As 80 organizações participantes dos Pré-Fospas de Manaus e Roraima trouxeram para o debate temas imprescindíveis na defesa da Pan-Amazônia, dentre eles Saúde, Mulheres e Direitos da Natureza
Por Lígia Apel, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Norte 1
Os encontros preparatórios do XI Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), os Pré-Fospas do Amazonas e Roraima, foram realizados nas respectivas capitais, Manaus e Boa Vista, no dia 11 de maio, com a participação expressiva de organizações da sociedade civil, principalmente dos movimentos indígenas.
Esse segundo texto sobre o evento traz alguns pontos das reflexões sobre Mulheres e Mulheres Indígenas, Saúde das populações da Amazônia e as mazelas decorrentes da precária assistência a essas populações, com destaque ao difícil acesso ao pré-natal das indígenas, violência obstétrica sofrida por essas mulheres que precisam sair de seus ambientes para dar à luz em um lugar estranho com pessoas estranhas. Também se destaca o debate sobre Direitos da Natureza e a importância das alianças entre organizações que estão na linha de frente na luta em defesa da Amazônia e os diferentes olhares dos indígenas e não indígenas.
Todos os assuntos dos Pré-Fospas estarão na bagagem dos participantes do Amazonas e Roraima que irão para o XI Fospa, nos dias 12 a 15 de junho, na Bolívia.
“Nos seus cantos vitalizam a língua materna”
Mulheres: cuidando e construindo
As mulheres da Amazônia terão um eixo específico no XI Fospa, e tiveram nos Pré-Fospa de Manaus e de Roraima debates específicos e especiais sobre a importância da sua árdua luta contra o patriarcado, uma das mais perversas estratégias do capitalismo para dominação.
“Chamar a atenção para os danos sofridos pelas mulheres em várias esferas da vida nas formas patriarcais, discriminatórias e exploradoras dos corpos e vidas femininas, bem como visibilizar a criatividade e cultura de resistência das mulheres”, estão entre os objetivos do Fospa, porque “as mulheres da Amazônia são sujeitos políticos que avançam na articulação das lutas que emergem no âmbito do Fospa”.
Marcivânia Sateré Mawé, da Coordenação de Povos Indígenas de Manaus e Entornos (Copime), confirma essa condição. “As nossas antepassadas cuidaram por séculos dos nossos territórios na Amazônia e, hoje, as mulheres indígenas continuam esse legado diante de um cenário em que pessoas e natureza são vistos como mercadoria”, explica, apresentando os trabalhos que fazem para mudar esse conceito:
“Mesmo diante de tantos desafios, a mulher tem resignificado conceitos nas suas práticas. Se plantam, cultivam abelhas para polinização dos alimentos. Se costuram máscaras ou vestimentas, pintam o grafismo para enfeita-las. Nos seus cantos vitalizam a língua materna. Se confeccionam artesanatos, plantam no terreiro as árvores cujas sementes transformam em arte, em adornos protetivos”, elucida.
A Sateré Mawé explica, também, que a vida da mulher indígena vai além do cuidado com a família. “As mulheres indígenas estão aí, pescando, no roçado, na casa de farinha, na agricultura, confeccionando artesanato, preparando comidas e bebidas típicas, discutindo políticas, fazendo gestão das organizações indígenas e instituições públicas, em salas de aula, acessando benefícios sociais, como o Bolsa Família, que deu a elas maior autonomia em casa”, elenca, mostrando que apesar de toda essa sustentação familiar e comunitária, o trabalho da mulher não é reconhecido como sustentação da sociedade.
“Infelizmente essas ações ainda estão invisibilizadas, negando a elas o reconhecimento da grande contribuição que dão no enfrentamento às mudanças climáticas”, pondera enaltecendo o Fospa como espaço de exercício e visibilização da ação política dos cuidados de manutenção da vida que exercem.
“O Fospa é um espaço que aponta caminhos sustentáveis para a Amazônia, a partir da sabedoria e conhecimento das mulheres: criação de políticas públicas, projetos e programas governamentais que assegurem apoio às ações que desenvolvem em seus territórios”, exalta.
“A gente quer que as vozes populares sejam ouvidas, que os saberes tradicionais sejam considerados, que a medicina tradicional seja respeitada”
Nessa perspectiva, o Pré-Fospa de Boa Vista trouxe a representante do Núcleo de Mulheres de Roraima e da Articulação de Mulheres Brasileiras, Nelita Frank, que vê o Fospa como um momento de denúncia das formas de violência contra a mulher.
“O Fospa é um momento em que nós, mais uma vez, denunciamos o avanço do sistema capitalista expropriador que devasta a nossa região. O patriarcado, o fundamentalismo, o racismo, extinguem as formas de vida na Amazônia, humanas e ambientais”, alude e exemplifica com os absurdos crimes em território Yanomami pelo garimpo e em áreas urbanas.
“Nos garimpos da TI Yanomami, as mulheres são vítimas de violações sexuais permanentes. Também na cidade essas violências acontecem. Elas não são seguras para as mulheres. Roraima é um dos estados que mais mata mulheres”, denuncia e exalta a ação conjunta das organizações amazônicas para aliviar essa dor.
“A gente quer que as vozes populares sejam ouvidas, que os saberes tradicionais sejam considerados, que a medicina tradicional seja respeitada. É fundamental fazer esse debate com o conjunto dos movimentos sociais para que juntos tenhamos mais força para denunciar, enfrentar os desafios e, em conjunto, construir caminhos para a população amazônica, indígena, negra, ribeirinha, extrativista”, concluiu.
A relação com o ambiente na realidade amazônica é inerente, direta e essencial
Saúde humana e ambiental
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define que a saúde ambiental tem uma relação umbilical com a saúde humana. “Saúde ambiental são todos os aspectos da saúde humana, inclusive a qualidade de vida, que são determinados por fatores físicos, químicos, biológicos, sociais e psicológicos no meio ambiente. Também se refere à teoria e à prática de prevenção ou controle desses fatores de risco que podem prejudicar a saúde das gerações atuais e futuras” (OMS, 1993).
Partindo desse conceito, a professora doutora em Saúde Pública, Adele Benzake, trouxe para o Pré-Fospa informações sobre as condições de saúde das populações da Amazônia, especialmente das mulheres indígenas do Amazonas.
Um dos fatores apontados em seus estudos é de que, além dos grandes projetos desenvolvimentistas, agropecuária e mineração que adentram as florestas, a contaminação das águas e do ambiente acontece também a partir dos resíduos industriais, como embalagens plásticas e de metais, que se espalham pelos rios e comunidades. Essa contaminação afeta diretamente a saúde das pessoas porque a relação com o ambiente na realidade amazônica é inerente, direta e essencial.
“O acúmulo de embalagens descartadas no ambiente promove, ao longo do tempo, alto grau de contaminação. Quando o rio desce, é impressionante observar a quantidade de dejetos que não deveriam estar ali”, adverte a professora, exemplificando com o que se viu na seca de 2023.
Outros fatores da saúde ambiental que estão determinando a precarização da saúde no interior do Amazonas são: a abertura de estradas que cada vez mais se expande para os núcleos das florestas, as dificuldades de acesso aos serviços de saúde e a pouca estrutura para assistência por vias fluviais.
“O conjunto de ações no pré-natal ainda está longe do ideal”
Para as mulheres, essa situação é mais grave, e para as mulheres indígenas, ainda mais preocupante. Segundo os dados de Adele, “o conjunto de ações no pré-natal ainda está longe do ideal, com mecanismos fracos para o diagnóstico e tratamento de gestantes, e pouco treinamento dos profissionais em um contexto interétnico”, avalia.
Rosimere Arapaço, da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas Makira-E’ta, no rio Negro, trouxe o tema das violências sofridas pelas mulheres indígenas e deu ênfase em um dos mais sérios problemas que passam as parturientes: a violência obstétrica.
Ela relata que dados ainda precisam ser levantados, mas que pela experiência que teve acompanhando mulheres indígenas, aquelas que precisam ir à cidade para dar à luz correm sérios riscos. “Essa é uma violência”, explica Rosimere, “que faz parte do quadro de saúde psicológica, física e mental das mulheres”, por todo o envolvimento próprio do momento do parto e porque precisam sair de suas casas e comunidades para parir em um lugar estranho com pessoas estranhas.
Em um de seus acompanhamentos, a Arapaço conta que a mãe precisou ir ao hospital de São Gabriel da Cachoeira para dar à luz, adquiriu infecção e faleceu em decorrência do grave quadro clínico consequente da cirurgia. “Eu presenciei, conversei com os familiares dela, ela [a indígena] fez parto cesariano, deu infecção, e como ela estava em risco, veio a óbito”, lamentou.
Rosimere considera a necessidade de investigação dessas situações, “que não são poucas”, porque é um fator primordial para a resolução desses problemas. “Há muitos casos como esse, e precisa ter uma averiguação melhor para entender de quem é a responsabilidade”, alertou.
“O SUS precisa ter o reconhecimento de parteiras tradicionais e as instâncias da saúde indígena precisam de melhorias”
Quanto às parteiras tradicionais, Rosimere disse que são valorizadas e desempenham papel importante nas comunidades, assim como os pajés, mas é preciso formação, visto que existem situações que elas não alcançam. “As mulheres são, tradicionalmente, parteiras. De fato, elas fazem um bom trabalho, mas nem tudo elas podem resolver”, explica, dizendo que o Sistema Único de Saúde (SUS) “precisa ter o reconhecimento de parteiras tradicionais e as instâncias da saúde indígena precisam de melhorias”.
Na busca de solução para os desafios, Rosimere acredita que o Fospa é um lugar de ampliar as vozes. “O Fospa é uma luz para nós, é um grito maior, um grito coletivo através de desafios que a gente está vivenciando lá na ponta. Precisamos de parcerias para traçar estratégias no âmbito estadual, regional e nacional”, finaliza esperançosa.
“Os direitos da natureza defendem as visões biocêntrica ou ecocêntrica”
A Natureza tem direitos
O Pré-Fospa Manaus trouxe, ainda, o debate sobre os direitos que a natureza e a vida que a compõe devem ter, pois são seres que existem e, portanto, devem ser elevados a sujeitos de direito. As Constituições Federais da Bolívia e do Equador já reconhecem a natureza assim, reportando-a a não se constituírem como meros recursos submetidos às beneficies humanas.
Mercy Soares, educadora social do Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (Sares), explanou sobre esse tema e sugere que “o Estado brasileiro deve se espelhar nas constituições do Equador e da Bolívia que elevaram a natureza a sujeitos de direitos”, considerou.
“Nós temos uma grande biodiversidade, uma infinidade de espécies vegetais, animais e minerais, mas não temos leis que garantam a interdependência desses seres como sujeitos de direito. Pensamos o meio ambiente sempre cheio de recursos naturais que tem o objetivo de beneficiar o homem, (…) Nossa constituição reconhece o direito das gerações presentes e futuras a um meio ambiente equilibrado [artigo 225], mas não reconhece a titularidade dos direitos da natureza”, explica.
Dessa forma, “enquanto o direito ambiental preconiza respostas antropocêntricas à destruição do meio ambiente, onde o ser humano está no centro das preocupações e a natureza é considerada mero recurso apropriável a ser explorado, os direitos da natureza defendem as visões biocêntrica ou ecocêntrica”, elabora.
Corroborando as explicações de Mercy, a pesquisadora Renata Grippa em seu trabalho “A Natureza como Sujeito de Direitos”, de 2022, afirma que “a elevação da natureza (Pacha Mama) como um sujeito de direitos pelas constituições do Equador e da Bolívia, é um passo para o reconhecimento mundial da importância da natureza, como condição ‘sagrada’ para a vida e a dignidade da pessoa humana”.
“Essas vozes de mulheres, indígenas, de suas realidades, sonhos e esperanças, fortalece a luta que é de todos”
Aliança é compromisso
A adesão de organizações da sociedade civil à defesa dos direitos sociais e ambientais se amplia quando a vida na Casa Comum está ameaçada. Papa Francisco conclama a todos: “cuidar da nossa casa comum, mesmo sem considerar os efeitos das mudanças climáticas, não é simplesmente um esforço utilitário, mas uma obrigação moral para todos os homens e mulheres como filhos de Deus”.
Para Pe. Adriano Luís Hahn, coordenador do Sares, uma das entidades que contribuiu na organização do Pré-Fospa, a missão do evento se entrelaça com a missão da instituição. “Estar nessa organização é justamente devido à sua identidade porque [o Sares] é um serviço amazônico que busca promover a justiça socioambiental. Sua missão é a defesa do meio ambiente, o direito dos povos indígenas, quilombolas, e de todos os que são vítimas dessa grande crise [que avança sobre a Amazônia] e que lutam pela vida”, declara.
Trazendo as reflexões e as esperanças de Roraima, Vanessa Xavier, da Comissão Pastoral da Terra (CPT-RR), comunga com as propostas do Sares. “Os dados trazem um contexto de violência, de conflitos, mas também da resistência das comunidades. As organizações e movimentos da Pan-Amazônia, tanto da cidade quanto do campo, trazem [ao Pré-Fospa] alternativas e esperanças. A CPT colabora com suas reflexões, seu trabalho e sua ação pastoral. Essas vozes de mulheres, indígenas, de suas realidades, sonhos e esperanças, fortalece a luta que é de todos”, declarou Vanessa.
Alertando para as águas amazônicas, Pe. Sandoval Rocha, do Fórum das Águas do Amazonas, converge as discussões para os recursos hídricos, um Bem Comum essencial para a vida no planeta. “Trazemos o tema água para esse ambiente de reflexão não só porque a Amazônia tem os maiores reservatórios hídricos de água doce do planeta, mas também porque nesse contexto amazônico existe muita agressão às águas: o garimpo, o agronegócio e seus venenos, o esgotamento sanitário [poluente], as indústrias e seu resíduos”, alerta Sandoval, indicando a solução: “ter uma política de cuidado com as águas justa e eficiente”.
Na perspectiva de construir caminhos e políticas adequadas para toda a Amazônia, o Secretário Adjunto, da Rede Eclesial Pan-Amazônia (Repam), Rodrigo Fadul, diz que “há dificuldades pela diversidade socioambiental, mas o Fospa é justamente esse espaço de mostrar as realidades, belezas e desafios. E ao agir nesse caminho preparatório do megaevento da COP-30, ano que vem, nos organizarmos e contribuimos para mudanças reais na vida das populações”, disse.
“Desenvolvimento para quem?”
Diferentes olhares
Para Dario Kopenawa, o Pré-Fospa é importante porque “é troca de experiências não indígenas e indígenas. Porque eles têm um modo de olhar diferente do modo de olhar como é a vida das populações indígenas”, disse, apontando que a solução para os problemas sociais e ambientais está em ações conjuntas.
“É importante a gente colocar alguns pontos de prioridade, que são principais e que estão afetando há muitos anos e não estão resolvendo. Procurar soluções conjuntas faz parte do fortalecimento de pensamento e coletividade, o que os não indígenas e os indígenas estão pensando para poder entrar no consenso e a gente pedir do Estado brasileiro. Procurar justiça, justiça social, justiça pública para a violação dos direitos dos povos originários. Estamos sofrendo há 524 anos”, exalta.
Historicamente, houveram conquistas, mas foram construídas com a força da coletividade, como diz Dário. Para Mariazinha Baré, da Articulação dos Povo Indígenas do Amazonas (Apiam), elas foram fortes e significativas. Mas é preciso que o movimento fique alerta, porque os ataques persistem.
“Nossos direitos estão garantidos na Constituição Federal. Porém, esses direitos estão sendo desconstruídos em nome do que se chama desenvolvimento. Um desenvolvimento para quem?” assinala Mariazinha, destacando um dos argumentos mais persuasivos utilizados pelo poder econômico: a alimentação.
“Em nome desse progresso que só serve para eles [classe econômica dominante] se fala que explorar potássio em Autazes, no território Mura, vai possibilitar maior produção de alimentos, que vai baratear os alimentos. Isso é uma solução falsa”, denuncia, dizendo que uma das consequências dessa exploração “é expulsar os parentes de suas comunidades, da casa deles, e leva-los para a cidade viver na ‘sapolândia’, nas áreas de periferia”.
“Existem, sim, outras maneiras de produzir alimentos para os brasileiros. A agroecologia e a agricultura familiar são as que sempre deram certo”, reitera e diz que os indígenas precisam ser cautelosos. “A gente precisa estar qualificada com informações sobre essas ameaças e suas consequências para as pessoas e para o ambiente. A gente precisa estar de olhos abertos”, assinala, e conclui que o Fospa é um momento de partilha e busca de soluções.