A agonia da seca na Amazônia

Um calor descrito como infernal tomou conta da Aldeia Porto Praia, às margens do rio Amazonas. A cena lembrava a de um deserto de areia escaldante. A seca implacável de 2023 não apenas desidratou os cursos d’água da Amazônia, mas impôs uma adaptação quase impossível para os povos da floresta. Como sobreviver se as panelas recheadas de peixe foram substituídas por sardinha, salsicha e outros produtos industrializados? Como ir e voltar se muitas das embarcações não serviam para mais nada? No município de Tefé, quando o rio secou, foi como se a garganta e o coração secassem e morressem

Por Wérica Lima, em Amazônia Real

Tefé (AM) – O que aconteceu em Tefé e em outros municípios da região Norte no ano passado tem nome e sobrenome: racismo ambiental. Populações mais vulneráveis, incluindo indígenas e ribeirinhos, foram os mais afetados pela grande estiagem que atingiu os rios da bacia amazônica. Da noite para o dia, largas “estradas de água” se transformaram em lamaçais, e, conforme os dias passavam, em areia e pó. Muitos acompanharam esse drama pela TV, mas nem podem imaginar como isso afetou a vida da população local.

Tereza do Nascimento Silva, 54, liderança Kokama da Aldeia Porto Praia, passou a ter de acordar antes das 4 horas da manhã. Isso para ter de andar pelos rios transformados em ramais lamacentos com lanterna só para chegar onde estavam as canoas e de lá ir para Tefé comprar mantimentos. Na parte urbana, as pessoas falavam pelas costas da liderança, desdenharam de sua aparência. “O pessoal ficava olhando e falava que íamos sujos para Tefé. Aí eu dizia: “Olha, estamos assim porque estamos passando dificuldade. Estamos enfrentando uma coisa séria, não é brincadeira’”, lembra.

A liderança Kokama costumava comprar fiado e precisava dividir tudo o que conseguia com as filhas que moram próximo de sua casa. O ovo e a salsicha passaram a fazer parte da dieta diária. Ela até tentou manter a pesca, ainda que isso a obrigasse a fazer longas caminhadas, de 3 a 4 horas pela areia, só para chegar no que sobrou do rio. Mas o calor à beira d’água era tanto que ninguém conseguia ficar ali por muito tempo.

Com pressão alta, Tereza Silva começou a enfrentar dificuldades para dormir. “Eu podia comer, encher minha barriga com comida seca, mas quando ia ver parecia que minha barriga estava só aquele buraco [de fome]. De noite levantava, dizia que queria tomar um caldo, tomava um café e comia farinha. Mas não passava, às vezes não tinha nem farinha, foi muito dificultoso para nós.” O desespero pela situação fez a liderança chorar muitas vezes.

“A mandioca murchou”

A lembrança da seca de 2023 traz à tona o trauma de Rosely Oliveira, pescadora e agricultora de 53 anos do povo Kokama. Rosely precisou enfrentar a agonia da seca com oito filhos que dependiam exclusivamente dela. Sem rio e sem poder pescar, ela sobreviveu comprando alimentos enlatados e embutidos em um mercadinho local. O Bolsa-Família de 950 reais foi a salvação.

“Deixava meu cartão lá na taberna que era para ir comprando alimento assim e ir se aguentando”, explica Rosely. Ela comprava arroz, feijão e macarrão. Pela falta de água, a roça não madurava os alimentos plantados e Rosely precisava comprar farinha também, se sobrasse dinheiro. “Às vezes, a gente comia só com arroz. Nem a farinha a gente estava conseguindo fazer.”

Não só a mandioca, mas as bananeiras e outras plantas também murcharam. Isso é o que relatam as agricultoras da Aldeia Porto Praia. Elas nunca tinham visto a mandioca, que é um tubérculo de raiz, ficar com a aparência ‘’espremida” e seca. “Ainda plantamos umas mandiocas, mas deu tipo assim uma queima na minha roça. Todas morreram, a gente arrancava mandioca, botava dentro d’água e não amolecia, estava muito seca, quente demais a terra e quando ela está cozida assim, ela fica suada. Encolheram todas as melancias, as árvores e as frutas”, descreve Tereza Silva, com a voz carregada de tristeza.

Outro que ficou entristecido foi o tuxaua Anilton Braz da Silva, 53, companheiro de Tereza Silva. Ele não consegue falar da crise climática sem encher os olhos de lágrimas. “A gente pensa muito na sobrevivência de cada um, porque enquanto não tiver uma proteção nos territórios, isso poderá ser pior. Do jeito que está a gente não vai conseguir ficar muito fazendo os plantios devido à quentura. A gente precisa de ajuda para tentar nos proteger”, desabafa o líder indígena.

A distante demarcação

Desde 2002, o tuxaua luta pela demarcação da Terra Indígena Porto Praia de Baixo. Oficializada como terra pretendida em 2014 e reconhecida etnicamente em 2014 pela Funai, o território ainda não consta nem mesmo no banco de dados de Territórios Indígenas para demarcação do órgão indigenista.

Sem perspectiva de proteção, em 2021 indígenas Kokamas, Tikunas e Mayorunas do território fizeram autodemarcação e constituíram uma guarda florestal própria para vigiar o território. Madeireiros, piratas e grileiros são os principais invasores. Mas as ameaças partem também de garimpeiros e caçadores. Retiradas de areia, seixo, peixes e caças são feitas diariamente por pessoas de fora da aldeia, o que está deixando a região cada vez mais degradada.

Apesar de travarem uma luta, os indígenas continuam à mercê das atividades criminosas. Sem a demarcação ficam muito vulneráveis. Quando a Amazônia Real esteve em Tefé, em novembro de 2023, as lideranças encontravam-se em uma região cerca de 10 quilômetros acima da aldeia. Eles tiveram de sair de suas terras para buscar pelos peixes, já que aquelas áreas estavam boas para pescar.

“A gente fica preocupado pensando ‘poxa, a gente não tem ajuda’, Não há nem um apoio para nós, porque a nossa preocupação é de invadirem nossas terras, esses que têm fazenda de boi derrubarem [as árvores]. Agora no rio sempre acontece caso de pirata invadir as comunidades. Aqui para cima no Guará, próximo da nossa aldeia, eles [piratas] já falaram que a próxima comunidade [a ser invadida] será a nossa e a gente fica preocupado de não ter a nossa proteção”, desabafa Tereza Silva.

A verdade alertada

As mudanças climáticas, e não o El Niño, são o principal fator da seca na bacia do rio Amazonas, aponta uma pesquisa realizada pelo World Weather Attribution (WWA). As informações contidas nesse estudo realizado por pesquisadores de todo o mundo dialogam com a realidade descrita pelo povo Kokama da Aldeia Porto Praia em Tefé, onde a Amazônia Real visitou em novembro de 2023.

“O El Niño sempre induziu secas na Amazônia em milhões de anos, então essa seca não seria o recorde como bateu todos os recordes. Seria uma seca intensa, mas não com a severidade que foi. A intensidade dessas últimas secas tem muito a ver com o aquecimento global aumentando a temperatura do oceano”, explica Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, onde é co-presidente do Painel Científico para a Amazônia.

Tanto o El Niño quanto a crise climática afetaram proporcionalmente o índice de chuva na região, conforme o estudo, mas a alta temperatura registrada e sentida é atribuída ao aquecimento global. O estudo foi realizado comparando o clima atual ao período pré-industrial, sem a ação humana.

A pesquisa analisou dois tipos de índices em seis meses. O primeiro considera a baixa pluviosidade e faz análise da chamada seca meteorológica, enquanto o segundo mede a seca agrícola considerando a baixa precipitação e evapotranspiração. Conforme o pesquisador Carlos Nobre, a meteorológica ocorre quando a estiagem ocorre em uma grande parte da estação chuvosa. Já a agrícola é específica de quando falta chuva no momento crítico que as safras precisam de água para as sementes se desenvolverem.

Savanização da Amazônia

De acordo com o estudo da WWA, a ebulição global aumentou em dez vezes a probabilidade de uma seca meteorológica e em até 30 vezes a agrícola. No conjunto de dados analisados, mesmo no clima atual, a seca vivida pelas populações amazônidas é caracterizada como um evento de um em 100 anos para a seca meteorológica e um em 50 anos para a seca agrícola.

A Terra está passando por um processo acelerado de aquecimento. Os oceanos, que regulam o clima global, já registraram 0,9 grau a mais em sua temperatura média. Em regiões como o Oceano Pacífico Equatorial, esse aumento supera 1,1 grau. Essa elevação da temperatura dos oceanos, combinada com o aquecimento geral do planeta, que em 2023 atingiu 1,49° acima da média entre 1850 e 1900, intensifica eventos climáticos extremos como secas e inundações – a tragédia do Rio Grande do Sul é o exemplo mais recente. Na Amazônia, as temperaturas médias de 2023 superaram 2 graus acima da média histórica. Em algumas áreas mais ao sul da região Norte, houve registros de até 3 graus de aumento.

Sem as metas alcançadas das contribuições nacionalmente determinadas voluntariamente que cada país coloca no acordo climático, discutidos em eventos como a COP, Carlos Nobre afirma que a Amazônia poderá chegar a 2050 com 2,4º a 2,6º graus acima do clima atual, o que significa de 30 a 50 anos uma Amazônia resumida a um dossel aberto. “Nos últimos 40 anos, a estação seca em toda essa região do Sul da Amazônia já está quatro a cinco semanas mais longa, uma semana por década, quando essa estação seca era de três, quatro meses. Hoje já são quatro a cinco meses. Se ela atingir cinco, seis meses, esse é o clima da savana tropical, é o clima do Cerrado”, alerta.

A vivência das populações de milhares de anos na região da Amazônia está, de fato, ameaçada. Conforme Carlos Nobre, o aumento de mais de dois graus acima da média significa levar o corpo humano, em algumas regiões, ao limite da vida. “Em muitos locais na Amazônia, a temperatura e a umidade atingiriam aquele limite máximo do corpo humano em que as pessoas não podem sobreviver. Bebês e idosos sobrevivem meia hora quando passa desse limite que o corpo humano não consegue mais perder calor, com temperaturas muito altas, umidade alta, o corpo humano não perde mais calor. Uma pessoa saudável sobrevive duas horas, então corre o risco até na Amazônia no final deste século à segunda metade do século se ‘savanizar’ e a temperatura global chegar a dois graus e meio”, explica.

Futuro dos amazônidas

Jansen Zuanon, ictiólogo e pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), onde trabalhou com pesquisa nos rios da Amazônia  por 37 anos, disse acreditar que é provável que toda a parte da fauna aquática mais sensível seja dizimada se eventos extremos como o de 2023 continuarem a ocorrer.

Uma de suas principais preocupações é com a soberania alimentar e a própria cultura das populações que dependem do rio. Conforme explica, indígenas e ribeirinhos saem todos os dias para pescar e garantir o almoço e jantar, o que leva de duas a três horas. Com as demais horas do dia,  eles se dedicam a outras atividades, seja no roçado, cuidado com casa, crianças, animais domésticos e com a parte de festividades.

“Se essas condições muito ruins persistirem e tornarem a obtenção de alimento mais difícil, isso significará que as pessoas vão ter que gastar mais tempo, se deslocar para locais mais distantes em busca de alimento e isso vai comprometer o uso do tempo em outras atividades e pode inclusive gerar uma incerteza, uma insegurança muito maior em relação a sobrevivência”, destaca o pesquisador.

Outra preocupação é que as populações sejam obrigadas a migrar para as grandes cidades devido à falta de perspectiva de vida nos territórios sem alimento, gerando uma leva de refugiados ambientais. Isso pode significar uma “degradação gigantesca na qualidade de vida dessas pessoas nas relações sociais, na saúde física e mental”, conforme diz Jansen, ao ressaltar a riqueza de saúde que esses povos possuem em uma Amazônia conservada.

“Se essas populações forem expulsas do interior por condições muito ruins, muito incertas, é bem provável que elas venham a se aglomerar na periferia das grandes cidades e acabar gerando uma situação muito pior”, afirma o ictiólogo. Na Aldeia Porto Praia, em Tefé, esse é um temor real.

“Está acontecendo tanta coisa aqui na Aldeia Porto Praia, é o rio secando, essas coisas [mudanças climáticas], e tem muita gente que já quer ir embora morar em outros cantos da cidade”, relata Tereza Silva. “Do jeito que vai se não fizerem alguma coisa vai ser pior, e aí meus filhos e meus netos vão passar por coisa pior. A gente se preocupa porque está lutando já pensando neles. Não pensamos muito em nós, mas neles.”

Doações chegam à comunidade de Porto Praia, do povo indígena Kokama. O rio em frente à comunidade ficou quase seco e a população isolada (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace).

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