“Antonio Tavares está vivo nas pessoas que acreditam na luta e não desistem”

No marco dos 24 anos do assassinato de camponês Sem Terra, ato cobra efetivação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos que condenou o Estado brasileiro pelo crime, cometido pela Polícia Militar do PR

Por Setor de Comunicação e Cultura do MST no PR
Da Página do MST 

Vinte e quatro anos após o que ficou conhecido como massacre da BR 277, militantes e amigas/os do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) se reuniram em um ato às margens do KM 108, em Campo Largo (PR), nas proximidades do local onde o crime ocorreu. Ali está o Monumento Antonio Tavares, batizado com o nome do camponês que foi morto pela Polícia Militar naquele 2 de maio do ano 2000, erguido também em homenagem a todas as vítimas do latifúndio e do aparato militar do Estado.

Diferente das inúmeras mobilizações realizadas no local em anos anteriores, desta vez o tom foi de conquista, pela sentença recém-anunciada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, condenando o Estado brasileiro pelo crime. Cerca de 200 pessoas foram feridas pelas Polícia durante o massacre, entre eles crianças, mulheres e pessoas idosas.

“Toda vez que eu passo aqui é um sentimento diferente. É um sentimento do momento da tristeza, fica na gente imagem da memória do massacre. E agora, com a conquista do monumento que virou patrimônio histórico, a gente se alegra porque a história fica viva na memória do povo. A família recebeu a decisão da Corte Interamericana com muita alegria porque até em que enfim, depois de 24 anos de muita luta e resistência, o estado foi responsabilizado pela crueldade de tirar a vida do meu irmão”, relatou o irmão mais velho de Tavares, chamado Antonio Tavares Irmão, se referindo especialmente a uma das decisões da sentença, que obrigada a proteção da obra pelo Estado. O monumento foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, erguido no local em maio de 2001, um ano após o crime.

A mística apresentada pela turma de Tecnólogo em Agroecologia da Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA) emocionou o público com o resgate do episódio e da luta coletiva por justiça e pela efetivação da Reforma Agrária, que segue até hoje. “É um momento de celebração e de acreditar que Antonio Tavares está vivo nas pessoas que acreditam na luta e não desistem e lutam por seus direitos”, garantiu Tavares, durante o ato em memória ao irmão.

“Ele já é vida, isso foi incorporado na nossa ação massiva, é sinal que as sementes germinaram, as árvores enraizaram e nós estamos colhendo o seu ideário, seu exemplo de vida. Ele cumpriu a sua função de ser social, ser político, ser humano”, garantiu Roberto Baggio, integrante da direção nacional do MST, em sua fala ao longo do ato realizado no dia 2. Estavam presentes no ato militantes do MST de diversas regiões do estado, integrantes da organização Terra de Direitos, parlamentares e amigas/os do movimento.

Hortas Antonio Tavares

Em 2020, no marco de 20 anos do massacre da BR 277, acampamentos e assentamentos do MST criaram 17 Hortas Antonio Tavares. Foi uma grande ação de cultivo de memória, solidariedade e muito trabalho em mutirão. A partir das hortas, as famílias fortaleceram a campanha de solidariedade e partilha de alimentos realizada pelo MST durante a pandemia da Covid 19.

Os espaços de produção seguem ativos até hoje, e alguns fizeram mobilizações também neste dia 2 de maio. Um deles fica no acampamento Encontro das Águas, localizado em Guarapuava, centro-sul do Paraná, como conta Clesmilda de Oliveira, militante do MST e moradora da comunidade: “Mantemos a memória viva de Antonio Tavares, que hoje tem um grande significado na nossa luta, travada durante esses 40 anos […]. Muitos companheiros tombaram por causa da violência do agronegócio, do latifúndio e muitas vezes é usado o aparelho do Estado para reprimir o povo. Nós do MST, acampados, assentados estaremos sempre levando a memória desses companheiros”.

As famílias se uniram em um mutirão para plantar 2.500 mudas de hortaliças. A produção será destinada para a cozinha comunitária do acampamento, e também para doação a instituições beneficentes e famílias em situação de insegurança alimentar. O acampamento Terra Livre, de Clevelândia, sudoeste do estado, também realizou um mutirão de plantio de 700 mudas e sementes na horta coletiva Antonio Tavares. Foram plantados alface crespa, alface americana, almeirão, cebolinha, cenoura, rúcula e couve, além de diversas sementes.

Tempos de violência e impunidade

Antônio Tavares tem sua trajetória marcada pela luta. Sua família foi obrigada a sair da comunidade de Ilhéus onde viviam, por ser parte do território alagado pelo lago da usina de Itaipu. Foi assentado em Candói, centro-sul do Paraná, e mais tarde passou a fazer parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade, e seguiu a luta justa para sustentar a família e ter uma vida digna. Era casado com Maria Sebastiana, pai de cinco filhos, e foi assassinado aos 38 anos.

“Ele foi arrancado pelas águas da Itaipu, reassentado, e depois assassinado pelo aparato do estado numa rodovia. Então é a memória de todos os camponeses brasileiros, dos indígenas, a memória dos afrodescendentes escravizados, a memória dos camponeses que amansaram as terras, e que na sequência foram transformadas em terras das transnacionais. E a memória de todos que lutam pela vida nesse tempo histórico”, garantiu Baggio.

O assassinato de Antonio Tavares não é um fato isolado. Entre os anos de 1994 e 2002 – primeiro e segundo mandatos do governador Jaime Lerner – ocorreram 502 prisões de trabalhadores rurais, 324 lesões corporais, 07 trabalhadores vítimas de tortura, 47 ameaçados de morte, 31 tentativas de homicídio, 16 assassinatos, 134 despejos violentos no Paraná.

Roberto Baggio enfatizou a extrema violência ocorrida naquele período: “Foi um tempo de muita violência, e a marcha justamente, massiva, era para se proteger da violência. E resultou em mais violência do estado burguês. Neste lugar está essa memória coletiva, de todos os que travaram a batalha nessa BR”.

Darci Frigo, na época advogado que atuava pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), lembra que naquele período estava sendo construída a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) em Curitiba. Mais de 30 advogados estavam presentes para prestar apoio. Ele acompanhou pessoas feridas que prestaram depoimento na delegacia: “Depois a Justiça Militar simplesmente dá um drible, e faz a apuração da morte do Antonio Tavares e acaba isentando de culpa o policial responsável por aquela violência”, denunciou.

A brutalidade daquele período ganhou as telas com o documentário “Arquiteto da Violência”, feito pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelo MST, no ano 2000. O curta-metragem denuncia a extrema violência cometida contra as famílias Sem Terra durante duas gestões do arquiteto Jaime Lerner (pelo antigo DEM) à frente do governo do Paraná. 

“São 24 anos de nova luta, de uma luta diferente. Uma luta é a pela terra, que o MST fez, faz e faz bem. A outra luta é pra não esquecer, pra mostrar quem são os assassinos. Porque quem matou Antonio Tavares não pode ter outro nome senão o de assassino”, afirmou o professor Carlos Marés, ex-Procurador Geral do Estado do Paraná e Presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e Procurador Geral do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Um monumento pela memória e pela Justiça

Entre as medidas impostas pela Corte Interamericana, divulgada no dia 14 de março de deste ano, está a proteção integral ao monumento Antonio Tavares por parte do Estado, com adoção de todas as medidas adequadas para sua preservação no local, acesso público e garantia de manutenção.

Após muitas ameaças de remoção da obra do local, uma decisão liminar da Corte Interamericana de Direitos Humanos obrigou o reconhecimento como patrimônio histórico-cultural pela Prefeitura de Campo Largo, em julho de 2023.

O monumento tem mais de 10 metros de altura e está erguido próximo ao local onde ocorreu o massacre no ano 2000. Símbolo da resistência do MST no Paraná, ele mostra a silhueta de um camponês com uma foice erguido ao alto, e logo abaixo a sigla do movimento.

Durante o ato realizado no último dia 2, Baggio lembrou as cenas daquele dia de violência, ocorrido nas proximidades do monumento. “Esse espaço virou um grande território de fuga, porque as pessoas correram para tentar se salvar […]. Alguns dias depois fizemos um grande mutirão pra ver se encontrava mais gente, porque nós realmente não sabia onde estavam”.

Após a decisão da Corte, o projeto do MST é fazer reformas que garantam acessibilidade a todos os públicos, iluminação, sinalização e a criação de um memorial, com acervo que reconte o episódio e também a linha do tempo da luta pela terra no Paraná.

“Aqui vão estar as marcas de todos os que lutaram naquele dia, e na sequência de todo esse mutirão desse pequeno exército de advogados, de pessoas, de padres, e irmãos, de bispos, de estudantes que vieram nos acolher aqui. […] Vamos precisar ter uma maca onde o seminário dos Padres Vicentinos se tornou um mini-hospital, numa mini-enfermaria para ajudar os feriados”, relembrou o dirigente do MST. “Não deixaremos que eles nos apaguem, aqui se transformará num espaço permanente, erguido materialmente, para que todos que passem aqui saibam exatamente o que aconteceu”, completou.

Medidas da Corte Interamericana

Ao longo de mais de duas décadas, o MST e organizações de direitos humanos cobram justiça para as vítimas do massacre da 277. Em junho de 2022, o caso começou a ser julgado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH), em audiência realizada na Costa Rica. Foram ouvidas a esposa de Tavares, dona Maria Sebastiana, e uma das vítimas, Loreci Lisboa, além representantes das organizações Terra de Direitos e Justiça Global.

Após 24 anos de impunidade, a justiça começou a chegar, a partir da sentença da Corte Interamericana anunciada no dia 14 de março deste ano. Ela condena o Estado brasileiro pela intensa violência e omissão pela Justiça no caso, determina a proteção ao monumento, indenização e amparo psicológico a familiares de Tavares e vítimas, divulgação da decisão, entre outras medidas importantes para que casos como este não se repitam.

Camila Gomes, coordenadora de incidência internacional da organização Terra de Direitos, lembrou que, dos 14 casos contra o Brasil já apreciados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, quatro casos tratam de violações a direitos humanos cometidas contra trabalhadores Sem Terra, três deles ocorreram no Paraná. “No caso Tavares, pela primeira vez, esse tribunal internacional reconheceu que as violações não afetaram somente indivíduos, mas uma grande coletividade, um grande contingente de pessoas. E o Monumento foi protegido como símbolo dessa luta e dessa coletividade”.

No dia 25 de abril, militantes do MST e das organizações Terra de Direitos e Justiça Global se reuniram com interlocutores do Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) para iniciar o planejamento para que o Estado cumpra a sentença da Corte. O prazo para o cumprimento das medidas é de até um ano.

Além da proteção ao monumento, a Corte também sentenciou pela indenização e amparo psicológico a familiares de Tavares e vítimas, divulgação da decisão, e que a justiça militar não tem competência para julgar e investigar militares que cometam crimes contra civis. Outra medida presente na sentença é a inclusão de conteúdo específico no currículo para a permanente formação de agentes de segurança pública, de modo a garantir o respeito aos direitos dos manifestantes.

“Se demorou 24 anos para arrancar a Justiça, e se fez, e determinou que em um ano todas as medidas corretivas fossem aplicadas, não aceitaremos absolutamente nada a não a aplicação integral da plenitude da sentença. É esse o nosso desafio e o sonho de justiça, não podemos postergar, enrolar e dizer que não dá”, afirmou Baggio.

Roland Rutyna, Superintendente-Geral de Diálogo e Interação Social do governo do Paraná, que esteve no ato representando também a Procuradoria Geral do estado, garantiu o compromisso da gestão e viabilizar o cumprimento da sentença.

*Editado por Fernanda Alcântara

Foto: Wellington Lenon

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