Produtores de cacau e pecuaristas lideram movimento armado contra indígenas na Bahia. Grupo tem apoio de políticos de extrema-direita e policiais militares
Por Diego Junqueira e Clarissa Palácio, em Repórter Brasil
O remake de “Renascer” estreou em 22 de janeiro, na TV Globo, propondo uma nova visão sobre a produção de cacau na Bahia: moderna e sustentável. Um dia antes, porém, um episódio típico da violência dos antigos “coroneis” deixou sua marca: o assassinato de Maria Fátima Muniz, da etnia pataxó hã hã hãe. O crime é o mais recente capítulo do longo enredo de ataques contra povos indígenas na costa do cacau.
Nega Pataxó, como era conhecida, foi atingida com um tiro no abdômen por um fazendeiro do “Movimento Invasão Zero”. Por conta própria, grupo vem realizando diversas ações de “reintegração de posse” nos últimos meses, em áreas ocupadas por indígenas e trabalhadores sem-terra.
Sem ordem judicial e com atuação semelhante à de milícias armadas, essas operações são consideradas ilegais por advogados, promotores de Justiça e defensores públicos consultados pela reportagem.
O Invasão Zero é liderado pelo produtor de cacau e pecuarista Luiz Henrique Uaquim da Silva, que ganhou notoriedade por atuar há 20 anos contra a demarcação de terras indígenas na costa do cacau.
Uma das fazendas de Uaquim fica no interior da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, área de 47 mil hectares encravada nos municípios de Ilhéus, Buerarema e Una. O território vai da costa turística ao interior, onde há uma cadeia de montanhas com mata preservada.
Essa região de serras tem solo e clima favoráveis ao cultivo de cacau, o que atraiu a cobiça de produtores rurais ao longo do século 20. Isso causou a expulsão das famílias indígenas de suas terras para aldeias e sítios cada vez menores, segundo relatório da Funai de 2009 que destinou a área aos tupinambás de Olivença.
Quase 15 anos depois e superando os prazos estipulados em lei, o governo federal ainda não concluiu a demarcação do território. Esse atraso é apontado como um dos motivos para os conflitos com os fazendeiros na região.
“Enquanto o processo não termina, os fazendeiros têm a esperança de manter a posse da terra. Então eles vão continuar com esses ataques”, diz Kâhu Pataxó, estudante de direito na UFBA e presidente da Finpat (Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá do Extremo Sul da Bahia).
A Repórter Brasil enviou um pedido de entrevista a Uaquim, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. Cinco dias após a morte de Nega Pataxó, o grupo divulgou nota nas redes sociais para informar que respeita as instituições e as leis, que lamenta o confronto ocorrido e que “jamais incentivou, ou mesmo consentiu, com a prática de atos de violência em desfavor dos invasores de terras”.
A tese dos ‘falsos índios’
Além da indústria cacaueira, o Invasão Zero é formado hoje por empresários da pecuária, da construção civil e do turismo. Políticos baianos e figuras importantes da extrema-direita nacional também apoiam a frente anti-indígena.
A amplitude do movimento se deve à mais de uma década de articulações capitaneadas por Uaquim. Em 2009, ele fundou a Associação dos Pequenos Agricultores de Ilhéus, Una e Buerarema (Aspaiub), com intuito de impedir a demarcação da TI Tupinambá de Olivença.
Na época, produtores, prefeituras e empresas do setor hoteleiro tentavam anular o relatório da Funai com a apresentação de contralaudos que descaracterizariam a condição indígena dos tupinambás.
Os documentos apresentados pelos opositores sustentam que os tupinambás não seriam um povo tradicional, mas sim “mestiços” que teriam se aproveitado do momento histórico para se declararem indígenas. Um dos documentos afirma que os “pioneiros do cacau” teriam labutado com “fé e coragem” para tornar a região “mais civilizada”.
“Nessa região se tentou construir um imaginário em que a monocultura do cacau, baseada na concentração da terra, seria a única via de desenvolvimento possível, negando-se a presença indígena e seus projetos próprios de futuro”, diz a antropóloga Daniela Fernandes Alarcon, que pesquisa as ações de retomada nesta região desde 2010. Hoje ela atua no departamento de mediação de conflitos fundiários do Ministério dos Povos Indígenas, do governo federal.
A Aspaiub e o próprio Uaquim entraram com ações na Justiça para impedir a demarcação e, desde então, fazem lobby na Bahia e em Brasília com esse intuito. Em agosto de 2009, durante audiência na Câmara dos Deputados, Uaquim se referiu aos 50 tupinambás presentes como “fantasiados de índios”.
Os laços com Brasília se fortaleceram durante a CPI da Funai e do Incra (2016/2017), criada para investigar supostos crimes cometidos durante processos de demarcação de terras indígenas, titulação de quilombos e criação de assentamentos de reforma agrária.
“Não há mais por que se criar terra onde não existe! Ou será que todo o Brasil agora vai ser demarcado? É daí que sai o conflito. Não há tradicionalidade [indígena], é isso que tem que ser investigado”, declarou Uaquim em audiência externa da CPI ocorrida em Buerarema, em 2016.
As ações da Funai na Bahia foram o destaque do relatório final daquela CPI, que dedicou mais de 500 páginas ao assunto.
Dois meses após o fim da CPI, o então presidente Michel Temer (MDB) assinou um parecer da Advocacia-Geral da União que instituiu o “marco temporal” das terras indígenas. Segundo essa tese, já rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas aprovada pelo Congresso no final do ano passado, só podem ser demarcadas as áreas com presença de indígenas na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
Com a projeção política, Uaquim tentou se eleger vereador em 2016 pelo PSB, e deputado federal em 2018 pelo MDB, mas não conseguiu.
Em 2017, ele criou a UDP (União em Defesa da Propriedade). “Cansados de ver suas terras invadidas pelo MST e supostos índios, produtores de cacau decidiram fundar a UDP”, foi como noticiou um diário baiano na época. Era o embrião do Invasão Zero.
“Mesmo com o laudo antropológico [da Funai] e todas as decisões da Justiça a favor da demarcação, os fazendeiros da região de Ilhéus se organizaram para negar a identidade do povo, baseados em preconceito racial e étnico e liderados por essas associações de agricultores”, diz Agnaldo Pataxó Hã Hã Hãe, coordenador-geral do Mupoiba (Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia).
“Eles são um grupo de extermínio dos povos indígenas. São os testas de ferro para fazer valer o marco temporal”, afirma o cacique Nailton Pataxó, irmão de Nega Pataxó, que também foi ferido a bala no dia do ataque.
Milícia
O lançamento oficial do Invasão Zero ocorreu em abril de 2023, na Assembleia Legislativa da Bahia. Além de dezenas de proprietários de terra, estavam presentes membros da Faeb, a federação de agricultura da Bahia, cujo presidente, Humberto Miranda, já se manifestou favorável à autodefesa das terras por parte dos próprios produtores rurais.
A Faeb é vinculada à CNA (Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil), que faz lobby pró-agronegócio em Brasília e tem como presidente o também baiano João Martins da Silva Junior.
Segundo informações obtidas por meio do Cruzagrafos, a plataforma de investigação da Abraji, e confirmadas na base da Receita Federal, o Invasão Zero é presidido por Dida Souza – no LinkedIn, ela se declara funcionária do Tribunal de Contas do Estado Da Bahia.
Dida é herdeira de Osvaldo José de Souza, ex-político baiano e grande produtor de cacau e gado. A família fundou a Osvaldo Souza Agropastoril, cuja principal atividade é a produção de cacau, segundo a Receita.
O “Invasão Zero” afirma estar presente em em 200 municípios, coordenados por 16 núcleos regionais.
Em entrevista às mídias da própria organização, Dida Souza conta que todos os estados com o Invasão Zero seguem o mesmo modelo, organizados em diferentes grupos de WhatsApp. Um maior com todos os fazendeiros do estado. Já os menores, chamados de núcleos, comportam de 6 a 8 cidades em um mesmo chat.
“Se ocorre uma invasão na sua terra, você coloca dentro do grupo que participa. Manda sua localização, diz o que está acontecendo, quem está indo, quantos são, e todo mundo dos núcleos ao redor se une e vai tirar o invasor.”, finaliza.
Para o defensor regional de direitos humanos na Bahia, Gabriel Cesar, da Defensoria Pública da União (DPU), o grupo tem uma ‘gênese criminosa” ao constituir um grupo armado para fazer “reintegração de posse ilegal” e sem autorização judicial. “Isso é formação de milícia. Precisa ser investigado”, ele diz.
Segundo informações do jornal O Globo, Uaquim e Dida seriam os administradores dos grupos de WhatsApp que convocaram a marcha de fazendeiros para a ação que vitimou Nega Pataxó.
A ação era resposta a uma retomada de uma fazenda situada em área tradicional indígena, contígua à Reserva Indígena Caramurú Catarina Paraguaçú.
A área foi reservada em 1927 pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mas acabou convertida em fazendas particulares nas décadas seguintes. A partir dos anos 1970, o próprio governo da Bahia concedeu títulos de propriedade aos invasores.
Na década seguinte, teve início um longo processo de recuperação do território pelos hã hã hãe, a partir de ações de retomada pelos indígenas.
Em 2012, o STF anulou os títulos de propriedade, mas até hoje a chamada “desintrusão” – como é chamada a retirada dos ocupantes irregulares – não foi finalizada.
A Repórter Brasil procurou a Faeb e seu presidente, Humberto Miranda, além de Dida Souza, mas eles não atenderam aos pedidos de entrevista.
Um mês antes de Nega Pataxó ser assassinada, outra liderança indigena da reserva indígena, Lucas Santos de Oliveira, foi morto a tiros. Desde 2012, os pataxó hã hã hãe contam 32 mortes.
Para Kâhu Pataxó, a ação que resultou na morte de Nega segue o mesmo modus operandi da operação que vitimou três adolescentes da Terra Indígena Barra Velha, em Porto Seguro (BA) em 2022, onde também existe uma demanda de ampliação do território.
Uma das vítimas, de 14 anos, morreu durante uma ação contra uma retomada do povo pataxó – a área ocupada já foi delimitada pela Funai terra indígena, em processo também não finalizado.
“São as mesmas organizações que têm organizado o que eles chamam de segurança, nada mais é que pistolagem, porque em todos os casos são ações feitas com participação de policiais”, diz.
O defensor Gabriel Cesar também chama atenção para a ocorrência de vários episódios com um mesmo modus operandi, mesmo antes de 2023, quando o Invasão Zero foi oficializado.
“O que conecta os casos é a existência de um movimento de criminalização de indígenas tanto político quanto empresarial, como da mídia local, que provoca muita desinformação quanto à legitimidade desse movimento de demarcação”, diz. Ele ressalta também a participação de policiais militares nos episódios.
“A ideia deles é expulsar os indígenas até das áreas demarcadas. E são fortemente armados, têm até policiais milicianos no meio”, diz o cacique Nailton.
Mesmo com os ataques, ele afirma que as retomadas não vão parar. “Se morrer o cacique Nailton, outros ficam para levar o trabalho pra frente”, finaliza.
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Deputado federal Luciano Zucco (PL/RS), ao centro, recebeu os líderes do Invasão Zero, Dida Souza e Luiz Uaquim (à direita) em 2023 na Câmara (Foto: Reprodução/Instagram)