Saúde Única: um olhar sobre as enchentes do RS

Tragédia no Sul põe em primeiro plano os alertas sobre o colapso climático – em especial a crítica de pensadores indígenas ao antropocentrismo e ao extrativismo. Essas reflexões podem inspirar a ousadia necessária para a reconstrução do futuro

por Túlio Batista Franco, em Outra Saúde

A tragédia climática do Rio Grande do Sul anuncia a “queda do céu”, que nos termos do Xamã Yanomami, Davi Kopenawa, é o fim do mundo. Um evento que muda o cosmos no qual se vive, e produz sua existência. Os indígenas falam que já viveram vários fins de mundo, e o mais notório deles foi quando da ocupação dessas terras pelos portugueses a partir de 1500. O que veio em seguida à chegada dos colonos foram doenças, perseguições, torturas, escravidão e mortes. Foi o fim do mundo de então. Para completar a saga colonialista viu-se o apagamento da memória, e silenciamento do conhecimento ancestral.

O mundo moderno constituiu um sujeito como o ser da cultura, que se separa e diferencia do “selvagem”, o ser natural. Produziu-se um antagonismo entre humanidade e natureza. A natureza objetificada é passível de se manejar por diferentes interesses, inclusive e principalmente o que transforma tudo em mercadoria, como nos diz Kopenawa. Intensifica-se a prática extrativista predatória, a produção agrícola intensiva e envenenada, a emissão descontrolada de gases, um modo de vida exorbitante. O consumo de energia hoje é 1,7 vezes maior do que a capacidade de reposição da energia para o planeta. A Terra ultrapassou a perigosa marca de 1,5 graus acima da temperatura média antes da revolução industrial. Um ponto de não retorno, ou seja, o planeta continuará febril pelos tempos vindouros. Caminhamos para o colapso.

Em direção oposta, para os indígenas do Alto Rio Negro, na Amazônia, por exemplo, o ser humano é a síntese de elementos da natureza, como ar, terra, água, fogo, floresta, luz, e o próprio humano, segundo o livro “O Mundo em Mim: Uma Teoria Indígena e os Cuidados sobre o Corpo no Alto Rio Negro”, do indígena Tukano e doutor em antropologia, João Paulo Barreto. O corpo como unidade cósmica. Sendo assim, a natureza se constitui de uma humanidade, e o humano de uma naturalidade. A natureza ao ser agredida sofre, adoece, eventualmente morre. Revolta-se. É como agredir um povo, destituindo-lhe do mundo.

Para construir um mundo ambientalmente seguro e saudável, para o século XXI e o futuro, é preciso constituir um novo pensamento, que destitua o ser humano da sua soberba, e o faça entender o fato de que a humanidade é natureza, são ambos constitutivos um do outro. A defesa dos elementos da natureza é pressuposto para a defesa das vidas.

Pensando nesta direção, organismos de cooperação internacional, inspirados no pensamento indígena, criaram o conceito “One Health”, traduzido para “Uma Só Saúde”, ou, “Saúde Única”, que significa o cuidado à saúde de todos os viventes, humanos, animais, florestas, meio ambiente.

No Plano global constituiu-se a Aliança Quadripartite, formada pela Organização Mundial da Saúde (OMS); Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA); Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO); e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), que na sequência elaboraram um Plano Quinquenal (2022-2026) centrado no apoio e expansão de capacidades dos sistemas de saúde, no controle das epidemias zoonóticas emergentes e reemergentes, doenças zoonóticas endémicas, doenças tropicais e transmitidas por vetores negligenciadas, riscos para a segurança alimentar, resistência antimicrobiana e cuidados ao ambiente, conforme informa a OMS.

Um avanço importante, sem dúvida. Temos aqui uma boa base para iniciar a formulação de políticas de saúde com a necessária integração dos cuidados, segundo preceitos da “Saúde Única”. No entanto, é necessário ousar mais, porque ao fim e ao cabo o desenvolvimento da sociedade se deu, como diz Ailton Krenak, com os homens comendo as florestas, os rios, as montanhas. Séculos correram, e hoje estamos diante do colapso construído meticulosamente pelas mãos humanas. Os fenômenos dramáticos que vivemos não são da natureza, mas sim, dos humanos; e nem são imprevisíveis, porque foram previstos.

O negacionismo reinante especialmente em muitos governos, impede que se tome providências políticas consistentes para parar este movimento suicidário da humanidade. Para se ter uma ideia, o código ambiental do Rio Grande do Sul, para usar o exemplo onde ocorre uma das maiores tragédias climáticas do país, foi um dos primeiros do país, e foi completamente descaracterizado pelo governador Eduardo Leite, em 2019, que alterou 480 pontos da Lei Ambiental do Estado, segundo Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), citada em Brasil de Fato de 18.10.2019. E assim tem sido em muitos lugares do país.

Avançar aos preceitos da “Saúde Única”, transformá-la em política deste governo, construir dispositivos de gestão cada vez mais colegiadas, e compartilhadas entre as instâncias do governo, apontam para a ousadia criativa na construção do futuro. A atual geração tem o dever de deixar os caminhos para construção de um mundo seguro para as que virão. É possível!

Foto: Gustavo Mansur/Palácio Piratini

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