Ferrogrão: uma queda de braço entre multinacionais e povos da floresta

Lideranças indígenas Kayapó Mekrãgnotí e Munduruku do Alto Tapajós relatam os impactos e a violação de direitos como a falta de consulta prévia, livre e informada

Daniela Pantoja, Le Monde Diplomatique Brasil

A luta dos povos originários da Amazônia não é de hoje. A caminhada para garantir a manutenção da vida, cultura e ancestralidade é diária, e isso requer muita resistência. Afinal, os povos indígenas lutam não somente pelo território, mas também pelo não apagamento de suas histórias.

E um novo projeto previsto para a Amazônia tem tirado o sono e deixado algumas lideranças indígenas alertas. Isso porque o novo empreendimento vai implicar em mais pressão sob seus territórios, além de desmatamento, impactos na caça e pesca e, portanto, na segurança alimentar dessas famílias.

O projeto citado é o da Ferrogrão (EF-170), um empreendimento ferroviário planejado para consolidar um corredor de exportação de soja e outros grãos do agronegócio entre o norte do estado do Mato Grosso até os portos fluviais de Miritituba, distrito de Itaituba no estado do Pará, às margens do Rio Tapajós.

De acordo com Brent Millikan, membro da Secretaria Executiva do Grupo de Trabalho (GT) Infraestrutura e Justiça Socioambiental, os estudos para a Ferrogrão começaram em 2016, encomendados por um consórcio de grandes empresas. “São um grupo de tradings do agronegócio (Cargill, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi) que contrataram as empresas de consultoria Estação da Luz Participações e DLP para estruturar um projeto técnico e facilitar negociações com o governo federal. Ainda em setembro de 2016, durante o governo Temer, o projeto já estava inserido no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) prevendo uma parceria entre o setor público e grupos empresariais, e já naquela época sendo tratado como empreendimento prioritário, mesmo com a viabilidade ambiental, social e econômica questionáveis”, ressalta Brent.

A obra irá integrar o chamado Arco Norte, que também inclui, através do Rio Madeira e Tocantins, corredores de exportação, e é a “menina dos olhos” de grupos do agronegócio que pressionaram e continuam pressionando pela Ferrogrão.

O projeto está incluído no Plano Nacional de Logística (PNL 2035) e no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em agosto de 2023 e prevê a implantação de uma ferrovia de 933 quilômetros e teria uma capacidade prevista de transportar até 52 milhões de toneladas, de commodities agrícolas por ano. “Existe a previsão de apoio para a realização de estudos para a viabilização do empreendimento. A previsão é que a construção e a operação da Ferrogrão sejam concedidas pela Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), para um empreendedor privado, pelo período de 69 anos. A construção deve durar nove anos”.

Os interessados no empreendimento defendem que projeto tem a vantagem de aliviar as condições de transporte na Rodovia BR-163, diminuindo o fluxo de caminhões pesados, o que reduziria as emissões de gás de efeito estufa, queima de combustíveis fósseis, e que isso seria uma justificativa para o empreendimento ser habilitado para receber incentivos econômicos, a exemplo de títulos verdes do mercado e empréstimos bancários a taxas de juros reduzidos.
“Não fomos consultados e seremos impactados”

Mudjere Kayapó, liderança da Terra Indígena Baú do território Kayapó Mekrãgnotí, situada no oeste do bloco de TIs Kayapó, ao norte do Mato Grosso e sul do Pará, e que também é relações públicas do Instituto Kabu, relata que o projeto Ferrogão vai impactar de todas as formas possíveis os povos que ali vivem. As obras trarão pessoas circulando perto do território, aumento de grilagem de terras, sem contar o impacto no meio ambiente e nas culturas dos povos e comunidades tradicionais.

Sobre o processo de consulta, Mudjere destaca que até o momento os indígenas não foram consultados pelo governo e que a ANTT está usando um documento de uma ata, alegando que os povos indígenas foram consultados, o que de fato não aconteceu. “A ANTT e o pessoal do governo estão usando um documento de uma reunião que foi realizada em 2017, e eles estão dizendo que esse documento já é um tipo de consulta, que não é verdade. Então nós estamos querendo sentar com a empresa e conversar. Porque a gente não é contra o desenvolvimento, mas o nosso direito está sendo violado, e é isso que a gente é contra, pois não fomos consultados”, reforça Mudjere.

No território indígena Munduruku do Alto Tapajós, a situação é a mesma, de acordo com Edivaldo Poxo Munduruku, coordenador da Organização dos Educadores Indígenas Munduruku do Alto Tapajós. Os indígenas nunca foram consultados quanto a esse projeto, e as informações que chegam até eles são através de organizações parceiras. “Até o presente momento, o povo Munduruku, nunca foi consultado. A gente é informado já através das organizações e parceiros. Ficamos sabendo de última hora sobre o leilão da Ferrogão. E a gente repudia toda a decisão do governo, porque isso é uma falta de responsabilidade, de compromisso e de respeito com a população Munduruku”, ressalta Edivaldo Poxo Munduruku.

Para além das lideranças indígenas, as organizações da sociedade civil organizada, movimentos e coletivos também acompanham a discussão sobre a implementação do projeto Ferrogrão e apoiam a luta pela garantia e soberania dos povos das águas, das florestas, dos campos e cidades.

Em dezembro do ano passado, o GT Infraestrutura e Justiça Socioambiental enviou uma carta ao grupo de trabalho criado pelo Ministério dos Transportes para analisar a viabilidade econômica e socioambiental do projeto da Ferrogrão (EF-170).

O documento alerta para a falta de respeito dos empreendedores da Ferrogrão com o direito dos povos indígenas e outras populações tradicionais mediante a processos de consulta livre, prévia e informada, que levam em conta os protocolos de consulta, antes da tomada de decisões políticas que afetem seus territórios e direitos.

Imagem: Indígenas do povo Kayapó protestando pelo direito de consulta na concessão da Ferrogrão em 2020 (Fernando Sousa/Instituto Kabu)

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