Ex-parlamentar do Partido Verde relata, em entrevista, a receita autoritária de Orbán. Além do controle das instituições, concessões pontuais à classe média e aos mais pobres e amplo apoio a fundações internacionais conservadoras
por Glauco Faria, em Outras Palavras
Após a revelação de que Jair Bolsonaro havia permanecido por dois dias na embaixada da Hungria no Brasil em fevereiro, o nome do primeiro-ministro do país, Viktor Orbán, passou a fazer parte do noticiário nacional. No poder desde 2010, ele foi o responsável por promover uma série de medidas autoritárias que minaram o regime democrático húngaro e que, ao mesmo tempo, fizeram dele uma espécie de referência para a extrema direita mundial.
Em 9 de março, por exemplo, ele encontrou o ex-presidente dos Estados Unidos e novamente candidato Donald Trump. O bilionário não poupou elogios ao colega europeu em um discurso feito na Flórida. “Não há ninguém melhor, mais inteligente ou melhor líder do que Viktor Orbán. Ele é fantástico”, celebrou, pontuando ainda que “se trata de “uma figura incontroversa porque disse: ‘É assim que vai ser’, e ponto final, certo? “Ele é o chefe e… ele é um grande líder, um líder fantástico. Na Europa e em todo o mundo, eles o respeitam”.
Trump, Bolsonaro e outros sonham com o modelo implementado por Orbán, no qual ele dominou o sistema de Justiça, submeteu a mídia e criou mecanismos que favorecem sua permanência no poder sob as vestes de um processo eleitoral programado para dar a vitória ao seu partido, o Fidesz. Mas, do ponto de vista internacional, ele também alcançou relevância por fazer um trabalho voltado para a propagação de seu ideário.
“Orbán fabrica consentimento investindo pesadamente em grupos de reflexão e fundações iliberais e em qualquer coisa que produza conteúdo cultural alinhado com o seu poder. Desde que se tornou uma persona non grata na Europa e nos EUA (sob Obama e Biden), percebeu a importância da organização internacional e do fortalecimento da contracultura iliberal”, explica o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown, no Catar, atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring. “Ele investe vastas somas no financiamento de uma rede internacional de institutos de pesquisa iliberais e convida novos pensadores de direita de todo o mundo para visitarem a Hungria. Se juntarmos tudo isto, temos uma figura que se destaca internacionalmente muito acima do que seria seu tamanho real.”
Em entrevista ao Outras Palavras, Scheiring, que também foi deputado pelo Partido Verde e chegou ao Parlamento em 2010, no início da era Orbán, fala sobre as semelhanças entre o primeiro-ministro húngaro e Bolsonaro, relembra como a escalada autoritária começou no país e comenta sobre o que a esquerda pode fazer para enfrentar a ameaça da extrema direita.
Você foi eleito deputado ao mesmo tempo em que começou o governo de Orbán. Durante o seu mandato, foi possível identificar em que momento ficou evidente que seria um governo autoritário? Ou foi um acúmulo de medidas?
Após alguns meses, ficou claro que Orbán não tinha interesse no parlamentarismo tradicional. O parlamento tornou-se uma máquina de carimbar e os deputados que representavam o partido de Orbán não tinham poder. O seu papel foi duplo: votaram e atacaram a oposição, mas nunca desafiaram a máquina centralizada do poder.
Após um ano, ficou claro que não só o parlamentarismo, mas também a democracia liberal estava em perigo. O governo subjugou o Tribunal Constitucional e desde cedo povoou a radiodifusão pública com pessoas leais a ele. Um ano e meio depois das eleições decisivas de 2010, Orbán reescreveu a lei eleitoral para dificultar muito o trabalho da oposição. Às vésperas do Natal, em 23 de dezembro de 2011, o parlamento estava em sessão, prestes a votar uma série de leis iliberais, incluindo a lei eleitoral, e nos acorrentamos ao edifício do parlamento, protestando contra o retrocesso democrático.
No seu artigo você destaca que, assim como Trump fez nos EUA, Orbán conquistou um grupo de trabalhadores que perderam renda e status com a globalização. Além do discurso, é possível ver iniciativas efetivas do atual governo húngaro para garantir o apoio a esses segmentos?
Certamente, os discursos populistas autoritários não são suficientes para estabilizar o iliberalismo no poder. Orbán e o seu partido foram mais inovadores do que a oposição no seu esforço para organizar uma grande parte da Hungria provincial que foi deixada para trás pela era de transição liberal. Muitas cidades que anteriormente eram redutos regionais da esquerda se tornaram gradualmente desiludidas com o funcionamento da economia. No entanto, a esquerda nunca prestou muita atenção a isto, nem na sua oferta política nem no esforço organizacional. Assim, Orbán e a direita radical Jobbik puderam se organizar em antigas cidades industriais e outras zonas da Hungria fora das cidades maiores e mais cosmopolitas.
Uma vez eleito, seu governo introduziu várias iniciativas destinadas a atrair os eleitores da classe média baixa e da classe trabalhadora. Um extenso programa de obras públicas e a limitação do preço da energia e dos combustíveis são algumas das iniciativas mais populares que se enquadram nesta estratégia. Na maioria dos casos, o design e a aparência eram mais importantes do que entregar uma solução real. No entanto, estas iniciativas funcionaram e permitiram que Orbán e o seu governo demonstrassem o quanto se importavam, em contraste com a oposição liberal de esquerda.
Que tipo de mudanças institucionais foram feitas na Hungria para garantir a permanência de Orbán no poder?
Desde que assumiu o cargo em 2010, Viktor Orbán conduziu a Hungria para se tornar o primeiro Estado não democrático da União Europeia, abraçando com orgulho o termo “Estado iliberal”. A cooptação de mecanismos democráticos é a marca do mandato de Orbán.
Um pilar fundamental do seu regime autoritário é a extensa rede de meios de comunicação de direita, que amplifica a narrativa do governo. O círculo de Orbán construiu um ambiente midiático conservador que domina o discurso público e apoia as agendas governamentais. Por meio da manipulação e da permissão do registo eleitoral fora do distrito, o Fidesz distorceu o processo eleitoral a seu favor.
Além disso, Orbán encheu o Ministério Público de aliados, protegendo as ações do governo do escrutínio. Um ataque significativo à independência judicial sob o seu governo garantiu que os vereditos estejam alinhados com os interesses governamentais. Em suma, ao corroer sutilmente a democracia a partir do seu interior, Orbán evita a opressão aberta ao mesmo tempo que sufoca a oposição, tornando difícil à dissidência encontrar o seu lugar num espaço democrático restrito.
No panorama político global, você vê Orbán como uma espécie de articulador da extrema direita global, já que se tornou um símbolo importante deste grupo político em vários países?
Concordo que Orban se tornou uma figura chave na extrema direita global. Primeiro, ele está no poder há mais tempo do que qualquer outro líder europeu. Fora da Europa, também é difícil encontrar líderes semelhantes com um período tão longo à frente do governo. Erdogan é o que mais se aproxima de Orbán em seu estilo político e estratégia de construção de hegemonia, e não é de admirar que os dois sejam melhores amigos, inspirando-se e aprendendo um com o outro. Em segundo lugar, o poder de Orbán está seguro, sem desafios internos significativos, e por isso tem se concentrado cada vez mais na política externa.
Terceiro, ele sabe que o poder estável exige hegemonia, que depende do consentimento. Orbán fabrica consentimento investindo pesadamente em grupos de reflexão e fundações iliberais e em qualquer coisa que produza conteúdo cultural alinhado com o seu poder. Desde que se tornou uma persona non grata na Europa e nos EUA (sob Obama e Biden), ele percebeu a importância da organização internacional e do fortalecimento da contracultura iliberal. Ele investe vastas somas no financiamento de uma rede internacional de institutos de pesquisa iliberais e convida novos pensadores de direita de todo o mundo para visitarem a Hungria. Se juntarmos tudo isto, temos uma figura que se destaca internacionalmente muito acima do que seria seu tamanho real.
Em relação ao episódio envolvendo Bolsonaro na embaixada da Hungria no Brasil, você consegue perceber muitos pontos em comum entre ele e Orbán? Você acredita que o governo húngaro correria o risco de causar um incidente diplomático para, em caso de um pedido de prisão, concederasilo político ao ex-presidente brasileiro?
Não sou especialista em política brasileira, mas parece haver diversas semelhanças. Os dois homens partilham mais ou menos a mesma ideologia iliberal, visando a ordem mundial liberal global e os seus aliados internos. Ambos conseguiram montar uma coligação eleitoral difícil de eleitores da classe média e da classe trabalhadora. Bolsonaro está numa posição diferente porque a esquerda brasileira tem sido uma das organizações políticas mais bem organizadas na esquerda em nível internacional, mesmo que tenha se tornado mais fraca nos últimos anos. Isso garante que Bolsonaro tenha mais dificuldade em atrair eleitores deixados para trás. A esquerda é um fracasso desastroso na Hungria, por isso Orbán tem uma base social mais ampla.
Em relação ao asilo, é difícil saber o que vai acontecer. Bolsonaro deixou a embaixada húngara e promete ficar e lutar. Vamos ver o que acontece se as coisas realmente começarem a esquentar para ele. Orbán já esteve nas manchetes ao conceder asilo a líderes de extrema-direita processados. Por exemplo, quando Nicola Gruevski, o primeiro-ministro iliberal deposto da Macedônia do Norte, enfrentou acusações no seu país natal, fugiu para a Hungria. Gruevski foi condenado por um tribunal da Macedónia do Norte a sete anos de prisão em 2018 por branqueamento de capitais, mas nessa altura já tinha fugido do país com a ajuda de diplomatas húngaros. Agora é um feliz empresário na Hungria, onde obteve asilo. A nova liderança da Macedônia do Norte tentou extraditá-lo, mas até agora não teve sucesso.
Com base na experiência húngara, é possível pensar em estratégias que poderiam ser adotadas por partidos de esquerda, centro-esquerda e até mesmo o que chamamos aqui de “centro democrático” para enfrentar a extrema direita?
A esquerda e o “centro democrático” precisam levar a sério os desafios da globalização. Estes desafios aparecem de forma diferente em partes do mundo distintas; a classe média é uma grande questão em economias emergentes como o Brasil e a Índia. Anteriormente, a classe média fazia parte de uma coalizão social que apoiava governos democráticos de esquerda que construíram serviços públicos que também serviam a esta classe média. Contudo, mais recentemente, a classe média abandonou esta coalizão e quis aproveitar as oportunidades proporcionadas pelo capitalismo globalizado para acumular riqueza. Ser solidário com os trabalhadores e os pobres custa caro, por isso elegeram novos líderes não liberais. No Brasil, alguns segmentos da classe trabalhadora também mudaram de lado. Aqui, o enfraquecimento organizacional do Partido dos Trabalhadores e a ascensão de novos movimentos religiosos parecem ser o principal desafio estratégico.
Na Europa e nos EUA, os desafios da globalização significam que uma grande parte da classe média está se deslocando para a parte de baixo, enquanto a classe trabalhadora está perdendo de forma explícita. Os trabalhadores têm mudado de lado há décadas, principalmente devido a uma ruptura que surge entre eles e os partidos de esquerda. A esquerda tem se concentrado cada vez mais nos vencedores da globalização, nos eleitores instruídos que vivem nas grandes áreas urbanas e metropolitanas, negligenciando e até estigmatizando os trabalhadores fora destes centros cosmopolitas. A esquerda e o centro democrático precisam reaprender a ouvir este grupo para compreender o sofrimento dele, que é muito real e não apenas uma questão cultural imaginada.
Depois de compreenderem o que se passa com estas pessoas e oferecerem uma identidade política que os represente, terão de investir muito mais esforço na organização. A política midiática tem seus limites. Você precisa sair, estar presente, estar disponível e oferecer soluções localmente. A popularidade do Blairismo e do Clintonismo elevou a política midiática a um novo nível na esquerda. Este estilo de política depende exclusivamente de especialistas na concepção de mensagens e políticas; as pessoas não fazem parte da equação, a não ser como “massa” que consome os produtos criados por estas fábricas políticas. Mas, ao fazê-lo, esqueceram-se de como organizar as pessoas, ouvir as suas necessidades e oferecer uma representação crível. Esta é a verdadeira fonte do poder dos populistas autoritários – o fato de grandes partes do eleitorado se sentirem invisíveis, ouvidas e negligenciadas. Isso precisa mudar. Organize os que ficaram para trás, forneça soluções reais para os desafios da globalização e vença a insegurança econômica. Estes são os passos para vencer o populismo autoritário.