Por um orçamento de combate à desigualdade

Há distância entre o discurso distributivista de Lula e o direcionamento real de recursos definido pela Lei Orçamentária. Para que o dinheiro público não seja todo sugado pelos abastados, faltam mecanismos para monitorar o seu caminho no Brasil

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Finanças Públicas, Políticas Públicas, Poder Público: se fossem fiéis ao caráter público que as nomeia, estariam orientadas ao Bem Comum. Mas no Estado brasileiro, com estruturas patrimonialistas, patriarcais, racistas, coloniais tão profundas, não é bem assim. As diretrizes orçamentárias para 2024 não deixam dúvidas a respeito. A orientação para a execução dos orçamentos públicos, longe de possibilitar o cuidado com a vida, a superação da pobreza, das desigualdades, das emergências socioambientais, segue reproduzindo mecanismos de transferência de recursos e concentração da riqueza nas mãos dos mais ricos, financiando esquemas clientelistas para sustentar eleitoralmente as velhas e novas oligarquias no sistema político. Mesmo as políticas que visam a redistribuição social da riqueza mantêm invisíveis e sem reparação a exploração e a injustiça que a divisão sexual e racial do trabalho impõe às mulheres trabalhadoras, negras, indígenas em toda parte, sobrecarregadas que estão com os cuidados com suas famílias e comunidades, pelos quais o setor privado não se responsabiliza e que o poder público não assume.

Nesse contexto, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), sancionada pelo presidente Lula em 29 de dezembro de 2023, diz muito do que podemos esperar para os próximos dois anos.  A guerra estabelecida no parlamento em função dos recursos públicos está longe de ter fim. Com a eleição de um presidente do campo progressista antifascista, havia a expectativa de diminuição desse tipo de manobra que vem ganhando terreno desde 2019 com o Congresso Nacional usurpando as prerrogativas do Poder Executivo com uso do chamado “orçamento secreto”, e promovendo uma série de escândalos relacionados ao uso clientelista do dinheiro público e corrupção em obras inexistentes. No entanto, a eleição também resultou num parlamento de maioria de direita e extrema-direita, e novos esquemas foram acertados para continuar viabilizando aos parlamentares um papel que vai além da representação legislativa, para atuar na gestão direta de uma parte considerável dos recursos públicos. Ou seja, uma nova roupagem clientelista, no lugar do “orçamento secreto”.

Essa prática já foi julgada no STF (Supremo Tribunal Federal), que entendeu que esse tipo de uso do orçamento viola o princípio constitucional da impessoalidade, da moralidade e da publicidade – por serem “anônimas”, sem identificação de quem propôs e de quem vai receber, daí o nome “secreto”. Mesmo assim, o parlamento hábil, poderoso e conservador atualizou o mecanismo, reduzindo drasticamente as possibilidades de financiamento de políticas realmente públicas nacionais e sistêmicas para a povo brasileiro.

Diante disso, está valendo o dito popular “quem parte, reparte e fica com a maior parte”: a nova LDO traz um aumento do fundo eleitoral para as próximas eleições e a continuação da obrigatoriedade da prioridade do pagamento das emendas parlamentares. Isso justifica, entre outras coisas, a diminuição dos investimentos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Segundo Paulo Kliass, o desastre está anunciado caso o governo não admita que não é possível zerar o déficit – intenção anunciada e reiterada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, embora desacreditada pelo relator da LDO, deputado Danilo Fortes (União Brasil-CE). Além do PAC, também vão perder recursos as áreas sociais como saúde, educação, assistência social, segurança pública, saneamento, salários de servidores, etc.

No Cfemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria, construímos uma história de monitoramento de orçamento público para financiar políticas públicas, principalmente as que afetam diretamente a vida das mulheres. Nosso acúmulo tem servido, inclusive, para ampliar as capacidades do poder público no monitoramento do impacto das políticas na vida das mulheres. Em 2023, logo que o governo enviou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO), optamos, a partir da articulação do Fórum Feminista Antirracista por Políticas Públicas de Cuidado, do qual fazemos parte, por acompanhar a tramitação olhando diretamente para as diretrizes da Política de Aplicação dos Recursos das Agências Financeiras Oficiais de Fomento (AFOF).

Tal política orienta os critérios de financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia. Cabe ao poder público estabelecer critérios meritórios dos projetos financiados a custo subsidiado por essas AFOFs de acordo com o interesse público, além de deixar patente quais ações de desenvolvimento, para serem efetivas, devem ser financiadas.

Neste caso, incidimos para que as diretrizes considerassem projetos com capacidade de melhorar a condição econômica e socioambiental, particularmente para mulheres, população negra, povos indígenas e comunidades tradicionais. Nossa proposta é que as empresas tomadoras de recursos demonstrem claramente quais as obras e/ou iniciativas estão promovendo com vistas ao fortalecimento, criação, inovação para prover a necessária infraestrutura social de cuidado, como equipamentos para crianças, idosos e pessoas com deficiência, segurança alimentar e outros. A sugestão ganha peso no contexto atual, no qual o governo tem investido esforços para criação da Política Nacional de Cuidados.

Com esse argumento, oferecemos às deputadas da bancada feminina, um conjunto de nove propostas para qualificar os critérios a serem observados pelos atores tomadores de recursos públicos sob orientação da LDO. Em linhas gerais, propusemos que todo financiamento concedido por bancos públicos contemple projetos de desenvolvimento que promovam justiça socioambiental, criação de empregos qualificados, fortalecimento das políticas públicas, enfrentamentos às desigualdades regionais, etárias de gênero, raça e etnia.

Quando o projeto da LDO foi encaminhado ao Congresso Nacional, constavam no Capítulo VIII, que trata das Agências de Fomento, apenas duas citações sobre as mulheres; duas sobre gênero, uma sobre violência institucional, além de diversas citações sobre “desigualdades”, sem a devida especificação de quais seriam as desigualdades referidas. Já no texto da lei, sancionada em 29 de dezembro, foram ampliadas as referências, incluindo a priorização dos projetos de empresas que enfrentem a desigualdade de gênero e raça, a sub-representação dos grupos (mulheres raça e etnia) e a vedação concessão de recursos para instituições cujos dirigentes sejam condenados por trabalho infantil, trabalho escravo, crime contra o meio ambiente, assédio moral ou sexual, ou violência contra a mulher, racial e de etnia.

As ações de incidência são fundamentais para dar visibilidade às demandas das mulheres, da população negra e de outros setores excluídos do orçamento público. Isso não evita que os representantes das classes mais abastadas, acostumados a enriquecer às custas do dinheiro público, continuem reproduzindo e atualizando os artifícios para a usurpação dos recursos públicos, precarizando o acesso das maiorias às políticas públicas. Por exemplo, o parágrafo III do artigo 130 da LDO deixa aberta a possibilidade de tomada de recursos por empresas de saúde complementar, ou seja, o dinheiro público financiando a saúde privada e sucateando o SUS.

Um dos mecanismos que protege a estratégia patrimonialista nas finanças públicas e consequentemente toda a injustiça fiscal que dela deriva é a falta de responsabilidade social e transparência do poder público a este respeito – governo, bancos, empresas públicas etc., não prestam contas sobre como e se os gastos e investimentos que estão realizando estão estrategicamente orientados ao Bem Comum, ao enfrentamento das desigualdades, não monitoram, não traçam metas nem demonstram os resultados alcançados. O monitoramento fino e diário das finanças públicas é só com a chamada responsabilidade fiscal, enquanto a responsabilidade social é sistematicamente negligenciada. A democratização da participação cidadã, as lutas sociais são cruciais para enfrentar o patrimonialismo e para ampliar a esfera de debate e decisão a este respeito para construir alternativas reais visando a sustentação da vida.

Sendo assim, e diante de outras medidas indecorosas, passa a ser fundamental que os Ministérios mais orientados à garantia de direitos e à igualdade (Mulheres, Igualdade Racial, Povos Originários, Direitos Humanos)  garantam a manutenção de instrumentos para o controle social, reforcem seus mecanismos de monitoramento, inclusive estabelecendo novos, para dar conta de fiscalizar as diretrizes aprovadas, de maneira que a cidadania, os movimentos sociais, feministas e de mulheres, os conselhos, as conferências possam incidir, participar, acompanhar a execução das políticas públicas e o cumprimento de tais diretrizes.

Por fim, é importante lembrar que por várias vezes ouvimos o presidente Lula dizer que “governar é eleger prioridades”. Desse modo, diante da escolha de priorizar o déficit zero, o que tem sido reafirmado em declarações e também em medidas governamentais, mais de R$ 700 bilhões devem ser destinados só para o mercado financeiro. Por isso, ficar atentas e mobilizadas é necessário e urgente.

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