Desafios na luta contra a Discriminação Racial em um mundo pós-Apartheid

Por Marcelo Moreira, no plurale

Neste 21 de março se comemora o Dia de Luta Contra a Discriminação Racial. A data foi escolhida pelas Nações Unidas, nos anos 60, em memória a um massacre de negros que aconteceu em pleno regime do Apartheid, em Johanesburgo, na África do Sul. Eles protestavam contra a Lei do Passe, que exigia que todo homem negro andasse com uma carteirinha que dizia onde eles poderiam ir ou não.

Embora o Apartheid seja até hoje lembrado como um dos mais cruéis regimes de discriminação racial no planeta, muita gente não sabe que este conjunto de leis foi inspirado ironicamente em solo considerado berço da Democracia: os Estados Unidos da América. Foi em terras americanas que a sociedade branca decidiu criar um sistema que embora livres, mantivesse os negros distantes de direitos que a própria Constituição americana dizia que era para todos. Todos, desde que a cor da pele não fosse escura. Era como se fosse a escravatura, mas com outro nome.

Este regime começou logo após a Guerra Civil. Entre os anos de 1877 até 1965 foi criado um sistema de leis que promovia a discriminação racial em locais públicos. Brancos eram considerados superiores em praticamente todos os níveis possíveis. Negros não tinha direito ao voto, não podiam sentar nos bancos da frente dos ônibus e não podiam comer em restaurantes que fossem destinados aos brancos. Até os bebedouros eram separados.

Este sistema de leis, batizado de Jim Crow, foi derrubado depois de muita luta e graças ao trabalho de lideranças negras como Martin Luther King, Joe Lewis e tantos outros que deram suas vidas para que hoje negros possas matar a sede nos mesmos bebedouros, compartilhar as mesmas salas de aulas e pelo menos, diante do texto frio da lei, sejam tratados como iguais aos brancos.

Apesar de avanços conquistados ao longo de décadas, ainda há muito retrocesso e uma longa reparação a ser feita. Por isso é importante a celebração do dia de combate à discriminação racial. Seja nos guetos das favelas sul-africanas, nos bairros pobres de maioria negra nas cidades americanas ou nas favelas do Rio de Janeiro é fácil saber que a população negra trazida escravizada da África ainda vive realidades bem desiguais do restante da sociedade.

Tribunal Racial nas Universidades

No Brasil um caso recente e emblemático foi o do jovem Alison Rodrigues, de 18 anos que depois de conseguir passar no curso de Medicina da USP, um dos mais difíceis do país, teve a vaga negada por um tribunal na universidade que tem por missão decidir quem é branco e quem é negro, e por isso, ter direito ao acesso pelo sistema de cotas da universidade.

No Brasil, de acordo com o que define o IBGE, são considerados negros todos os pardos e pretos. Juntos, são 56% da população brasileira. As pessoas são definidas em cada grupo étnico por auto declaração. O jovem que teve a vaga negada na USP é filho de pai negro e mãe branca. Toda vida ele se achou pardo. Mas quando foi tentar a vaga na universidade ele entrou pardo e saiu branco. A instrução do manual do IBGE diz que pardo é justamente “a mistura de duas ou mais opções de cor ou raça, incluindo branca, preta, parda e indígena”. Era o caso do Alison, mas os representantes do tribunal da USP não pensaram assim.

Essa questão racial no acesso às universidades também é polêmica nos Estados Unidos. As comparações com o Brasil no tema da escravidão são relevantes porque ambas as sociedades são parecidas na discriminação aos negros. E um estudo profundo sobre o que acontece com nossos irmãos mais abastados na linha de cima do Equador nos servem muito para pensar no que acontece no Brasil e como podemos trabalhar para combater o racismo e a discriminação em geral.

Cegueira da cor

No início deste mês, a premiada jornalista Nikole Hannah Jones, escreveu para a revista do New York Times um artigo cujo título era “The Colorblindness Trap” ou “A armadilha da cegueira da cor” numa tradução literal. Nikole descreve como um movimento conservador se apropriou do discurso antirracista que deu origem às ações afirmativas raciais americanas para dizer que de fato elas são anticonstitucionais porque discriminam brancos ao reservar vagas para negros.

A jornalista lembra que esse movimento não é recente. Na verdade, ele começa desde a criação da primeira lei de ação afirmativa assinada pelo presidente Johh Kennedy em 1961. Em junho do ano passado uma decisão da Suprema Corte americana, o STF deles, colocou mais lenha na fogueira. Ações afirmativas foram consideradas inconstitucionais nas universidades de Harvard e da Carolina do Norte.

Essa decisão está sendo usada por conservadores para atacar programas de justiça racial até mesmo fora do campo da educação. Eles estão processando a cota de diversidade em escritórios de advocacia, mesmo que os negros sejam apenas 5% dos advogados americanos. Estão enviando cartas para escolas de medicina dizendo que se forem aplicadas cotas raciais para o ingresso de estudantes eles serão processados.

E vejam só até que ponto chegou a situação americana. Até mesmo a Universidade Howard, historicamente negra, recebeu ameaças de processo por parte de conservadores caso aplicasse leis de cotas raciais no ingresso de alunos em sua escola de medicina.

O movimento conservador está, na maior cara de pau sequestrando e invertendo a seu favor um ideal do movimento pelos direitos civis. Na visão dos que lutaram contra o racismo nos anos 60 o objetivo é de que a sociedade chegue a um ponto onde não se deve olhar para a cor das pessoas para escolher quem merece emprego ou vaga na escola. Mas primeiro, devido aos anos de desvantagem provocada pela escravização, devem ser criadas sim políticas explicitas para ajudar os negros. Até que se chegue a um ponto de equilíbrio onde essas políticas não sejam necessárias.

Infelizmente na visão dos conservadores este discurso _ omitindo a parte onde são necessárias as políticas de ações afirmativas _ leva em consideração apenas que, por essa lógica de que se fechar os olhos em relação a cor das pessoas, é inconstitucional criar programas onde negros tem direito a cotas. E por isso elas não podem existir.

Aqui no Brasil esse movimento ainda não chegou. Pelo contrário, uma decisão judicial do inicio deste mês garantiu o direito à matricula na USP um outro aluno que havia sido barrado na comissão de heteroidentificação. Aprovado em curso de Engenharia de Produção como cotista o candidato não ingressou na universidade por não apresentar, segundo a banca, critérios que o classificassem como pardo. A decisão foi em caráter liminar e ainda cabe recurso da USP. Ou seja, essa novela dos tribunais raciais está longe de acabar e vamos ver pessoas usando os argumentos do que vem acontecendo nos Estados Unidos para tentar derrubar aqui ações afirmativas que levamos anos para conquistar.

Vez por outra vamos continuar assistindo a episódios assim, que não de outra maneira, só podem ser enxergados como discriminação. A sociedade dos nossos tempos vive orbitando entre polos. Esse olhar dividido faz com que uma parte entenda a importância da diversidade, como uma forma de alcance do equilíbrio social. Até existe nome para isso. O woke ou wokismo. Woke é o significado da palavra woke, passado do verbo Wake, que significa acordar. O uso do woke surgiu nos Estados Unidos e queria defender um estado de alerta pela justiça racial. E com o movimento woke surgiu também o seu equivalente no polo invertido, ou seja o antiwokismo. Estes acham que esse movimento pela diversidade é errado, visto com desaprovação e que não se deve fazer nenhuma mudança.

É preciso reconhecer que a discriminação racial persiste em diversas formas e contextos, mas é através da promoção da inclusão e do reconhecimento da diversidade que podemos construir um futuro mais justo para todos. Devemos continuar a lutar contra todas as formas de discriminação e trabalhar em direção a uma sociedade onde a igualdade de oportunidades e o respeito à diversidade sejam valores fundamentais e inegociáveis.

Arte: ascom MPF/PA

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