60 anos do golpe no Brasil: lembrar é combater. Por Lucas Nicolau*

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Mais um 1º de abril se aproxima trazendo a necessidade de acertarmos as contas com nossa memória. Para aqueles que sofrem com as feridas do golpe, relembrar é quase um instinto moral, um reflexo. E por que falamos em memória? Para que cada um de nós possa se sentir herdeiro dessa história.

Afinal, o golpe de 1964 não apenas derrubou um presidente e seu gabinete, como também freou uma variedade de projetos populares que tinha como objetivo beneficiar os brasileiros da época e nós, seus filhos, netos e bisnetos. Era um projeto de país e de futuro que foi interrompido.

O que se seguiu ao golpe foi brutal. Repressão e perseguição política e social a todo tipo de divergência. Partidos proscritos, mentes exiladas, juventude calada e assassinada, corpos presos e torturados. Na economia, o castigo não foi mais brando, já que o aumento da exploração dos trabalhadores brasileiros em nome de um “desenvolvimentismo” não nos trouxe mais riqueza ou independência e, ao final, não “repartiu o bolo” e nos deixou uma dívida externa fatal.

A famosa “crise da dívida” dos anos 1980, que também atormentou alguns de nossos vizinhos sul-americanos, é filha do regime militar que, de certa maneira, pavimentou o caminho para que o discurso e a prática neoliberal reinassem nas décadas seguintes: contra o “estatismo” autoritário dos militares, o “privatismo” democrático dos liberais.

Já a Justiça foi substituída pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, o que trouxe grandes brasileiros de volta após anos amargos de exílio, mas deixou soltos alguns dos piores nomes que já pisaram no país.

No entanto, se compartilhamos momentos como a peculiar crise cambial e financeira da década de 80 com os argentinos, por exemplo, no quesito reparação e punição assumimos posturas muito diferentes. Na Argentina, os responsáveis pelos crimes de Estado que deixaram 30 mil pessoas mortas ou desaparecidas foram identificados, julgados e punidos por delitos de lesa humanidade. O ápice desse processo de cura social ocorreu no calor da redemocratização quando, em 1985, membros da junta militar que governou o país durante a ditadura argentina foram condenados a penas que iam de 4 anos à prisão perpétua.

Vale lembrar que os crimes cometidos pelo regime que governou a Argentina entre 1976 e 1982 não se restringiram apenas ao âmbito político e partidário: a política econômica dos militares, representada na figura do ministro Martínez de Hoz e sua receita neoliberal importada dos EUA, atirou o país em uma espiral de dívida, inflação e empobrecimento. Tal quadro foi brilhantemente exposto pelo jornalista argentino Rodolfo Walsh em sua “Carta Aberta à Junta Militar”, documento histórico no qual, além de chorar o assassinato de sua própria filha pelos repressores do regime, denuncia a perseguição política e os danos econômicos gerados pelo entreguismo dos militares.

Agora, 60 anos após o nosso golpe e 48 anos depois do golpe na Argentina, o povo brasileiro acaba de encerrar uma experiência neoliberal no país, enquanto os argentinos escolheram mais uma vez esse caminho. A derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022 representou o fracasso de uma política econômica entreguista e de uma visão nostálgica da ditadura. Visão essa que possui Javier Milei, recém-eleito para comandar o governo argentino até 2027.

Cortes de programas sociais, desvalorização do poder de comprainflação mais alta dos últimos 30 anos e demissões em massa de funcionários públicos: essas foram as marcas dos primeiros meses de Milei. Não fosse suficiente, o ultraliberal também quis atacar a história ao divulgar uma peça audiovisual que relativizava a repressão da ditadura e negava o número de mortos e desaparecidos.

Figuras como Bolsonaro e Milei encarnam e materializam o passado brutal que, por mais inacreditável que possa parecer, ainda está vivo. São as criações que nossos atos de memória devem combater. Nós, da imprensa, jornalistas latino-americanos, temos um papel a cumprir; como disse Walsh, temos o compromisso de “dar testemunho em momentos difíceis”.

Que sirva de algo no próximo 1º de abril.

Lucas Estanislau é Coordenador de Internacional do Brasil de Fato.

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