É difícil combinar o Lula que fez a denúncia tão corajosa do genocídio do povo palestino e o Lula que parece ter pânico de melindrar os generais de seu próprio país.
Sua declaração sobre o golpe de 1964 – de que se trata algo que pertence exclusivamente ao passado e sobre o qual não vale mais a pena falar – é absolutamente irresponsável com a tarefa, que ele tem, de restaurar as condições para a retomada democrática no Brasil.
Lula disse que está mais preocupado com a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023 do que com o golpe bem-sucedido de março e abril de 1964. Parece, por sua fala, que não há nenhuma relação entre um e outro.
Parece que a falta de enfrentamento das consequências da ditadura e, em particular, a falta de punição para todos os responsáveis pelos crimes nela cometidos não estão entre os fatores principais da debilidade da democracia no Brasil. Parece que aqueles que estavam dispostos a golpear novamente a Constituição e perpetuar Bolsonaro no poder não se inspiravam na ditadura que vivemos entre 1964 e 1985.
Lula diz que os generais de hoje não são os generais que deram o golpe em 1964. Diz que eles não eram nem nascidos então, o que é um certo exagero, mas tudo bem, eram crianças. Não passavam de oficiais de baixa patente ao final da ditadura.
Mas o que ele faz questão de não dizer é que, embora os generais sejam outros, a mentalidade militar é a mesma.
Décadas se passaram desde o retorno dos civis ao poder, décadas da vigência de uma constituição formalmente democrática, mas nada se fez para adaptar a corporação militar seja à convivência na democracia, seja ao primado do poder civil.
Os chefes militares brasileiros de hoje não participaram do golpe. Mas são incapazes de fazer a autocrítica institucional. Continuam cultuando torturadores e julgando que sua intervenção ilegítima no jogo político é justificável por um motivo ou por outro.
Muitos deles não quiseram embarcar na aventura que o bolsonarismo lhes propôs (nem por isso combateram ativamente a conspiração golpista). Na verdade, tendo ou não simpatizado com o plano arquitetado por Bolsonaro, por Braga Neto e por Heleno, nenhum deles abre mão de continuar controlando os recursos de poder que lhes garantem a possibilidade de manter o sistema político brasileiro sob permanente chantagem fardada.
Não é só ideologia, a vontade de manter o Brasil livre da “ameaça comunista”, seja lá o que isso for. É o que lhes garante benesses imorais – impunidade para seus crimes, vantagens financeiras extravagantes, oportunidades para corrupção, mordomias, a absoluta falta de qualquer exigência de mínima competência profissional.
A desmoralização profunda das Forças Armadas, por seu envolvimento nas lambanças bolsonaristas, abre a chance de agir – punir golpistas e corruptos, mexer na formação, reafirmar valores básicos (como o que diz que militares não se metem em política), reforçar o poder civil. Infelizmente, viciado em apaziguar, capitular e recuar, o governo desperdiça a oportunidade.
Ao contrário do que disse o presidente, é absolutamente necessário lembrar do golpe e da ditadura. Seria necessário mesmo que fossem passado, pois temos que aprender com a história.
Mas nem passado são.
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Ilustração: Latuff