ATL defende os artigos 231 e 232 da Constituição como única conciliação possível
No final de abril, cerca de 9 mil indígenas estiveram em Brasília para o ATL (Acampamento Terra Livre). Trata-se de um evento que neste ano chegou à sua 20ª edição: duas décadas de uma das maiores reuniões de povos indígenas da América Latina.
Neste espaço político, o movimento indígena busca visibilidade para suas demandas e reivindica, junto às instâncias do Estado, direitos constitucionais, com destaque para a demarcação das terras que tradicionalmente ocupam.
A Lei 14.701/23, denominada Lei do Marco Temporal, além de representar uma afronta à decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), que declarou inconstitucional a tese do marco temporal, está ampliando o déficit de terras demarcadas.
Um pedido apresentado pelo ATL aos ministros da Corte Suprema é de que a lei seja declarada inconstitucional, alertando para seu efeito de inviabilizar demarcações.
“Lei 14.701 além de representar uma afronta à decisão do STF , que declarou inconstitucional a tese do marco temporal, está ampliando o déficit de terras demarcadas”
O ministro Gilmar Mendes, relator da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) que questiona a Lei do Marco Temporal, decidiu suspender a ação para que a Corte possa debater o tema de forma mais ampla, pelo fato de haver também uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), igualmente suspensa.
Em recente visita ao Brasil, a relatora especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, declarou que a lei tem levado perigo aos indígenas nas aldeias e áreas retomadas. Lawlor destacou a morosidade nas demarcações e pediu que elas sejam aceleradas.
Durante a reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), dias antes do ATL, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) homologou duas terras indígenas, quando eram esperadas as assinaturas de ao menos seis. Lula parece ceder a pressões de grupos fomentadores da Lei do Marco Temporal em detrimento de suas obrigações constitucionais.
Por outro lado, o MPI (Ministério dos Povos Indígenas), que tem feito avançar políticas públicas indigenistas, enfrenta limitações orçamentárias e políticas. A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) enfrenta as mesmas dificuldades.
“Lula precisa fortalecer institucionalmente o indigenismo oficial e demarcar as terras indígenas, conforme determina a Constituição”
Lula precisa fortalecer institucionalmente o indigenismo oficial e demarcar as terras indígenas, conforme determina a Constituição, mas se mostra afeito a “mesas de diálogo” e iniciativas de conciliação. Nos territórios, essa perspectiva se mostra falaciosa, constituindo-se em mais uma estratégia protelatória do Estado brasileiro e uma armadilha política.
Durante o governo Dilma Rousseff, o então ministro da Justiça José Eduardo Cardozo propôs mesas de diálogos que consistiam em diminuir as terras indígenas. Um fracasso. A maioria dos povos não concordou, o governo interrompeu a continuidade dos procedimentos administrativos, cedendo às pressões dos invasores, mas a violência contra os indígenas não foi interrompida.
Enquanto erros se repetem, “novos atores” anti-indígenas, de forma orquestrada, intensificam suas atividades pelas várias regiões do país, como se pode constatar na ofensiva deflagrada pelo Movimento Invasão Zero contra os povos e seus territórios tradicionais.
“O ATL deste ano marcou ainda os 50 anos do início das Assembleias dos Chefes Indígenas, ocorridas em plena ditadura militar (1964-1985), e embrião do atual movimento indígena”
O estudo “Quem são os poucos donos das terras agrícolas no Brasil – O Mapa da Desigualdade“, publicado pelo Imaflora, revela que 10% dos maiores imóveis rurais ocupam 73% da área agrícola do Brasil, enquanto os 90% restantes, menores, ocupam somente 27%.
Há muita terra nas mãos de poucos. O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) informa que 867 terras indígenas estão com alguma pendência administrativa impedindo a sua conclusão. Nelas encontram-se centenas de crianças, jovens, adultos e anciãos sobrevivendo em condições precárias, geralmente desumanas, que de forma aguerrida continuam reivindicando seus direitos originários.
O ATL deste ano marcou ainda os 50 anos do início das Assembleias dos Chefes Indígenas, ocorridas em plena ditadura militar (1964-1985), e embrião do atual movimento indígena. O desafio de continuar existindo e ocupando seus territórios com autodeterminação, une os distintos momentos históricos.
Os 20 anos do ATL demonstram que apesar das dificuldades, os povos indígenas só aceitam a conciliação determinada pelos artigos 231 e 232 da Constituição Federal.
__________
* Alcilene Bezerra da Silva: Vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e mestranda em educação contemporânea na UFPE
** Saulo Ferreira Feitosa: Integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e professor da UFPE
*** O Artigo foi publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 7 de maio de 2024. O link da original é: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/desigualdades/2024/05/os-20-anos-do-acampamento-terra-livre-e-a-urgencia-da-demarcacao-das-terras-indigenas.shtml
–
No dia 25 de abril, os povos indígenas presentes no 20º Acampamento Terra Livre (ATL) realizaram a marcha “Nosso marco é ancestral. Sempre estivemos aqui”. Foto: Hellen Loures/Cimi