Em Campo Grande, Lula sugeriu a compra de uma fazenda com o objetivo de inserir povos indígenas, o que vai na contramão das reivindicações das populações originárias e da Constituição
Por Priscila de Santana Anzoategui, na Revista Badaró
Escrevo esse texto no dia 17 de abril de 2024, 26 anos após o massacre em Eldorado dos Carajás, data histórica da luta pela defesa da terra, abril vermelho, que rememora o assassinato de vários camponeses, e é quase sempre com a violência, com a morte, que o Estado resolve se mexer.
Não é diferente com os indígenas, que já perderam tantas lideranças. Falo especificamente dos Guarani e Kaiowá: Marçal de Souza, Marcos Veron, Nísio Gomes, Xurite Lopes, Rolindo Vera, Simião Vilhalva, Damiana Cavanha, Clodiodi Aquileu de Souza, Marcio Moreira, Vítor Fernandes e a nhandesy Estela Vera.
As retomadas em torno da Reserva Indígena de Dourados (RID) existem desde 2016. A cidade “de repente” foi invadindo a Reserva, que se compõe em duas áreas: aldeia Jaguapiru e aldeia Bororó. A política de reservamento foi estabelecida no começo do século XX, pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
A política indigenista delimitou oito reservas espalhadas pela região conhecida como Cone Sul, onde os Guarani e Kaiowá foram obrigados a viver, à época do esbulho, e que hoje a nova problemática da especulação imobiliária atravessa.
Lembro de quando escutei Dona Leila, uma Guarani, parente de Marçal de Souza, que participou da retomada de Yvy Katu, dizer que a reserva era um chiqueiro, que ali não tinha espaço pra plantar, que era tudo muito pequeno, que eles foram jogados ali, tratados pior do que animais. Através das palavras de Leila, que me ensina tanto sobre a sua luta, consigo entender a tamanha distância que existe entre viver no tekoha e viver na reserva, para os indígenas.
Lula, na sua posse presidencial, subiu a rampa com Raoni; instituiu pela primeira vez, na história deste país, um Ministério que tem a atribuição de planejar e executar políticas públicas voltadas para os povos indígenas e ainda colocou uma grande liderança indígena, Sônia Guajajara, no cargo de ministra de Estado. Simbolicamente fez uma reparação histórica. Não apenas: consolidou a vertente de que vivemos num país pluriétnico.
Todavia, cumprir o que determina a Constituição Federal nos seus artigos 231 e 232 transcende o simbólico: é realizar as demarcações de terras indígenas, que há tanto tempo o movimento indígena demanda. Aliás, os artigos mencionados só estão na Carta Magna devido à luta histórica dos povos indígenas na Constituinte. A imagem de Ailton Krenak se pintando de jenipapo e defendendo os direitos indígenas é daquelas cenas viscerais, que só acontecem quando há resistência dos povos originários, que sempre estiveram na vanguarda da política brasileira.
Lula veio ao Mato Grosso do Sul há uma semana, num evento do agronegócio, para anunciar a exportação da carne brasileira – produzida em cima das terras indígenas – ao mercado chinês. Numa tentativa de agradar a gregos e troianos, pediu ao governador Eduardo Riedel – aquele que estava presente no Leilão do Genocídio em 2013 e que foi secretário de Estado durante o mandato de Reinaldo Azambuja, governador à época do massacre de Guapo’y, em Amambai – para que este escolhesse uma fazenda, já que o Governo Federal iria comprá-la, no intuito de ajudar os Guarani e Kaiowá que vivem na miserabilidade, nos acampamentos.
A Articulação dos Povos Indígenas (Apib), Aty Guasu (Grande Assembleia dos Guarani e Kaiowá) e Kunhangue Aty Guasu (Grande Assembleia das Mulheres Indígenas) soltaram notas repudiando a fala do presidente Lula, já que o que ele propôs passa longe do que se refere à demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.
Sabemos que essa questão é complexa e que anteriormente, quando foi chefe do Poder Executivo, Lula não homologou muitos territórios e os indígenas ficaram a ver navios. Mas depois de Bolsonaro, Lula foi o melhor cenário que se apresentou.
Demarcação já
A pauta da demarcação de terras indígenas é uma demanda que pouco avança, primeiramente porque nenhuma política de governo se preocupou com tal questão, e depois porque os procedimentos demarcatórios acabam sendo judicializados. Mesmo quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decide sobre tal problemática, como foi o recurso que debatia o marco temporal, há votos que divergem do Decreto 1775/96, que regulamenta o ato administrativo demarcatório, vedando a indenização da terra nua, já que a área pertence à União. Os indígenas têm o direito apenas ao usufruto.
A bancada ruralista investe pesado para aniquilar os direitos originários dos indígenas de habitarem seus territórios e viverem conforme seus costumes e tradições. Recentemente foi aprovada a Lei 14.701/23, que, contrariando a Constituição Federal e decisão do STF, valida a tese do marco temporal. Os ruralistas entenderam que não compensa apenas matar contratando pistoleiros: é preciso matar com a caneta, com a lei do branco.
Estabelece-se então um novo imbróglio, um impasse, não há como escolher tão somente medidas paliativas. Fazer uma nova reserva? É essa a proposta do Governo Federal? Voltar aos tempos do SPI? Cometer os mesmos erros? Confinar mais uma vez?
Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Mato Grosso do Sul possui 25 terras indígenas à espera de demarcação. 10 já foram identificadas, outras 10 já foram declaradas pelo Ministério da Justiça e cinco foram homologadas. Há também 119 acampamentos dentro desses territórios. As áreas reivindicadas não chegam a 3% da extensão territorial de Mato Grosso do Sul.
O Estado nos pare e nos gera. O Estado também é máquina de moer gente. Os Guarani e Kaiowá que o digam, principalmente durante a ditadura militar e o governo adorador de Ustra, que nos destruiu nos últimos anos. Eles passarão, nós passarinho. A Comissão da Anistia durante este mês de abril finalmente reconheceu as violações que o Estado brasileiro cometeu contra os povos indígenas no regime militar, especialmente as violações contra os Guarani e Kaiowá, num evento histórico, em que o pedido de desculpas foi feito de joelhos ao Seu Tito, um rezador centenário da retomada Guyraroká.
Como disse e repito, é preciso sair do simbólico. A reparação do Estado pelos crimes cometidos contra os povos indígenas se concretiza com a demarcação das terras indígenas, de fato, materialmente, cumprindo as premissas da Carta Magna, não há outro caminho. Se o Presidente Lula pensa que os povos indígenas vão aceitar soluções a conta-gotas, não conhece o que move os povos originários e a luta ancestral de voltar para os seus tekoha até se transformarem em tekoharã; subestima a resistência de fazer luta, de fazer retomada e a força da reza, que é potência espiritual e arma de guerra dos Guarani e Kaiowá.
Em 2012, os indígenas de Pyelito Kue declararam numa carta que só sairiam do seu território se fossem enterrados lá. A carta viralizou nas redes sociais. Os Guarani e Kaiowá têm esse poder de nunca desistir. O que o presidente Lula não entendeu ainda é que a terra não lhes pertence, os Guarani e Kaiowá é que pertencem a ela. Sem tekoha, não há teko. E sem mulher, não há tekoha. E diga ao povo que avance!
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Imagem: Indígenas Guarani Kaiowá durante marcha contra o marco temporal e os PLs da morte, no 19º ATL. Foto: Marina Oliveira/Cimi
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.