, sim, o contrário. No fundo, trata-se de que a busca pelos recursos disponíveis, cada vez mais limitados e demandados por cada vez maiores contingentes populacionais, reforça dinâmicas próprias da “cultura extrativista” que se alimenta da pilhagem, da “motosserra”, da “meritocracia individualista” que aceita vender e mandar entregar até a mãe ou pisar no pescoço do melhor amigo, para usar metáforas ilustrativas. É a vigência de uma “subjetividade” sem sujeito, que a tudo transforma em mercadoria a ser consumida, transforma a vida em meio reificado de acumulação privada ou em sacrifício no altar de moloch. O comum há que ser consumido e a comunidade destruída. Valores como a igualdade e a fraternidade são abandonados em nome da liberdade do laissez-faire.

Nas situações deste tipo é ingenuidade, no mínimo, senão conivência, simplesmente propor “pacificação”. Inaceitável toda a moderação exagerada (ou o excesso de “baixa intensidade”). Todo processo de superação de polarizações destrutivas precisa ser enfrentado com uma mobilização ampla das bases da sociedade, de modo a fortalecer as possibilidades alternativas. Pacificação e reconciliação se viabilizam com sustentabilidade somente se erradicadas as condições de propagação e de manutenção das intolerâncias fundamentalistas. A reconciliação requer disposição de todas as partes envolvidas para reconhecer a alteridade e com ela se reconciliar. Sem isso, o risco é virar uma retórica sem efetividade.

Não há pacificação mantendo desigualdades, injustiças e impunidades. A paz duradoura será aquela capaz de promover as melhores condições para seguir vivendo as contradições e os conflitos, mas também para encontrar os caminhos para lidar com elas, sobretudo superando aquelas e mediando aqueles que geram exclusão e morte daqueles e daquelas que historicamente seguem sendo as maiores vítimas, tanto das violências quanto das “falsas pacificações”. Seus agentes estão aí, ainda muito fortes e presentes. Seguem em atividade e não hesitam em mostrar sua força. Daí que, gestos simbólicos ou mesmo “afagos orçamentários” nunca abalarão sua fúria, pelo contrário, parece que só a alimentam. Já sabemos, de há muito, que nenhum “centro”, nem pequeno e menos ainda grande, servirá de convergência para a reconciliação. Ele só sorve cada vez mais voraz tudo o que está no seu entorno… e se não for aplacado, dificilmente alguma estrela resistirá a ele.

O caminho parece ser bem mais exigente, árduo e difícil. Requer aprender a lidar neste novo contexto investindo nas potências presentes nas resistências e nos frágeis exercícios e experiências de construção de alternativas e explodir as potestas que seguem oprimindo e violando, destruindo a vida. Não dá para confiar em instituições que estão mais preocupadas em manter-se a si mesmas e aos interesses que as instituíram do que àqueles e àquelas que, em luta, historicamente mantém em pé as causas da dignidade da vida… E nem há conciliação aceitável assim, soaria escárnio!

Foto: Nelsons Almeira/AFP/Brasil de Fato

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