Pesquisadora analisa fenômeno mundial de ascensão de movimentos e governos de extrema-direita e suas particularidades na América Latina
Cátia Guimarães e Paulo Schueler – EPSJV/Fiocruz
No momento em que esta edição da Poli estava sendo concluída, no final de dezembro passado, o mundo tinha notícia das primeiras iniciativas do novo governo argentino. Enquanto decisões como o corte de orçamento e a desvalorização da moeda expressavam a pauta econômica da austeridade, um pacote de medidas repressivas contra manifestações de rua reforçava o caráter parcial, relativo e, contraditoriamente, autoritário do discurso de liberdade adotado pela extrema-direita que tem crescido. No mesmo período em que a eleição de Javier Milei recolocou a América Latina nesse tabuleiro da ultradireita mundial, a Europa, onde essas experiências têm sido mais fartas, viu outro país votar massivamente num líder desse espectro político – embora não se soubesse ainda se conseguiria formar governo, Geert Wilders tinha conquistado a vitória eleitoral na Holanda.
Além das semelhanças que permitem constatar que se trata de um fenômeno mundial, há diferenças na forma como esses processos acontecem aqui e lá? No caso específico da Argentina, que fatores internos e externos contribuíram para um resultado que até bem pouco tempo parecia improvável? No mundo e na América Latina, qual a responsabilidade das esquerdas na ascensão de governos e movimentos de extrema-direita? Essas e outras questões são analisadas nesta entrevista pela pesquisadora Rejane Hoeveler, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), que também realça aspectos da conjuntura brasileira recente.
A extrema-direita vem crescendo em várias partes do mundo. Recentemente, no final de 2023, Javier Milei foi eleito presidente da argentina e, embora não se saiba ainda se vai formar governo, Geert Wilders foi o mais votado nos Países Baixos. Esses são sintomas de um mesmo fenômeno?
De fato, essas duas notícias no segundo semestre de 2023 nos obrigam a reconhecer que essa ascensão global de forças de ultradireita veio para ficar e ainda está longe de se desvanecer. Isso talvez possa ser explicado pelo fato de que as condições sociais, políticas, econômicas, ideológicas e culturais que são o chão histórico, o solo fértil, para o nascimento e o crescimento de fenômenos como o bolsonarismo no Brasil, o trumpismo nos Estados Unidos e a eleição de Boris Johnson na Inglaterra, permanecem. Há também processos que não são propriamente eleitorais, como o Brexit, no qual a islamofobia e a questão antimigratória da Europa, que é extremamente racista, esteve muito mais presente. Então, de fato, esses dois resultados eleitorais foram bastante desanimadores, em países em que se tinha como praticamente impossível que pensamentos negacionistas, por exemplo, chegassem ao poder. Quando Bolsonaro ganhou no Brasil, a gente olhava para a Argentina quase com inveja, porque eles tinham uma política de direitos humanos bem instituída e elaborada, lá a transição democrática foi diferente, teve justiça de transição e tem uma certa educação, digamos assim, no sentido de evitar negacionismos. Então, a gente achava que na Argentina seria difícil [um governo desse tipo], embora, desde 2019, as direitas latino-americanas estivessem fazendo um esforço muito grande para encontrar um Bolsonaro argentino.
Milei é um Bolsonaro argentino?
Ele é e não é. Digamos que ele é, mas com algumas diferenças, tanto para pior como para melhor. A plataforma anarcocapitalista, como ele fala, com a sigla Ancap, é muito pior e vem com uma radicalidade e força muito maior em comparação ao que era o [ex-ministro da economia] Paulo Guedes, que não foi um ponto central na campanha do Bolsonaro, embora tenha sido importante. No mais, eles compartilham grande parte das posições como, por exemplo, misoginia, homofobia e racismo. O Milei fala que províncias inteiras da Argentina, como Jujuy e Salta, não deveriam ser parte do país por questões étnico-raciais, porque ele só considera como argentinos os brancos. Então, o racismo no Milei também é muito acentuado. E, embora ele não tenha um passado militar como o Bolsonaro ou uma ligação tão grande com as Forças Armadas, a vice-presidente dele cumpre esse papel de fazer a ponte com militares e viúvas da ditadura militar de lá.
Que fatores da conjuntura específica da argentina podem ser apontados como capazes de modificar tanto esse cenário, fazendo com que o país optasse por um caminho de adesão à extrema-direita, diferente do que se previa?
Essa é a questão de um milhão de dólares. Obviamente tem a questão da subida da inflação, principalmente da metade para o final do mandato do [ex-presidente] Alberto Fernández. E tem o fato de que o peronismo se dividiu bastante. Teve uma crise interna e o Sergio Massa [que disputou contra Milei] não era o candidato favorito da militância orgânica peronista, porque ele vem mais da direita, tinha rompido com o kirchnerismo e só muito recentemente se reaproximou. Há aqueles fenômenos que atravessam países, relacionados, por exemplo, à precarização do trabalho, especialmente entre os jovens, à dificuldade de se manter na escola e na universidade pública, aquelas questões que dificilmente seriam solucionadas por apenas um governo. E acho que tem um elemento um pouco de reação a conquistas que foram realizadas nos últimos anos, por exemplo, pelo movimento feminista, como a aprovação do aborto. Isso foi uma iniciativa do governo e deixou as direitas absolutamente enfurecidas. Tem a questão antiCristina Kirchner muito forte, que é bastante misógina e [expressa] também uma operação de lawfare contra ela, com anos e anos de campanha midiática na qual predomina o sentimento antipolítica. Então, em certo momento essa quantidade vira qualidade, a antipolítica sai do sofá e vira uma força política ativa. Foi isso que aconteceu na Argentina. Começou com aqueles protestos para queimar máscaras [de proteção contra o novo coronavírus] no Obelisco, com o negacionismo cientifico, negacionismo da vacina, que chamava o governo de Fernandez de uma “infectadura” porque aplicou as medidas da quarentena de maneira mais ou menos séria. Tem todos esses fatores.
Em certo momento a antipolítica sai do sofá e vira uma força política ativa
As semelhanças entre esse crescimento da extrema-direita em diversos lugares estão sendo apontadas o tempo inteiro, mas, na medida em que isso chega a um país como o Brasil e agora à Argentina, é possível identificar também diferenças em relação a esse fenômeno na Europa, sobretudo considerando a distinção entre centro e periferia do capitalismo?
Eu acho que seria difícil apontar todas as diferenças, mas a gente pode indicar algumas. A primeira delas talvez tenha relação com a própria divisão internacional do trabalho e o papel que as ideologias nacionalistas ou nativistas – que são nacionalismos radicais como dizem alguns autores, como o historiador Xavier Casals, de Espanha -, têm no norte global. A França tem uma particularidade, porque lá a maior força da extrema-direita, que é da Marine Le Pen, defende direitos sociais, só que para os ‘nacionais’. Isso é o que alguns autores também chamam de populismo de direita – um conceito de que eu discordo, mas que vem caracterizar justamente esse tipo de ultradireita, aquela que defende, digamos, um Estado de Bem-Estar social, só que limitado aos cidadãos nacionais, ou seja, que deixa de fora os imigrantes. Com isso está-se excluindo uma boa parte da sociedade daquele conjunto de políticas, criando uma hierarquização social oficialmente, para além daquela que já é dada pelas desigualdades do capitalismo. Eles têm um ativismo, um nacionalismo que permite, inclusive, a defesa cínica, muitas vezes, de medidas protecionistas.
O nacionalismo de Milei e de Bolsonaro é capenga, para dizer o mínimo, porque são de uma subserviência historicamente inédita, principalmente a um setor político dentro dos Estados Unidos, que é o trumpismo. É uma coisa inédita na história das relações internacionais, da diplomacia, o fato de que o Milei, recém-presidente eleito, está tratando mais com o Bolsonaro e com o [Donald] Trump do que com [Joe] Biden e Lula. São candidatos que se elegem já afirmando que vão governar para aquilo que eles consideram cidadãos de bem, que não vão governar para todos. Isso é uma coisa em comum entre eles. Mas, voltando às diferenças, acho que a principal é essa: que o nosso nacionalismo é de um caráter distinto do nacionalismo que adotam as ultradireitas dos países imperialistas.
O mundo viveu uma crise econômica em 2008, que teve reflexos durante muito tempo e muitos autores dizem que ainda não acabou. Esse contexto ajuda a explicar a ascensão desses movimentos de extrema-direita no mundo e, particularmente, aqui na América Latina?
O que eu vou falar é um pouco polêmico. Mesmo em análises críticas de intelectuais de parte da esquerda, é um pouco um lugar comum, quase um consenso, atribuir esses fenômenos à crise. Só que o capitalismo é um sistema de crises cíclicas. O capitalismo já é um desastre funcionando bem, ele já gera bastante miséria, pobreza, desigualdade e expropriações. Então, eu tomo muito cuidado em fazer essa relação de que se tem crise, logo, surge a extrema-direita. Acho que não é bem assim, porque, inclusive, isso desconsidera a parte militante de investimento em organizações, movimentos, partidos, ONGs, institutos, think tanks, canais de Youtube, redes sociais, os partidos digitais… Esses caras estão fazendo isso há muito tempo – por isso eu falei que desde 2019 eles estavam buscando um Bolsonaro argentino. As mesmas forças que atuaram aqui no Brasil, como o MBL [Movimento Brasil Livre], que é o Students for Liberty, existem lá [na Argentina]: eles têm a Fundación Libertad, a Fundación Libre, uma série de aparelhos privados de financiamento empresarial. Eles têm um projeto, têm métodos, inclusive, de atuação que são globais. A gente não pode desprezar isso.
O fim do bloco soviético contribuiu para que, mundialmente, uma parte da direita clássica se permitisse radicalizar?
Sim, mas quando tem o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, o discurso dominante na mídia e entre intelectuais orgânicos da política externa americana, que acabaram influenciando bastante esse debate, era da vitória do capitalismo. Para o [Francis] Fukuyama, por exemplo, era a vitória especificamente de um modelo que incluía uma economia de mercado e uma democracia liberal. Essa nova direita não está nesse registro porque ela rejeita a democracia, só aceita a democracia da boca para fora, tacitamente, para ter a sua legitimação pelos mecanismos eleitorais. Ela já mostrou que despreza [a democracia] e a gente viu, caso após caso, que os candidatos autoritários cumprem as suas promessas. Essa história de achar que [os políticos de extrema-direita] vão ser domados não existe. Na medida do possível, no Brasil as instituições foram bolsonarizadas, e a gente está sentindo efeito disso até hoje, mesmo com a mudança de governo. Isso é para mostrar como o enraizamento desse pensamento, dessa ideologia, dessa militância, é muito grande.
Mas voltando à questão: esse pessoal não está fazendo o mesmo discurso do Fukuyama. Eles estão dizendo que o “marxismo cultural” está vencendo. Na verdade, a cadela do fascismo sempre está no cio, nunca deixaram de existir as possibilidades mais truculentas de dominação social. E claro que as crises agravam, embora não gerem isso porque a política tem a sua autonomia. Quando a globalização capitalista e neoliberal se aprofunda nos quatro cantos do mundo, isso causa um impacto na correlação de forças internacionalmente, ajuda a aprofundar as derrotas dos projetos coletivos da classe trabalhadora, dos projetos alternativos, projetos de outras sociabilidades que não seja a capitalista. Essa coisa de ideologia de gênero, por exemplo, vem também desde os anos 1990. Todas as direitas estavam formulando, mas elas não estavam aparecendo tanto como forças políticas institucionais porque a correlação de forças não permitia. Agora permite. E agora é pior ainda, porque elas se apropriaram do signo da rebeldia enquanto a esquerda ficou vinculada a uma coisa obsoleta como a defesa de constituições, por exemplo, no caso do Brasil. No Chile é diferente porque foi a derrota de um levante social gigantesco em 2019 e que termina agora com o desastre e uma possibilidade forte de a ultradireita ganhar as próximas eleições lá também.
Na Argentina, os jovens foram fundamentais para a vitória do Milei. Mundialmente, existe algo como um fenômeno de captura da rebeldia juvenil pelo reacionarismo?
A juventude, historicamente, pelo menos desde a segunda metade do Século 20, 1968, tem um papel fundamental, geralmente, para causar mudanças e rupturas progressistas. Sobre a Argentina, tem um livro incontornável, do Pablo Stefanoni, que é ‘La rebeldía se volvió de derecha?’, que tem uma boa análise. Qual é a questão? Tem uma hora em que o sentimento de desesperança e falta de perspectiva no futuro é muito grande… É a ideia de que no passado havia mais futuro. Vou dar um exemplo de como a esquerda não tem conseguido responder a isso. Um dos slogans do Sergio Massa na eleição para rebater isso era ‘o derecha o derechos’ [ou direita ou direitos], remetendo aos direitos sociais, obviamente. Só que tem um problema, porque a maior parte dos trabalhadores, especialmente dos jovens precarizados ou desempregados mesmo, já não têm direitos, então eles não têm o que defender. Além disso, é importante pontuar que essa é uma geração que não viveu 2001 [a crise econômica argentina], que viveu basicamente durante os governos kirchneristas, como é o caso também de vários jovens que são da direita no Brasil, que só viveram os governos do PT. Mas essa é a questão: a esquerda está comprometida demais com a defesa de uma coisa que está se acabando – e olha que a Argentina, para parâmetros latinoamericanos, ainda tem um índice de emprego formal e de sindicalização relativamente alto. Quando eles fazem greve geral, é greve geral mesmo. Mas essa juventude já não está encontrando esse espaço, ela não está mais encontrando aquela figura que está muito bem sintetizada no personagem do Agnaldo, pai da Mafalda [personagem de quadrinhos do cartunista Quino], que é aquele trabalhador fordista, com horário de jornada e férias. E aí aparece um sujeito como o Milei que tem, de fato, um carisma – é inegável que ele é carismático, ao contrário do Bolsonaro – que diz que vai romper o sistema todo.
A gente tem que compreender o fenômeno, e não xingar as pessoas de burras. É tipo assim: já que é para não ter nada, então vamos arrebentar com tudo que ainda tem. Já que o mundo vai acabar, eu não quero esperar mais, quero que ele acabe logo para eu ver se vou sobreviver e como. Talvez seja um pouco psicologizante essa minha explicação, mas escutando entrevistas de jornalistas com eleitores militantes da campanha do Milei, é bastante isso que eles trazem. Fora que tem uma misoginia muito forte. A maioria dos militantes e votantes [pró-Milei] são homens e isso também é uma divisão que se assemelha ao bolsonarismo.
Muitos autores argumentam que, com a institucionalização de um consenso neoliberal no mundo, as esquerdas passaram a ser cada vez mais administradoras da ordem, cada vez mais parecidas com a direita quando se tornam governos. As decisões políticas, econômicas e estratégicas que foram sendo tomadas pelas esquerdas ao longo desses últimos 40 anos têm responsabilidade na ascensão da extrema-direita?
Com certeza. De fato, talvez a maior parte das correntes de esquerda no cone sul, se tornaram bastiões de uma democracia burguesa que a própria burguesia despreza – porque não vê problema nenhum em abrir mão dos marcos democráticos fundamentais em nome de, muitas vezes, tirar essa mesma esquerda moderada do poder. Pensando em termos de Brasil, Argentina e Chile, com certeza, a gente enxerga isso. Por mais que a Dilma [Rousseff] tentasse agradar o mercado e colocasse Joaquim Levy [como ministro da Fazenda], tivesse um programa fiscalista de Estado, com contenção de gastos etc., eles nem isso aceitaram. E assim se passou de uma chave da colaboração de classe para uma chave da guerra social aberta a partir de 2016, com o golpe contra a Dilma e com o [Michel] Temer assumindo o governo. A esquerda se tornou não só o bastião dessas instituições republicanas que são tão frágeis na América Latina como aplicadora de uma política de gestão da barbárie capitalista, gestão da pobreza extrema, como as políticas focalistas defendidas pelo Banco Mundial. Por mais que seja muito pior sem isso, o que a gente viveu e ainda vive um pouco são políticas de gotejamento social, que servem pra amenizar os efeitos mais deletérios da questão social. Nós estaríamos muito pior enquanto país se tivesse sido a direita [a governar] esses anos todos, isso é um fato. Mas isso deixa as lutas sem direção ou com uma direção muito voltada para a institucionalidade, ceifando um pouco da sua autonomia política. Porque as lutas nunca deixaram de existir.
A Argentina tem uma particularidade. Porque o peronismo como uma força social e política tem um peso, o chamado peronismo de esquerda, as juventudes kirchneristas mobilizam bastante, muito mais, comparativamente, do que o PT no Brasil. Eu acredito que em grande parte por causa disso, eles conseguiram evitar até o momento a prisão da Cristina [Kirchner], enquanto no Brasil não conseguimos evitar a prisão de Lula. No Chile a gente tem a esquerda colaborando com a continuidade de um modelo neoliberal implementado pela ditadura do [Augusto] Pinochet, que foram os anos de concertación. Não por acaso, em 2019 [o mote] era “não são por 30 centavos, são por 30 anos”. O Chile é um exemplo dessa adesão da esquerda moderada à institucionalidade, no sentido não de apenas ocupar aquele lugar mas de ser dirigido por aquele lugar. Essa é a questão: aceitar as regras do jogo de democracias extremamente limitadas, restritas, que já nasceram frágeis e vêm sofrendo uma série de abalos, com uma série de reformas constitucionais.
Como você comentou, no Chile, um governo que nasce de uma mobilização social muito grande vem perdendo capital político e sendo derrotado no ponto de vista legislativo. Enquanto isso, aparentemente, o governo de Gustavo Petro, na Colômbia, tem apostado numa mobilização de massa maior, que teria conseguido alguns avanços. Essa comparação é correta? Há outros países da américa latina que merecem destaque nessa análise?
A América Latina tem cenários muito diversos. Você mencionou dois que estão sendo bastante relevantes, e acredito que são dois exemplos opostos de o que deve ser uma esquerda no poder. Acredito que o Petro, na Colômbia, está fazendo um mandato exemplar no sentido de não somente não desmobilizar, mas entender que, num continente onde a gente é ameaçado por golpes só por sonhar com soberania, ele só vai conseguir aplicar mudanças econômicas e políticas positivas para a população com o povo na rua, com mobilização sustentando o governo. Então, o Petro está sendo, na minha opinião, mais realista, não mais radical. Ele não é nenhum comunista revolucionário, é um governo que apenas está zelando pela soberania colombiana e tentando desfazer os anos de desastres, principalmente em termos de direitos humanos, legados pelo uribismo [de Álvaro Uribe], que governou durante muito tempo, e é ainda uma força de ultradireita na América Latina. Eles têm uma extrema-direita uribista fortíssima lá: a senadora Maria Fernanda Molina Cabal, por exemplo, foi aluna de Olavo de Carvalho e é amiga de Eduardo Bolsonaro. Então, é um governo que sabe que está permanentemente ameaçado e, portanto, procura usar as armas que tem – não somente legais, institucionais, jurídicas mas também a do chão social. É um governo que, se perder, vai perder lutando. O contrário do [Gabriel] Boric, que é um governo que, desde o início, foi extremamente frágil politicamente, fazendo concessões atrás de concessões para a direita e não teve iniciativas políticas relevantes no que diz respeito àqueles temas que são mais sensíveis e mais caros à população, como a questão dos fundos de pensão, da previdência. Ao contrário, ele deu continuidade, por exemplo, à questão da militarização do sul, da Araucanía, onde está o foco da luta dos mapuches [etnia indígena] contra as madeireiras. Enfim, o conjunto do governo Boric foi uma decepção. Esperamos que ele consiga – acho que conseguirá – terminar o mandato, mas vai ser muito difícil para a esquerda chilena o próximo período. A derrota do plebiscito que aprovaria ou não a nova proposta de Constituição em 2022, que era uma proposta absolutamente moderna, no sentido positivo da palavra – de uma Constituição adequada às questões relevantes mundiais do Século 21, com a catástrofe climática, os direitos dos povos originários, equidade de gênero, como direito reprodutivo da mulher, direito da natureza, além de direito trabalhista, desprivatização da água, que é uma coisa importantíssima para Chile – enfraqueceu ainda mais. Foi uma derrota muito grande. [Em dezembro de 2023, após a realização desta entrevista, um segundo plebiscito novamente recusou uma proposta de texto constitucional, dessa vez produzido sob influência da extrema-direita].
Qual o real papel das fake News e da indústria da desinformação que cresce a partir das plataformas digitais na ascensão da extrema-direita?
Eu acho que isso tem que ser mais estudado, porque não está muito claro ainda, por exemplo, qual foi o real papel da Cambridge Analytica na eleição da Argentina de 2015, quando eles assessoraram o PRO [partido político Proposta Republicana]. Mas eu acho que o peso é muito grande. Muitos autores já mostraram como as plataformas das redes sociais lucram com a política do ódio, ou seja, ali é um espaço onde é muito mais fácil circular um discurso de ultradireita do que um discurso de esquerda ou de extrema-esquerda. Isso é uma diferença muito grande. As fake news e os partidos digitais, que são as formas de organização contemporânea da ultradireita, são partidos também, no sentido gramsciano [de Antonio Gramsci], atravessam as comunicações e as subjetividades de uma forma que coloniza. Não que isso seja planejado, porque não é uma teoria da conspiração, mas o que a gente está vendo acontecer, principalmente entre os jovens, é que toda a sociabilidade está atravessada por um modelo doentio, que adoece e contribui para esse cenário no qual as pessoas vão buscar na ultradireita uma alternativa. Não é só o nível de que eles permitem a propaganda negacionista, da ultradireita, eles incentivam. Esse mundo é extremamente nocivo para a nossa saúde. Contribui para o adoecimento e para essa sensação do presentismo contínuo, como diria o Fredric Jameson, para essa ansiedade contemporânea. Está todo mundo com crise de ansiedade ou de pânico porque é um mundo no qual você precisa mostrar a produtividade máxima, a performance máxima, a perfeição. Inclusive, as relações de trabalho estão permeadas por isso, não é só uma opção de hobby. Enfim, acho que há muito ainda a ser estudado, quiçá a psicanálise e os estudos culturais nos tragam também contribuições para pensar isso. Mas a necessidade de regulação [das plataformas] é iminente, é urgentíssima, porque elas podem fazer o que quiserem.