Como a Alvarez & Marsal, que vai gerir a crise em Porto Alegre, capitaliza com desordens e tragédias naturais

“Especialista em reviravoltas”, A&M foi contratada para ajudar cidades americanas em crise, mas acabou impulsionando privatizações

por Cintia Alves, em Jornal GGN

O discurso de que o poder estatal é incompetente, corrupto ou incapaz de lidar com desordens nos serviços públicos ou catástrofes provocadas por fenômenos naturais tem alavancado globalmente a contratação de consultorias privadas como a Alvarez & Marsal, que foi anunciada nesta segunda (13) como a nova parceria do prefeito Sebastião Melo (MDB) na recuperação de Porto Alegre, após as fortes chuvas que alagaram mais de 80% dos municípios do Rio Grande do Sul.

Teoricamente respaldado pelo decreto de estado de calamidade pública que permite contratações sem processo de licitação em meio a tragédias, Melo disse à imprensa que a Alvarez & Marsal ficou sensibilizada e está trabalhando gratuitamente pelos próximos 60 dias.

Não se sabe ainda quanto a Alvarez & Marsal vai embolsar após o fim do período pro bono. “No meio do caminho, nós vamos estabelecer; se ela tiver que permanecer, vai ter custo”, resumiu o prefeito, sem fazer qualquer projeção, mas ressaltando que a prioridade é ajudar na limpeza da cidade e na gestão das pessoas desabrigadas e hospitais de campanha, por exemplo.

Nos Estados Unidos, contratos de cidades com a Alvarez & Marsal para restaurar serviços públicos ultrapassaram facilmente a casa dos 15 milhões de dólares, isso décadas atrás. Além de faturar alto com a consultoria em si, Alvarez & Marsal ostenta feitos como ter aberto caminho para a iniciativa privada ao sugerir a privatização do ensino público em Saint Louis, no Missouri; e demitir 7 mil funcionários da educação pública imediatamente após o furacão Katrina, em New Orleans, no estado de Louisiana.

Para o escritor Kenneth J. Saltman, a Alvarez & Marsal, autoproclamada “especialista em reviravoltas”, teria desmantelado serviços públicos e impulsionado privatizações.

No Brasil, Alvarez & Marsal ganhou os holofotes da mídia por ter assumido o processo de recuperação judicial de empresas arrastadas para o olho do furacão pela Lava Jato, inclusive contratando como consultor o ex-juiz da operação, Sergio Moro. O grupo também ajudou no enfrentamento à crise em Minas Gerais a partir das tragédias de Mariana e Brumadinho.

Mas é nos Estados Unidos onde encontram-se possíveis explicações para o interesse da Alvarez & Marsal no setor público. Para além dos braços jurídico e midiático (a consultoria “vende” gestão de crise e passa credibilidade às empresas que querem recuperar a imagem após escândalos), a Alvarez & Marsal tem um departamento todo dedicado a serviços aos setor público.

O departamento é liderado por Bill Roberti, um militar da reserva dos EUA que fez carreira no setor privado e passou a ocupar o cargo de superintendente nas empreitadas da Alvarez & Marsal junto a cidades americanas onde prefeitos atravessavam crises junto à opinião pública por causa de serviços públicos caóticos ou catástrofes de ordem natural.

Os casos de Saint Louis e New Orleans são interessantes precedentes a serem analisados tendo a parceria ainda indefinida com Porto Alegre em vista.

O caso Saint Louis
Mais de 20 anos atrás, Saint Louis, uma cidade no estado de Missouri, enfrentava duras críticas pelo descontrole do sistema público de transporte escolar. Crianças passavam frio na rua por causa dos atrasos dos ônibus, que tinham problemas de rotas e frota insuficiente para comportar o volume de alunos. A gestão local então decidiu contratar a Alvarez & Marsal não apenas para organizar a casa, mas também cortar despesas do sistema de transporte para, em tese, sobrar dinheiro para investimentos nas salas de aula.

No começo, a Alvarez & Marsal – que já havia sido contratada antes para assessorar questões financeiras em Saint Louis – foi paga com dinheiro de “doações” para atuar na questão dos ônibus escolares, conforme relata uma matéria do New York Times. Depois, Saint Louis firmou um contrato de 16 milhões de dólares, dispensando licitação e ignorando a proposta de outros 10 concorrentes, o que foi muito criticado à época pela oposição.

Segundo o NYT, Alvarez & Marsal disse que a empreitada, ao final, foi um case de sucesso. Mas não é o que diz a comunidade escolar – e o contrato até chegou a ser questionado pelo Comitê de Educação da Câmara Municipal.

Segundo os críticos, Alvarez & Marsal teria feito um plano que excluiu crianças do sistema de transporte, traçou rotas inviáveis, colocou interventores próprios em cargos estratégicos e ganhando até 400 dólares por hora. E, como cereja do bolo, qualquer erro na execução do plano era imputado e assumido pela prefeitura, e não pela consultoria.

Mas o trabalho da Alvarez & Marsal não se limitou ao transporte escolar. A empresa também passou a sugerir o fechamento de escolas por ela consideradas de baixo desempenho. “(….) alguns pais, políticos e membros do conselho escolar disseram que as coisas não eram tão simples. Eles disseram que a empresa errou ao eliminar os cargos necessários e ignorou o custo humano por trás de decisões como o fechamento de 16 escolas sem aviso prévio. Hoje, ressaltam eles, o sistema de St. Louis permanece à beira da falência e o desempenho dos alunos é péssimo.”

O furacão Katrina e o caso New Orleans
O histórico da Alvarez & Marsal com a cidade de New Orleans é ainda mais curiosa. Antes mesmo do local ter sido devastado pelo furacão Katrina em 2005, a empresa já trabalhava, contratada pelo estado de Louisiana, para reformular o sistema de ensino público.

Essa parceria foi consequência direta de uma decisão de Louisiana em tratar as escolas públicas como se fossem empresas que deveriam entregar resultados para justificar sua existência. Na prática, as novas métricas de avaliação jogaram a vasta maioria das escolas públicas nas mãos da Alvarez & Marsal.

O que a Alvarez & Marsal fez em New Orleans, ao custo de 16 milhões de dólares, foi retratado no livro de Kenneth J. Saltman, chamado “Capitalizando os desastres: tomar e destruir escolas públicas”.

Na obra, Saltman “descreve a forma como as empresas com fins lucrativos encaram alguns dos cenários de crise e catástrofe mais difíceis da nossa cultura – no Iraque pós-invasão, no Haiti, em Nova Orleães pós-Katrina e no centro da cidade de Chicago – como mercados emergentes”, diz um review publicado por Sara Taltman, da Universidade de Illinois.

Em outras palavras, cidades onde há descontrole de serviços públicos ou devastação por tragédias naturais, viram laboratório para empresas privadas lucrarem com planos de recuperação.

Basicamente, o que a Alvarez & Marsal fez antes do furacão Katrina foi remanejar todo o sistema de educação de New Orleans para torná-lo mais “eficiente”, sugerindo o fechamento de escolas (sobretudo em áreas resididas por populações negras e pobres) e entregando a gestão de boa parte das escolas que ficaram abertas ao modelo de parceria público-privada (PPP) que ficou conhecida nos EUA como “escolas charter”. Neste esquema, a escola continua sendo pública, mas a gestão é totalmente privatizada, e os alunos recebem vouchers do poder público para ajudar a custear o pagamento.

Saltman denunciou o modelo como uma forma de retirar o financiamento público necessário às escolas públicas para enriquecer os gestores privados. “(…) seu efeito final é retirar dos cofres o financiamento que poderia ter sido destinado à reconstrução de escolas, empobrecendo o sistema público em benefício dos empreiteiros privados“, escreveu ele.

Mesmo após o furacão Katrina, Alvarez & Marsal seguiu na consultoria a New Orleans, e o modelo de escolas charter continuou sendo a principal aposta. Em seu próprio site, a empresa informa que após o furacão, executou a demissão de 7.000 funcionários das escolas públicas que foram fechadas para dar espaço àquelas que aderiram ao projeto de PPP.

Saltman ressalta que, nos EUA, Alvarez & Marsal preparou a opinião pública para o choque de gestão, sempre vendendo a ideia de um Estado ineficiente e corrupto, incapaz de lidar com os serviços públicos em decadência, e que, por isso, precisa da ajuda de consultores. Por outro lado, o autor também frisa que o rearranjo criado pelas consultorias privadas visa propositalmente que as escolas sejam vistas como “falidas”, para justificar a parceria público-privada – que ele também julga problemática, pois a PPP dá prioridade a um ensino “comercial”, ou seja, não para formar cidadãos críticos e independentes, mas sim mero contingente de mão de obra para o mercado.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha.

 

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