O que está acontecendo com os rios da Amazônia

Inundações no Acre, seca extrema em Roraima e rios com vazão abaixo da média em estação chuvosa indicam colapso que região pode vivenciar com mais frequência devido ao aquecimento global.

Nádia Pontes, Deutsche Welle

Às margens do rio Negro, famílias pescadoras aguardam a água alcançar a altura costumeira para lançarem as redes. Março era o mês em que tradicionalmente elas saiam atrás dos cardumes. Em 2024, depois da seca histórica na Amazônia que atrasou o período das chuvas, a atividade comunitária que sustenta diversos moradores deve começar só em meados de abril.

“O rio ainda está muito baixo aqui no nosso trecho. A gente, que vive desta cadeia, fica na expectativa e não sabe a quantidade de peixe que vai encontrar”, conta Janderson Mendonça, da comunidade Santa Helena dos Ingleses, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Rio Negro, no Amazonas.

A mais de 2.000 quilômetros dali, os ribeirinhos da região conhecida como Volta Grande do Xingu, no Pará, se preocupam com o nível do rio abaixo da média. No local está a usina hidrelétrica de Belo Monte, onde cerca de 10% a menos de água fluiu pelo canal nos primeiros dias de março em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo dados da própria operadora.

“Quando a hidrelétrica fecha as comportas e represa a água mais tempo, a parte de baixo do Xingu fica numa situação crítica. A gente vê matança de peixe. Não tem mais como sobreviver da pesca”, afirma Maria Francineide Ferreira, uma das líderes do Conselho Ribeirinho, que reúne cerca de 3.000 pescadores na região.

Em Rondônia, a seca histórica do rio Madeira ainda afeta drasticamente povos indígenas, narra Benjamim Oro Nao, da Terra Indígena Pacaás-Novas. “Não conseguimos sair da aldeia para escoar nossos produtos, que são farinha, banana, feijão. Tudo o que a gente planta, morre. A chuva não veio no tempo certo, está muito seco ainda”, relata.

O cenário é monitorado pelo Sistema de Alerta Hidrológico do Serviço Geológico do Brasil (SGB). Em 2023, o Madeira atingiu a sua marca mínima histórica, 1,1 metro – e não se recuperou. O recorde anterior era de 2022 (1,4 metro). “O Madeira está muito abaixo da média em pleno fim do período chuvoso. É muito preocupante. São esperados problemas sérios com a chegada do período seco, principalmente para navegação”, avalia Artur Matos, coordenador do sistema do SGB.

Rios não se recuperam

Em outubro de 2023, as imagens de rios amazônicos sem água chocaram o mundo. O período mais seco que o normal era aguardado por conta do fenômeno El Niño, caracterizado pelo aumento da temperatura no Oceano Pacífico. Mas sua intensidade surpreendeu a comunidade científica. Paralelamente, o aquecimento das águas do Atlântico tropical prejudicou ainda mais a formação de nuvens e de chuvas na região.

Adriana Cuartas, pesquisadora do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), foi a primeira a perceber, por meio de análise de dados de satélites, que o fenômeno encontrou a Amazônia brasileira já afetada por chuvas abaixo da média nas cabeceiras que estão fora do país. “O El Nino continua, então espera-se que as chuvas sigam ainda abaixo da média. A bacia, como um todo, está sob o efeito deste fenômeno meteorológico”, resume.

Por conta do atraso da estação chuvosa, o volume de água de rios amazônicos, como Branco, em Roraima; Tapajós, no Pará; e Solimões, no Amazonas, está abaixo da média para o período, aponta o monitoramento do SGB.

“Os períodos de chuva são diferentes em alguns locais. Mas a situação não é normal, é muito atípica. Tem vários pontos de algumas bacias que estão bem abaixo da média, com é o caso do Branco e do Madeira”, pontua Matos.

Em Roraima, cortada pelo rio Branco, a seca agrava as queimadas, que atingiram nível recorde em fevereiro. Na capital, Boa Vista, o nível do rio chegou a um negativo de -0,15 metros.

“Os menores índices de vazão do rio Branco foram observados em ano de El Niño. À medida que a temperatura global tem aumentado, observamos que cada El Niño tem efeito mais forte sobre a dinâmica hidrológica”, afirma Carlos Sander, professor no Departamento de Geografia da Universidade Federal de Roraima (UFRR), ressaltando que a intensidade do impacto aumenta a partir da década de 1990.

Enquanto isso, enchente no Acre

O rio Acre foi de um extremo ao outro em pouco tempo. A seca registrada em novembro passado foi superada por um transbordamento: a água subiu mais de 17 metros acima do leito, deixou cidades alagadas e milhares de desalojados. É a segunda maior cheia já registrada, atrás do recorde de 2015.

Em Xapuri, a casa histórica onde Chico Mendes morou e foi assassinado foi atingida. A construção havia sido reaberta há poucos meses depois de uma reforma devido a um período de abandono e de efeitos de uma cheia. “O patrimônio não é só a casa, mas o endereço físico para onde as pessoas vão quando querem reverenciar a memória de Chico Mendes, que morreu em defesa da Amazônia. O estado todo precisa pensar em como se preparar para esta realidade dos extremos climáticos”, comenta Ângela Mendes, filha mais velha do ambientalista.

A chuva intensa no Acre, que atingiu também cidades andinas, pode ser justificada pela Oscilação de Madden-Julian (MJO, na sigla em inglês), explica Tércio Ambrizzi, professor do Instituto de Geociência da Universidade de São Paulo (USP). O fenômeno é conhecido desde a década de 1970 e funciona como uma grande onda de propagação de chuvas tropicais – ora intensificadas, ora reprimidas.

“É como se existisse um pulso que gera uma nuvem convectiva no Oceano Índico e se propaga na região equatorial, de oeste para leste. Ele dá a volta ao mundo em torno de 50 dias e desaparece na África”, explica Ambrizzi.

O problema foi que esta oscilação encontrou águas mais quentes que o normal no Pacífico, devido ao El Ninõ, e no Atlântico. Ela ganhou mais força, perturbou as circulações e provocou chuvas recordes.

Extremos amazônicos no planeta mais quentes

O aumento da temperatura média do planeta tem tudo a ver com o que está acontecendo na Amazônia, afirmam cientistas ouvidos pela DW. “Estamos observando que o calor extra que está na atmosfera está sendo absorvido pelos oceanos. Isso aumenta a evaporação de água e o transporte de umidade, o que tem influência muito grande sobre as chuvas nos continentes”, diz Ambrizzi.

Uma das consequências, ressalta o climatologista Carlos Nobre, é que fenômenos naturais que ocorrem no globo há milhares de anos estão ficando mais intensos. “O El Niño sempre aconteceu, mas os registros dos mais fortes foram em 2015-2016, e agora 2023-2024. Aparentemente, a MJO também tem ficado mais forte”, diz Nobre.

Com mais água sendo evaporada pelos oceanos, a quantidade de chuva em todo o globo deve aumentar em alguns pontos, prevê a ciência. Por outro lado, o aquecimento global reduz o volume de chuva em outros locais.

“A Amazônia é um dos locais com redução das chuvas com o aquecimento global. O aumento da estação seca já está acontecendo, são cerca de quatro a cinco semanas mais longas em relação aos últimos 40 anos, e está mais quente. O risco do tipping point é enorme”, alerta Nobre.

Imagem: Rio Solimões virou deserto após seca histórica do ano passado – Foto: Edmar Barros/AP/picture alliance

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