Responsável por aquecer e manter aceso o fogo da alma de cada Kaiowá, agora a Casa de Reza resta deitada, em cenário parecido com o de um campo de batalha que atingiu diretamente o coração do povo e do território
O que queima quando se queima uma Casa de Reza?
A cena em si já é de fazer chorar toda e qualquer pessoa dotada de mínima sensibilidade.
Casas-Seres de proporções tão majestosas e de importância física e espiritual únicas, ardendo em chamas, por vezes em plena luz do dia.
Vão despencando seus pedaços sagrados, em meio a estalos e labaredas. É a própria simbologia de um povo repleto de espiritualidade, que perece e resiste a um processo de desterramento e genocídio.
Em minutos tudo vira cinza: os muitos dias de trabalho. Sol, sal, suor. O empenho dos trabalhadores indígenas – quase todos arquitetos e artistas anônimos, edificadores do imensurável.
É um golpe fatal a algo que, apesar de tão grande e imponente, denota maior paz do que poder.
Os ecos dos sorrisos e risos, ofertados por todos, das crianças aos anciões, que dentro e no entorno destas ” geradoras de Bem Viver” por dias festejaram, rezaram, conectaram-se aos Xirus – ponto que liga a terra aos encantados. Se ouvirmos com atenção, estes ecos misticamente permanecem audíveis junto ao que não é mais.
O fogo consome rápido as palhas e capins que foram gentilmente trançados e meticulosamente dispostos para unificar morada e natureza em uma grande casa comum.
Desaba a métrica precisa, desenhada por sabedoria não escrita, expressa em cada linha, caibro, pilar. É um golpe fatal a algo que, apesar de tão grande e imponente, denota maior paz do que poder.
O fogo parece ter pressa de tombar a nível do solo estas “catedrais” originárias. Tombam como tombam as árvores, como tomba tudo que contrasta com os campos desertos e agressivos do agronegócio, invasor voraz dos territórios – que geralmente são avistados no horizonte por detrás das próprias Casa de Reza, lembrando os Kaiowá permanentemente de seu cerco, calvário e realidade.
Mas a maior dor repousa no fato de que se queimam as palavras. Ao invés de queimarem gentilmente nas rodas de fogo, nas noites de festa, ardem e jazem em chamas hostis. Se vão com o incêndio todas as palavras que foram cantadas e rezadas ao som eterno e ancestral dos Mbaraka e dos Takuapy.
Já não educa mais a maior das professoras-escolas, já que as Oga Pissy – como os Guarani e Kaiowá as chamam – são espaços fundamentais de educação, transmissão da cultura e ensinamentos.
Já não fala mais a Casa contadora de histórias. E que histórias! Tão antigas e intrigantes como o Mundo. As rezas-canto, libertadoras e mágicas, repousavam por décadas (ou tempo imemorial) em cada centímetro cúbico desta morada de espíritos e encantados. Por vezes, são estas Casas o único alento capaz de dar a um povo tão machucado o mais íntimo sentimento de proteção.
Tudo isso – e tão mais que talvez nunca saibamos o quanto – perde-se com as chamas.
Responsável por aquecer e manter aceso o fogo da alma de cada Kaiowá, agora resta deitada, em cenário parecido com o de um campo de batalha que atingiu diretamente o coração do povo e do território.
“Já não fala mais a Casa contadora de histórias”
No caminho de Tupa’í , mais uma vez levantaremos
No dia 22 de fevereiro de 2024, ainda antes do sol deixar de iluminar o dia, uma grande Oga Pissy (casa de reza) circular sucumbiu em chamas no território retomado de Kunumi Verá, em Caarapó, Mato Grosso do Sul. Mais uma a se somar a pelo menos outras 16 destruídas nos últimos quatro anos.
Em meio às lágrimas, um desabafo: “Violaram novamente o sonho de Marçal, mas no caminho de Tupa’í mais uma vez levantaremos”. Com essa frase, Simão Kaiowá – responsável pela construção da Casa – limpou o rosto e pouco a pouco foi afastando as dores, recompondo a postura de luta.
A casa havia sido construída pela comunidade de Kunumi em setembro de 2023 para abrigar uma grande assembleia – Aty Guasu – que teve como motivação os 40 anos do assassinato de Marçal de Souza Tupa’í, mártir e bandeira eterna na marcha dos povos Guarani e Kaiowá na luta por direitos em especial de reconquista de seus territórios ancestrais.
Simão lembra da motivação: “Erguemos esta casa em memória de Marçal. Para que fosse como o corpo dele, o sonho dele. Erguemos em um território que bebeu em 2016 – no Massacre de Caarapó – o sangue de Clodiodi e feriu tantos de nós. Erguemos para os jovens crescerem no nosso caminho, aprendendo a nossa reza, o nosso modo de ser e para que vivam os caminhos do nosso povo. Assim sonhou Marçal, assim continuamos sonhando. Marçal falou com o Papa nos anos 80, e em 2023 o Papa Francisco mandou uma carta ao nosso povo, reconhecendo que a dor e o genocídio denunciado por Marçal ainda nos castiga hoje – é só ver a casa queimando para ver que isso é verdade. Essa casa era para ser abrigo de nossos rezadores e sede de nossos encontros da Aty Guasu.”
“Assim sonhou Marçal, assim continuamos sonhando”
A mão humana que ateou o fogo é de alguém cujo rosto e identidade provavelmente seguirão desconhecidos – seja ele indígena ou “Karai”. Mas a mão desumana que tem puxado gatilhos, violentado corpos e causado morte e destruição em meio ao povo Guarani e Kaiowá, seja nos tempos de Marçal ou nos dias atuais, possui um rosto inconfundível. O rosto rude e com ares de maldade do agronegócio.
Trator voraz que a tudo derruba, manifestação visceral do Capital no campo, o agronegócio e seus males associados tem causado contra os povos Guarani e Kaiowá uma verdadeira devastação – com níveis de genocídio. Os números de agressões contra indígenas e seu patrimônio cultural e espiritual, bem como a seus territórios e contra a natureza, seguem aumentando vertiginosamente. Violências que têm sido assistidas de camarote, ocorrido sem pudor e aos olhos de todos e que, há pelo menos uma década, contam ora com conivência, ora com participação dos Governos e do Estado.
Sem conseguir tudo o que almejavam através dos ataques paramilitares e com o avanço de instrumentos de lei no Congresso, ou até mesmo sem ter êxito na validação da tese do marco temporal, líderes do agronegócio, ministros e parlamentares ligados a temática agrária promoveram forte incentivo aos processos de arrendamento e parcerias. No Mato Grosso do Sul, em especial em relação ao povo Kaiowá, estas práticas estabeleceram-se como um problema generalizado com o fortalecimento da Bancada do Boi no Congresso, em especial pós 2014.
Os incêndios ocorreram de forma sistemática e criminosa em pelo menos 10 territórios Guarani e Kaiowá
Na maioria dos casos, o ataque é direto. Grande parte das Casas de Reza no estado são queimadas e/ou destruídas pelos representantes expressos do agro. Fazendeiros, sindicalistas rurais (patronais) ou jagunços atacam as Casas com claro intuito geopolítico de enfraquecer o povo em sua luta territorial. Há séculos são estes os espaços responsáveis pelo fortalecimento da cultura e do modo de vida dos Guarani e Kaiowá. As Oga Pissy também estão ligadas diretamente às boas práticas do território, como as festas, as roças e a expansão geográfica tradicional, que acaba por se chocar com o latifúndio e com a monocultura gerenciados por aqueles que seguem, a despeito do reconhecimento de muitas terras indígenas, avançando com a invasão e o esbulho.
Tornando o cenário muito mais complexo, existem ainda casos onde os ataques a este patrimônio espiritual acontecem a partir dos efeitos do agronegócio no interior das aldeias, sem que seus agentes precisem de envolvimento primário. É sensível a percepção do aumento de casos de violência vinculadas às práticas de arrendamento, por exemplo. Dependentes do recurso dos arrendatários, os indígenas envolvidos acabam tornando-se uma espécie de para-choque do agro em âmbito local, ameaçando e perseguindo lideranças – em especial rezadores, que se opõem às más práticas e lutam pelo processo de demarcação e autonomia em moldes originários.
Outra dimensão complexa do problema são as igrejas neopentecostais. Estas instituições há muito estão instaladas dentro das aldeias, em especial nas reservas criadas pelo já extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), mas é na última década – e não à toa coincidente com o fortalecimento do agronegócio no congresso – que parte delas e de seus pastores aderiram a posturas muito mais agressivas e intolerantes. Seus principais alvos: os Nhanderu e Nhandecy, rezadores e rezadoras, guardiões das Casas de Reza.
O abraço entre as práticas de interiorização do Capital (arrendamento) e a teologia da prosperidade (altamente intolerante) produzem, em especial contra os líderes espirituais Guarani e Kaiowá, mecanismos perigosos em uma realidade em que estes podem sofrer violência e vir a serem assassinados a qualquer momento, por quase qualquer motivação.
Entre janeiro de 2020 e fevereiro de 2024 pelo menos 16 grandes Casas de Reza foram incendiadas. Os incêndios ocorreram de forma sistemática e criminosa em pelo menos 10 territórios Guarani e Kaiowá. Neste mesmo período, a vida de muitas rezadoras e rezadores foram ceifadas, alguns em condições e circunstâncias bárbaras. O cenário indica alerta para o Etnocídio e para a perseguição expressa à espiritualidade e à cultura destes povos.
No mais profundo dos sentidos, os Guarani e Kaiowá sentem dor pela morte da própria Casa de Reza
Para os Guarani e Kaiowá são muitas as dores destes crimes. No sentido patrimonial, em alguns casos se perderam junto com as Casas artefatos seculares do povo. Instrumentos musicais, Mbarakas sagrados, Kurusus, apykas. Itens mágicos protegidos por rezadores e guardiões ao longo do tempo, que protegiam os destinos e garantiam a harmonia do mundo.
No sentido educacional, o desamparo das crianças e jovens que são assolados em muitos casos pelo fantasma do suicídio – entre os Guarani e Kaiowá o problema supera largamente o índice nacional. A Casa de Reza, diferente de outros templos, para além da dimensão que compreendemos como religiosa possui o caráter mais intimo e profundo das práticas educacionais e de transmissão de conhecimento de todo o povo.
No mais profundo dos sentidos, os Guarani e Kaiowá sentem dor pela morte da própria Casa de Reza. As Oga Pissy não são objetos e estão longe de serem inanimados. A Casa tem vida e junto à ela habitam e umbilicalicam-se inúmeras entidades e encantados fundamentais para a manutenção da Vida e da paz no território. Sem estes espaços, os Jara (protetores) vão embora. Problemas, doenças, catástrofes e infortúnios são os novos vizinhos que erguem moradias no seu lugar.
Os filhos e filhas de Nhanderu prometem persistência teimosa e incondicional junto a seus territórios
Frente a tamanha dor de um povo há muito castigado, a resposta dos Guarani e Kaiowá é inacreditável. Incansáveis, apesar dos danos irreparáveis, da intolerância e da perseguição, os filhos e filhas de Nhanderu prometem persistência teimosa e incondicional junto a seus territórios.
Em Kunumi Verá, assim como em cada aldeia atacada, planeja-se o reerguimento da Casa-Mãe. Em mutirão, com força e determinação, o Sagrado haverá de ver um novo sol. Luz que lhe aqueça e não machuque.
O Xiru continuará sendo pilar inequívoco de sustentação para a Terra sem Males. A Oga Pissy de Kunumi fará como fez Marçal, pois o banguela dos lábios de mel não conheceu a morte. Apesar da morte física, vive e seguirá vivendo na luta que não cessa. Seu nome vai sendo aprendido, proferido e rezado por inúmeros jovens, por toda uma nova geração. A cada ano, junto às Casas de Reza que resistirão ao lado dos rezadores, se postam novos yvyraijá (aprendizes). Eles farão a defesa destas moradas-mundo com seus Mbaraka e com seus próprios corpos. Irão reergue-las quantas vezes for necessário assim como o próprio povo Guarani e Kaiowá se reergue após cada massacre.
Neste caminho, de Marçal e do povo Guarani, de marcha, de sonho e de reza, não há fogo que impeça as Oga Pissy de iluminarem um caminho que já está escrito. É o sendeiro que leva um povo livre a uma terra livre e feliz.
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Queima da Casa de Reza Guarani e Kaiowá da retomada Kunumi Verá, no município de Caarapó (MS). Foto: Aty Guasu