“Moradores de rua não são anjos nem demônios, são pessoas”. Entrevista com Padre Júlio Lancelotti

IHU

Rodeado de colaboradores e fieis, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua declarou que jamais usaria as mesmas armas de seus algozes. “Não sou o primeiro padre a ser perseguido por um vereador. As fotos, as imagens, os ângulos, tudo é feito com um propósito. Eu conheço, entendo tudo. Compaixão e humanidade, não tem”, afirma.

Os termômetros já batiam a casa dos 30ºC ainda nas primeiras horas da manhã de quinta-feira, 11, transformando o pequeno quintal da Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em São Paulo, em um verdadeiro forno. O pároco Júlio Lancellotti, depois de cumprir uma extensa rotina matinal – celebrar a missa, participar da distribuição de pães no Centro Comunitário Santa Dulce dos Pobres da Paróquia, atender e aconselhar os moradores em situação de rua, ajudar na limpeza do espaço e interagir com todos chamando-os sempre pelo primeiro nome -, recebeu a reportagem da Focus para comentar a mais recente onda de ataques contra ele.

Ainda nos primeiros dias de janeiro, ganhou destaque no noticiário nacional a intenção de um vereador de extrema direita da Câmara Municipal de São Paulo de instalar uma CPI para “investigar Organizações Não Governamentais (ONGs) que fornecem alimentos, utensílios para uso de substâncias ilícitas e tratamento de usuário que frequentam a região da cracolândia”, segundo o requerimento do parlamentar.

O texto da CPI não menciona o nome de nenhuma entidade específica. Porém, um vídeo do próprio vereador, que é filiado ao partido União Brasil, publicado em suas redes sociais no dia 7 de dezembro, no qual informa estar colhendo assinaturas para instalar uma CPI, trata o padre por “esse sujeito”, além de atacar com ofensas outros parlamentares e ministros, levantando suspeitas a respeito de vídeos impróprios envolvendo o padre Júlio.

Em entrevista à Focus, padre Júlio, com respostas pausadas e didáticas, manifesta indignação com o comportamento da mídia.

“Tudo que a gente fala na mão da imprensa vai ser dissecado”, enfatiza. “Tudo é estudado. Nada é feito sem uma intenção, até as fotos. A bondade é uma coisa que rareia. Tudo que puder ser feito para destruir, a imprensa é a primeira. Na imprensa não tem manual de redação, tem manual de retaliação”, desabafa.

Padre Júlio não faz parte da diretoria de nenhuma ONG, é coordenador da Pastoral do Vicariato Episcopal para a Pastoral do Povo da Rua, um braço da Arquidiocese de São Paulo, sediada na Paróquia de São Miguel Arcanjo. Fundada na década de 1990, sua atividade não envolve a administração de recursos financeiros. Ele também não integra a diretoria ou o conselho do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, conhecido como Bompar, entidade mencionada pelo vereador em entrevistas sobre o caso. A presidência do Conselho Deliberativo é ocupada por um membro da Igreja Católica.

O Bompar possui certidões que a reconhecem como de utilidade pública municipal, estadual e nacional. Atuando desde 1946, acolhe diariamente mais de 10.000 pessoas por dia, em 52 núcleos de atendimento. Desenvolve, entre outras atividades, o projeto Consultório na Rua, uma parceria com a municipalidade para atendimentos na área de saúde, prática corriqueira nas atividades assistenciais de governos em todos os níveis: municipal, estadual e federal. A Bompar é uma das entidades para as quais o padre encaminha pessoas em situação de rua que necessitam desses ou de outros serviços.

Na entrevista, ele fez questão de convidar para sentarem-se ao seu lado, João, de 27 anos, e Antônio, de 39 (nomes fictícios). “Essas são pessoas importantes pra mim”, afirma ao colocar em prática o que prega em suas celebrações. No decorrer da conversa, ele se referiu diversas vezes aos dois homens para exemplificar seus argumentos.

João é um dos voluntários que ajudam na distribuição do café da manhã, limpeza, recepção e outras atividades de rotina da paróquia. Ele nos conta que quando chegou a São Paulo “ninguém falava ‘sim’, era sempre ‘não’. As portas estavam fechadas”. Sem dinheiro, acabou desabrigado e foi dormir na rua, quando decidiu procurar ajuda para voltar para o Estado do Rio de Janeiro.

O padre pediu que ele voltasse no dia seguinte para receber a passagem. Mas João retornou alguns dias depois, para comunicar ao sacerdote que havia conseguido trabalho. Hoje recebe um salário mínimo e complementa a renda com uma bolsa aluguel, por estar realizando um tratamento de saúde. “Este meu amigo me ajuda muitíssimo” diz, abraçando João, que abre um largo sorriso.

O mineiro Antônio convive com padre Júlio desde 2016, e se lembra da data exata que o conheceu. Retornou à terra natal no ano passado, para viver com a família. Dependente químico, ele explica que teve dificuldade de integração devido ao vício. “A pessoa que não usa (a droga), não vai aceitar. Ela não tenta compreender que talvez aquilo seja uma doença, eu vejo como uma doença”, lamenta. “Este aqui é meu amigo”, diz Antônio sorrindo e esfregando as mãos nervosamente, ao se referir ao padre, que lhe oferece um afago e pede que alguém traga um copo de água para Antônio.

Enquanto padre Júlio acolhe os “indesejáveis”, o vereador extremista autor do pedido de CPI, destinou só em 2021, R$1,5 milhão para festas, incluindo uma na qual o tema era os anos 80. A igreja evangélica Mensagem de Paz também recebeu mais de R$1 milhão de recursos públicos direcionados pelo parlamentar, segundo reportagem do site Intercept Brasil. Até o fechamento desta edição, após a repercussão negativa do caso, ao menos 10 vereadores dos 23 que apoiaram o requerimento, haviam retirado sua assinatura.

A entrevista é de Fernanda Otero, publicada por Focus Brasil, 16-01-2024.

Eis a entrevista.
Como é seu dia a dia, quem te ajuda nesse trabalho?

Meu dia a dia é o que você viu, começa com a missa às 7h, depois da missa, a partilha daquilo que a gente tem. Muita gente ajuda, as irmãs, pessoas leigas, muitas pessoas da comunidade, os que doam.

Quem o senhor defende? Quem são essas pessoas?

Não é quem defende, é quem convive. Convivo com os indefensáveis. Quem defende e quer conviver com as pessoas que ninguém quer, numa sociedade tão marcada pela desigualdade? Se você está do lado daqueles que são rejeitados, você vai ser rejeitado. Então, não é que eu diria ser maldade das pessoas, é a lógica. Isso até nas amizades interpessoais, se você não se dá bem com ela (apontando outra jornalista), e eu me dou bem com ela e converso e acolho bem a ela, você vai achar o quê? Por que você é amigo dela? Você viu tudo o que ela me fez? Isso acontece, não é? Até no ambiente de trabalho, você conversa com determinada pessoa do ambiente de trabalho, do escritório, o outro que teve problema com ela, você diz, ‘nossa, você sabe quem é aquela ali?’ Você está todo de amizade com ela, mas sabe o que ela fez pra mim? Não é isso que acontece? Então, você conviver com os que são rejeitados, você vai ser rejeitada também. Você não muda ninguém. Ninguém muda ninguém. A mudança se dá se a pessoa quer mudar. Não é a consciência que determina a realidade, é a realidade que determina a consciência, e como diz o Leonardo Boff, todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto. Então precisa saber a partir de que ponto você vê. Nisso eu sou muito marxista, a realidade é que determina a consciência.

Como é esta convivência?

Estou convivendo com pessoas. Eu sempre digo, os moradores de rua não são anjos nem demônios, são pessoas. Alguns deles são terraplanistas, alguns deles são machistas, são homofóbicos, são racistas. Eles também são atingidos pela grande mídia, pelo pensamento dominante. Eles também pensam o que todo mundo pensa. Não é porque eles estão na rua, que eles são diferentes. Eles são diferentes do ponto de vista da desigualdade. Mas a ideologia dominante é a mesma. A mesma novela que você assiste, eles assistem. O mesmo jornal que você lê, eles leem. O mesmo apresentador que fala aquilo que o povo tem que pensar, eles ouvem também. Eles não têm uma rádio alternativa deles. Eles pensam o que todo mundo pensa. Se você não convive, você não conhece. Se você não convive, você não ama. Nenhum de nós é só uma coisa. Você não é só o que eu tô vendo. Eu não sou só o que você tá vendo.

Esta nomenclatura “Cracolândia” surgiu pela primeira vez em 1995. Naquela época, o senhor já atuava na região. Nos últimos anos, pelo menos quatro programas diferentes foram iniciados. Seria justo dizer que algum deles esteve próximo de algum sucesso?

A questão dos programas é que eles são programas de governo e não de Estado. Essa é a diferença. Parece uma coisa sutil, mas é uma nomenclatura específica. Uma coisa é programa de governo, outra questão é programa de Estado. O que a gente viu nessa região durante todo esse tempo foram programas de governo, não era o programa municipal para as pessoas em cena de uso, mas o programa da Marta, o programa do Haddad, o programa do Kassab, o programa do Serra. Programa de governo não resolve, porque o governo funciona por quatro anos, não daria nem tempo. Essa questão de sucesso, até um jornalista me perguntou: “Será que o que você faz não foi medido? Qual é a eficácia do que você faz? Será que se não tivesse eficácia, não convenceria?” Aí eu perguntei para ele: “a vacinação contra poliomielite, tem estudo que ela é eficaz? Por que as pessoas não tomam? Por que a vacinação da poliomielite caiu? Você quer mais evidência? Você quer mais evidência de que o tabaco faz mal à saúde? Isso já está cientificamente provado, comprovado, existem dados, gráficos, estudos, pesquisas, e as pessoas fumam”. A nossa lógica é muito cartesiana, e o jornalismo é muito cartesiano também, além de ser sensacionalista e abusivo, é cartesiano também, porque não tem explicação lógica…

As pessoas ficam esperando uma resposta…

Um tal programa, foi eficaz? Em quatro anos não dá tempo de saber. Usando um paralelo, na Igreja Católica, quando se diz que aconteceu um milagre, para que um candidato a santo seja canonizado, o milagre tem que ser total, irreversível e completo. Em quatro anos de programa tal, resolveu o problema de 50. Mas tem duas mil pessoas lá. Então, programas sociais, para serem avaliados, eles têm que ser no longo tempo, eles têm que ser programas de Estado. Esse é o nosso problema. A chamada democracia representativa, ela elege a cada quatro anos um. Aí não dá tempo. E aí, quando a prefeita X entrou, ela desmancha tudo o que o anterior fez. Aí o outro que a sucede, desmancha tudo o que foi feito. Então, como você vai avaliar? Para a Prefeitura, é um número. É um número. Não leva em conta a pessoa. Ele é um número que vai para uma vaga. Não é uma pessoa que precisa de um lugar, é um número que precisa de uma vaga. Ninguém pergunta pra eles o que eles sentem. Ninguém pergunta. Na vida deles, lhes é negado o afeto.

Em uma entrevista o senhor passou a impressão de que sabia da existência do pedido de CPI desde dezembro…

Desde dezembro, sim…

Mas não tinha se manifestado. O autor do requerimento disse em entrevista recente que o senhor “pulou à frente das armas”. Qual a sua reação a esta afirmação?

Alguém te aponta uma arma, você vai fazer o quê? Vai reagir. Isso é jogo de palavras. Eu posso te afirmar uma coisa. Eu jamais ia apontar uma arma para ele. Jamais! Ele acha que eu pulei diante da arma. É interessante. Porque eu jamais vou apontar uma arma para quem quer que seja. E nunca vou usar a arma que eles me atingem. Quando o vereador fala: “Eu nunca citei o Padre Júlio”, tem a gravação dele dizendo: “Ele será trazido algemado, coercitivamente”. Isso não é abuso de autoridade? Digo para as pessoas que não entendem o que se passa aqui, qual a situação dessas pessoas, para que venham. Serão bem recebidos.

O senhor sabe de alguma denúncia de algum Conseg (Conselho de Segurança) ou qualquer outra denúncia que justificasse a realização de uma investigação a seu respeito?

Os Consegs de São Paulo, entre as cinco maiores queixas, a população de rua está entre todas. Porque São Paulo hoje é a vitrine da especulação imobiliária. Hoje, o grande ponto da cidade é a especulação imobiliária. E a presença da população de rua, que cresce muito e cresceu muito em São Paulo, passa a ser uma presença ameaçadora, incômoda. Então, é o que eles dizem: “Você os alimenta. Ao invés deles irem embora, eles vêm”. O raciocínio seria “vamos matá-los de fome, porque assim eles desaparecem.”

Como é que o senhor interpreta esse argumento?

É um argumento da lógica neoliberal. É que nós pensamos de maneira neoliberal. Então, a gente quer analisar a lógica neoliberal. Quando você examina a lógica neoliberal, você também assume essa lógica. Nós, a sociedade de um modo geral. A mídia é neoliberal, a sociedade é neoliberal, o pensamento dominante é neoliberal. Então, quando você entra nessa discussão, você entra dentro dessa mesma lógica. O Papa Francisco, em seu livro Evangelii Gaudium, diz que a lógica do neoliberalismo é o descarte. Essas pessoas estão descartadas. E fica descartado quem está com elas também. Agora, quando a gente começa a discutir, “ah, mas ele falou isso, ah, mas ele falou aquilo”, a gente entra na lógica dele (que tem a visão neoliberal). Eu não sei o que ele pensa. Ele pensa dentro de uma lógica. Eu não quero pensar dentro dessa lógica. Porque aí fica esse bate-boca. Dentro da casa do Big Brother, todos pensam a mesma lógica.

O filósofo Jason Stanley, que fez parte do documentário “A Sociedade do Medo”, do qual o senhor também participou, disse: “os políticos fascistas sempre acusam os seus oponentes daquilo que eles são culpados”, eu queria que o senhor comentasse essa frase.

É uma forma de pensar. É um pensamento. O próprio Papa Francisco diz: “Cuidado com quem é rígido demais, alguma coisa está sendo escondida. Alguém começa a ser muito moralista com você, você logo percebe que deve ter alguma coisa ali. Eu não consigo dar conta de todas as lógicas, porque eu não quero fazer parte da lógica neoliberal, embora esteja dentro da cultura neoliberal. As pessoas me perguntam: “Quantos você já tirou da rua?” Eles querem fazer contabilidade. Eu não tiro ninguém. O Paulo Freire diz que ninguém educa ninguém. Você me educa e eu te educo. Não sou eu que tiro ele da rua. Ele é que sai, com as pernas dele. Eu não posso caminhar por ele.

Caso se confirme a instalação da CPI, que ainda depende do Colégio de Líderes, o que o senhor gostaria que ela investigasse?

Eu já sugeri várias vezes que se faça uma auditoria técnica e econômica, eu acho que essa é uma questão que tem que ser examinada. Por exemplo, hoje uma pessoa em situação de rua custa para a Prefeitura de R$1.500 a R$2.000. Alguns que estão em hoteis sociais chegam a custar R$4.000 para a Prefeitura. Só que neles chega a salsicha. Onde é que fica o restante? Onde fica? Então, isso acho que é uma coisa que teria que se verificar. Então, não chega uma roupa, não chega um sabonete, não chega um creme dental, não chega uma escova dental. Então, esse recurso, que lá eles levantam na Prefeitura, milhões, vai para as entidades, que pagam o coordenador, o vice-coordenador, o técnico, o assessor, o educador. Vai pagando, pagando, pagando, pagando, quando chega neles, não tem lençol na cama, não tem nem a cama. Então, que se verifique isso. Porque já está mais do que claro. Espaços com muita gente não dão certo. As pessoas também querem seus próprios espaços, querem, e gostam de cozinhar. Também querem namorar. Se ele quiser namorar, como ele faz? A gente conseguiu, quando agora teve a mudança climática, que aumentou muito a temperatura, que a prefeitura fizesse a Operação Altas Temperaturas.

O senhor conversou sobre isso com o prefeito?

Sim, pedi, eu tenho aqui a conversa com ele, ele agradeceu e disse que imediatamente estava chamando e tal. Eu estive com ele por esses dias, falei para ele, o horário que termina é muito cedo. Está fechando às 16h, às 16 horas é quando está no auge, com o calor mais forte, é a hora que baixa o calorão mesmo. Entre às 16h e às 18h parece que fica pior.

O senhor tem alguém que te inspire?

Irmã Dulce é uma inspiração. Muito antes do padre Júlio, a Irmã Dulce também foi perseguida por um vereador. A sobrinha da irmã Dulce me mandou (o relato) sobre o que um vereador fez na ocasião contra ela. Mas, a inspiração maior é Jesus. Admiro São Tito Brasman, cuja imagem tenho aqui na Paróquia. Ele foi preso, torturado, muito maltratado. Ele morreu em um campo de concentração, era um jornalista e reitor que protegeu os alunos judeus nas escolas católicas, é o padroeiro dos jornalistas católicos. Seu lema era ‘amar os que nos odeiam’, e por isso, eles tinham mais raiva dele.

Foto: ADRIANA SPACA / AE

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