Dezenas de organizações e movimentos pedem boicote a ‘tentativa da multinacional Cargill de limpar a sua imagem’

Manifesto questiona edital para iniciativas socioambientais em paralelo ao apoio da empresa a projetos como a Ferrogrão

Redação Brasil de Fato

Documento assinado em conjunto por 55 organizações da sociedade civil e movimentos populares pede boicote ao edital “Semeia Fundação Cargill 2024”, lançado pela multinacional líder do setor do agronegócio no Brasil com o objetivo declarado de “apoiar iniciativas socioambientais e negócios de impacto”. A alegação dos movimentos é de que a empresa tenta “limpar a sua imagem através do financiamento a projetos socioambientais comunitários e a supostos negócios de impacto”.

O manifesto é assinado por entidades que representam indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores e outras comunidades tradicionais da Amazônia e Cerrado, e aponta incoerência da empresa. A Cargill é, por exemplo, uma das incentivadoras do projeto da Ferrogrão, ferrovia que, se construída segundo o projeto original, poderá impactar terras indígenas, unidades de conservação e povos isolados.

“A verdadeira Cargill, considerada a segunda maior empresa de capital fechado do mundo, não defende a natureza nem as comunidades locais, mas sim projetos de destruição como a Ferrogrão: uma ferrovia de 933 km que cortaria a floresta amazônica ao meio para aumentar ainda mais a produção, já recordista, de soja e milho no Mato Grosso e no Pará”, diz trecho do texto.

Para as organizações e movimentos, o edital promovido pela empresa visa esconder o estímulo ao desmatamento, à grilagem de terras, perda da biodiversidade e ampliação da utilização de agrotóxicos por meio de monocultura predatória e ilegal.

“Ao afirmar que a sua missão é ‘promover a prosperidade das comunidades fortalecendo sistemas alimentares seguros, sustentáveis e acessíveis’, a Fundação Cargill engana consumidores do mundo todo e constrói uma falsa imagem de empresa sustentável e ‘verde’ diante do mercado internacional”, dizem as entidades. O manifesto público foi lançado nesta quarta-feira (3). O documento na íntegra, assim como a lista de entidades signatárias, está no fim deste texto.

Outro lado

Procurada pelo Brasil de Fato, a Cargill informou que não foi contatada diretamente e não recebeu o documento assinado pelas entidades. A companhia disse que “respeita o direito à liberdade de expressão de todos os indivíduos, de modo a encorajar um diálogo aberto e construtivo envolvendo todos os atores da sociedade”, e que “segue firme em seu compromisso de ajudar o mundo a prosperar”.

A empresa destacou, também, que a Fundação Cargill, fundada há 50 anos, atua para “promover a prosperidade das comunidades, fortalecendo sistemas alimentares seguros, sustentáveis e acessíveis”. Segundo a nota, em 2023 foram investidos R$ 4,4 milhões, que beneficiaram mais de 117 mil pessoas em 18 estados do país.

A nota ressalta, ainda, que a empresa não participa do consórcio formado para a construção da Ferrogrão, mas afirma que, para a Cargill, “o transporte ferroviário traz benefícios como segurança, eficiência e menor impacto ambiental quando comparado ao transporte rodoviário, o que contribui para a competitividade da produção brasileira nos mercados internacionais”.

Confira abaixo a nota pública e a lista de entidades signatárias:

Nós, organizações da sociedade civil, movimentos sociais e associações populares abaixo assinadas, denunciamos o edital “Semeia Fundação Cargill 2024” e a tentativa da Cargill de limpar a sua imagem através do financiamento a projetos socioambientais comunitários e a supostos negócios de impacto. Para os povos indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais, quilombolas, camponeses e comunidades tradicionais diversas da Amazônia e do Cerrado, a única coisa que a Cargill semeia é a violação de direitos e a morte: a empresa atua impulsionando a destruição desses biomas e favorece o complexo global da soja e do milho, violando diretamente os direitos e modos de vida dessas pessoas através de suas infraestruturas e operações logísticas.

A verdadeira Cargill, considerada a segunda maior empresa de capital fechado do mundo, não defende a natureza nem as comunidades locais, mas sim projetos de destruição como a Ferrogrão: uma ferrovia de 933 km que cortaria a floresta amazônica ao meio para aumentar ainda mais a produção, já recordista, de soja e milho no Mato Grosso e no Pará. Proposta e defendida pela Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus e Amaggi, a Ferrogrão resultaria em mais desmatamento, mais emissões de gases de efeito estufa, e ainda mais violações na região do corredor logístico Tapajós-Xingu – cujos portos, hidrovias, e rodovias já acumulam impactos socioambientais profundamente negativos. Com estudos falhos e ignorando alternativas, o projeto viola a constituição ao ameaçar diminuir o Parque Nacional do Jamanxim e desrespeita o direito à consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais da região.

A Cargill que alega preocupação com o meio ambiente, alimentação saudável e os direitos humanos é a mesma que impede pessoas de pescarem nas proximidades dos seus terminais portuários, que polui rios com suas barcas de soja, e modifica ecossistemas e modos de vida por seu desejo de lucro. Ao afirmar que a sua missão é “promover a prosperidade das comunidades fortalecendo sistemas alimentares seguros, sustentáveis e acessíveis”, a Fundação Cargill engana consumidores do mundo todo e constrói uma falsa imagem de empresa sustentável e “verde” diante do mercado internacional. A Cargill que o edital Semeia quer esconder estimula o desmatamento, a grilagem de terras, a perda de biodiversidade, e a utilização de cada vez mais agrotóxicos ao promover uma cadeia de monocultura predatória e ilegal, opera portos irregulares em Santarém e Itaituba, e assedia territórios quilombolas em Abaetetuba.

Diante de tudo isso, e considerando o envolvimento da Cargill com outras violações fora do Brasil – de trabalho escravo e infantil no Mali à conspiração empresarial e discriminações raciais e de gênero nos EUA – é urgente que toda a sociedade civil brasileira boicote o edital “Semeia Fundação Cargill 2024”. Se a Cargill quer de fato “apoiar histórias”, “cultivar vínculos” e “transformar o futuro”, que comece respeitando a legislação brasileira e internacional, os direitos dos povos e comunidades que habitam a Amazônia e o Cerrado, e interrompa suas atividades de destruição nesses biomas.

Assinam:

1. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
2. Articulação Pacari Raizeiras do Cerrado
3. Articulação Paraense de Agroecologia
4. Associação Pariri
5. Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Santarém AMTR-STM
6. Associação Pai Caripetuba
7. Associação Quilombola do Cumbe/Aracati – CE
8. Associação Quilombola e Afrodescendente da Restinga
9. Amazon Watch
10. Ação Clima Popular
11. Agência 10envolvimento
12. Cáritas Brasileira Regional Norte II
13. Centro de Estudos e Defesa do Negro e Negra do Pará (CEDENPA)
14. Centro de agricultura alternativa do Norte de Minas (CAA/NM)
15. Centro de Defesa dos Direitos Humanos e da Natureza de Bom Jesus das Selvas (MA)
16. Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA)
17. Conselho Indígena Tupinambá (CITUPI)
18. Comissão Pastoral da Terra (CPT)
19. Conselho Indigenista Missionário – Santarém (CIMI-STM)
20. Conselho Munduruku e Apiaká do Planalto
21. Coletivo de Mulheres Indígenas As Karuana
22. Coletivo Toca Mamulengo
23. Comitê de Defesa da Vida Amazônica na bacia do rio Madeira – COMVIDA
24. Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
25. FASE Programa Amazônia
26. Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT)
27. Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
28. Grupo de Pesquisa de História Indígena e do Indigenismo na Amazônia (GT HINDIA/UFPA)
29. GT Infraestrutura e justiça socioambiental (GT Infra)
30. Guardiões do Bem viver
31. Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc)
32. Instituto KABU
33. Instituto Raoni
34. Idec – Instituto de Defesa de Consumidores
35. Instituto Ambiental Viramundo
36. Instituto Internacional Arayara
37. International Rivers
38. Maparajuba Direitos Humanos na Amazônia
39. Movimento Tapajós Vivo
40. Movimento Xingu Vivo
41. Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB
42. Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA
43. Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST
44. Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST
45. Movimento em defesa dos territórios
46. Movimento SOS Chapada dos Veadeiros
47. Movimento Xingu Vivo para Sempre
48. Movimento dos pescadores e pescadoras artesanais – MPP
49. Mulheres em movimento das ilhas de Abaetutuba
50. Plataforma dos Movimentos Sociais por Outro Sistema Político
51. Rede de Agroecologia do Trairão
52. Rede de Notícias da Amazônia
53. Rede Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
54. Robert F. Kennedy Direitos Humanos
55. Terra de Direitos

Edição: Matheus Alves de Almeida

Imagem: Indígenas Kayapó Mekragnotire em protesto contra a Ferrogrão na BR-163 em 2020. – Instituto Kabu

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